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A estruturação de um sistema jurídico-normativo de proteção internacional de refugiados, positivada nos mais diversos instrumentos de direito internacional, muitos dos quais de natureza jus cogens, merece ser considerada uma significante conquista daqueles que militam em prol dos direitos humanos.

Mesmo porque, conforme a noção edificada a partir dos ensinos de Hannah Arendt (2012), os direitos humanos (categoria na qual pode se enquadrar o direito internacional dos refugiados) não são um dado, mas um construído, um conceito que se molda e está em constante processo de construção e reconstrução.

Norberto Bobbio (2004), por sua vez, também destaca esse processo gradual em que os direitos humanos, por mais fundamentais que sejam, não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Daí porque é digna de louvor a construção desse regime jurídico-positivo de direito internacional dos refugiados.

Nessa perspectiva, afora as normas atinentes aos direitos humanos e ao direito humanitário (também aplicáveis à causa, considerando-se a tríplice vertente de proteção internacional da pessoa humana80), cumpre exaltar todo o aparato normativo construído, ao longo da história, especificamente em prol da proteção e promoção dos direitos dos refugiados.

Exemplos desta estrutura normativa que evoluiu no tempo, inclusive ampliando a definição de refugiado, são a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu respectivo Protocolo Adicional de 1967. No contexto da América Latina e do Caribe, de modo particular, ganha relevo a Declaração de Cartagena de 1984 e, no plano interno, a Lei nº 9.474/97, conforme já se viu no capítulo precedente.

Contudo, não obstante o potencial protetivo que se extrai da leitura dos enunciados dos referidos instrumentos, é indubitável que estes não significam, por si sós, triunfo das garantias neles idealizadas.

Em outros termos, a prescrição meramente documental, textual, da norma, por si só, não é dotada de força executória capaz de concretizar, automaticamente, a realização plena dos direitos nela consignados, ou seja, tais direitos não são exequíveis de forma instantânea em razão da simples prescrição textual.

Nesse sentido, não são raras as vozes na doutrina que, de longa data, se levantam para denunciar a distância entre o texto normativo e a realização do direito nele prescrito.

Aliás, esse descompasso entre a teoria e a prática já foi vislumbrado por Norberto Bobbio, nos seguintes termos:

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Considera-se a interação normativa entre o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional humanitário e o direito internacional dos refugiados, como três vertentes, convergentes e complementares, da proteção internacional da pessoa humana. A esse respeito, ver CANÇADO TRINDADE; PEYTRIGNET; SANTIAGO, 1996.

Uma coisa é um direito; outra, a promessa de um direito futuro. Uma coisa é um direito atual; outra, um direito potencial. Uma coisa é ter um direito que é, enquanto reconhecido e protegido; outra é ter um direito que deve ser, mas que, para ser, ou para que passe do dever ser ao ser, precisa transformar-se, de objeto de discussão de uma assembleia de especialistas, em objeto de decisão de um órgão legislativo dotado de poder de coerção (BOBBIO, 2004, p. 77).

Sem que acarrete prejuízo à temática proposta pelo presente estudo, não há espaço, nesta oportunidade, para se dissertar mais longamente acerca da efetividade/efetivação das normas jurídicas, tema afeto, mais precisamente, à teoria geral do Direito.

Todavia, com o intuito de dar contornos mais precisos à terminologia aqui empregada, convém lançar mão das lições de Luís Roberto Barroso (1995, p. 65- 66), ao tratar da efetividade das normas constitucionais, trazendo à baila também, na mesma toada, as lições de José Afonso da Silva e de Miguel Reale. Veja-se:

A eficácia dos atos jurídicos constitui-se na sua aptidão para a produção de efeitos, para a irradiação das consequências que lhe são próprias. Como anotou José Afonso da Silva, tratando-se de uma norma, a eficácia jurídica designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos nela indicados. Cabe distinguir-se da eficácia jurídica o que muitos autores denominam de eficácia social da norma, que se refere, como assinala Miguel Reale, ao cumprimento efetivo do direito por parte de uma sociedade, ao “reconhecimento” (AnerKennung) do direito pela comunidade ou, mais particularizadamente, aos efeitos que uma regra suscita através de seu cumprimento. Em tal acepção, eficácia social é a concretização do comando normativo, a sua força operativa no mundo dos fatos.

A efetividade, portanto, em apertada síntese, corresponde à eficácia social, inserida no plano da realização do direito.

No que concerne, especificamente, aos direitos dos refugiados, não se percebe de modo satisfatório a efetivação, em favor dessa população, das garantias previstas nos documentos jurídicos invocados de modo contumaz.

