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2. Reforma Psiquiátrica percorrendo o caminho inverso: da

2.1. Reformas Restritas ao Ambiente Asilar: Comunidade Terapêutica

2.1.1. Comunidade Terapêutica

Durante a guerra, destacam Birman e Costa (1994), a psiquiatria precisava se adaptar, moldando-se ao novo contexto de emergência. Um grande número de soldados mostrava distúrbios mentais nos campos de batalha, tendo de abandonar seu posto e ser internado em hospitais psiquiátricos, tornando problemática a manutenção e a privação, em hospitais psiquiátricos militares, de um grande número de homens treinados. Os hospitais psiquiátricos deveriam, pois, proporcionar um rápido retorno às atividades sociais, não podendo mais desperdiçar o potencial dos alienados. O novo lema era dinamizar a estrutura hospitalar, criar novas formas e condições de tratamento para uma eficaz recuperação dos pacientes como sujeito de produção. Propõe-se a transformação do espaço hospitalar em espaço terapêutico, mudando o hospital para que este produzisse a saúde mental nos seus pacientes.

É nesse contexto que a noção de Comunidade Terapêutica surge, quando T. F. Main escreve, no Bulletin of the Menniger Clinic, em 1943, sobre os progressos da psiquiatria britânica do pós-guerra e cita o trabalho dos psiquiatras ingleses do grupo de Northfield: Bian e Rickman, descrevendo o Hospital de Northfield como uma ―comunidade terapêutica‖.

Segundo Schittar (1985), Bian e Rickman organizaram, desde 1943, no Hospital Northfield, grupos de discussão de doentes (soldados afetados por neurose), de maneira comunitária e com a participação de pacientes na direção do setor.

Datada sócio-historicamente no período pós-guerra, a experiência da Comunidade Terapêutica chama a atenção da sociedade para a deprimente condição dos institucionalizados em hospitais psiquiátricos, comparados aos campos de concentração, com que a Europa democrática daquele período não mais tolerava viver; sendo repudiada toda violência e desrespeito aos direitos humanos. Diante dos danos psicológicos, físicos e sociais causados pela guerra em homens jovens, tornava-se urgente reparar esses danos com a recuperação da mão-de-obra invalidada pela guerra. Mas o asilo psiquiátrico situava-se em um quadro de extrema precariedade, não cumprindo a função de recuperação dos doentes mentais, sendo considerado como responsável pelo agravamento das doenças. Assim, abre-se espaço para o surgimento ou a retomada de uma série de propostas de reformulação do espaço asilar, como afirma Amarante (1995).

A Comunidade Terapêutica concebe a instituição como um conjunto orgânico não hierarquizado de médicos, pacientes e pessoal auxiliar; havendo comunicação entre todos. Os pacientes tinham direito a ―voz‖ e ―voto‖, ou seja, tinham poder decisório igualitário na instituição. O funcionamento era basicamente grupal, e as decisões tomadas nas reuniões eram realizadas diariamente. O movimento da Comunidade Terapêutica, segundo Oliveira (2002), utilizou como matriz teórica a dinâmica de grupo, adquiriu certa importância e tinha, como linhas gerais, reformas institucionais restritas ao espaço asilar, por meio de medidas administrativas ―democráticas‖, visando à transformação da dinâmica institucional asilar e aos métodos socioterapêuticos como base da prática psiquiátrica.

Somente em 1959, diz Amarante (1995), na Inglaterra, foi que Maxwell

Jones consagrou o termo ―Comunidade Terapêutica‖ e o delimitou. Com isso, o termo

passou a caracterizar um processo de reformas institucionais, predominantemente restritas ao hospital psiquiátrico, marcadas pela adoção de medidas administrativas, democráticas, participativas e coletivas, objetivando uma transformação da dinâmica institucional asilar. Maxwell Jones, afirma Schittar (