É o que observa com propriedade Pietro Alarcón (2013, p. 107):

[...] ainda que seja inegável o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial do Direito Internacional, na sociedade internacional ainda não se conta com uma relação de poder em favor desses direitos. Mais ainda, a existência desse acúmulo de Declarações, entre as que se conta o Estatuto dos Refugiados, em parte evidencia as condições inglórias em que tem se desenvolvido as relações internacionais.

[...] o fato de que alguns autores consignem que elas constituem meras aspirações, apesar de, em alguns Estados, internamente, os direitos humanos não apresentem maiores condições de efetividade, atesta o difícil que resulta, teoricamente, fomentar uma dinâmica de respeito e prevalência desses direitos (ALARCÓN, 2013, p. 107).

Diante desse alerta, fica patente que positivação não é garantia de efetividade dos direitos:

Muitas são as barreiras, inclusive de acesso à justiça, à assistência social e ao emprego, a que os migrantes são submetidos, mesmo após terem a solicitação de refúgio atendida, isto é, mesmo após a aquisição do status de proteção estatal na condição de refugiado (MERIGUETI, 2016b, p.505).

Nesta medida, o impacto jurídico que o fenômeno do refúgio revela não se limita apenas à regulação jurídico-normativa, ao direito positivo, mas também reflete na expressão de sua efetividade, ou melhor, em como efetivar tais garantias.

O cerne da problemática dos direitos dos refugiados, portanto, não é diverso dos desafios enfrentados pelos direitos humanos como um todo. A gravidade que se descortina diante dos agentes jurídico-políticos não reside, pois, em justificar tais garantias, ou mesmo em saber quais e quantas são, sua natureza e seu fundamento, mas sim, no desafio de sua tutela, em saber qual a forma mais adequada de protegê-las (BOBBIO, 2004).

Noutra perspectiva, este hiato existente entre os direitos corporificados em normas legais e o direito efetivamente aplicado por meio das decisões judiciais, isto é, a “[...] enorme distância entre o que está posto nas normas do direito positivo e o anseio de justiça dos indivíduos [...]” (VINCENZI, 2014, p. 388), acaba se revelando como um outro fator de exclusão da população refugiada.

Isto porque, se não bastasse a privação de pertencimento dos “invisíveis” solicitantes de refúgio e refugiados no plano social, como se viu anteriormente, sob o aspecto jurídico não se nota distinção que se possa considerar relevante, tendo em vista as dificuldades de efetivação dos instrumentos normativos que lhes garantem direitos mínimos.81

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A confirmação ou não dessa aparente dificuldade na realização dos direitos (econômicos, sociais ou, mesmo, ao próprio reconhecimento da condição de refugiado e todas as obrigações estatais daí derivadas) se dará mais à frente, com a análise das decisões judiciais.

Surge, portanto, o desafio de encontrar meios de tornar efetivos os compromissos assumidos internacionalmente e, mesmo, internamente, dando vida aos textos normativos, que não podem se constituir de palavras vãs, conforme ensina o brocardo jurídico (MERIGUETI, 2016b).

É nesta linha de reflexão, pois, que faz sentido sugerir a manifestação de uma “invisibilidade jurídica”, numa alusão à invisibilidade social de que já se falou anteriormente, fenômeno que ocorre quando os direitos e garantias, muito embora estampados (positivados) nos textos dos instrumentos jurídico-normativos, não se realizam, isto é, não conseguem alcançar a quem deles realmente necessita.

Com efeito, não apenas a ausência de efetividade normativa e o hiato entre teoria e prática, mas também a própria dificuldade dos destinatários das garantias em ter acesso ao sistema jurisdicional concorre para que haja esta “invisibilidade jurídica”. Essa perspectiva serve para afirmar, a contrario sensu, que as relações sociais intersubjetivas não são a única forma de visibilidade a que os solicitantes de refúgio e os refugiados fazem jus. A completude do pertencimento e o anseio por ser visível exige o despertar de um movimento em direção à efetivação das garantias que lhes são asseguradas.

Nesse contexto, como já visto, qualquer que seja a situação de invisibilidade (social ou “jurídica”), traz como efeito exclusão, isolamento, preconceitos e marginalização das pessoas consideradas indesejadas a partir de padrões étnicos, culturais e de origem.

Por outro lado, contudo, esses mesmos resultados segregadores também conduzem à mobilização e à organização das vítimas em um processo de luta. Dito de outro modo, como consequência dessas situações de rebaixamento e de invisibilidade, surge a mobilização dos “invisíveis”, isoladamente ou em grupo, para conseguir pertencer efetiva e plenamente ao corpo social e superar os conflitos intersubjetivos. Como antídoto para reverter essas facetas da violência, entra em cena, então, o fenômeno denominado luta por reconhecimento.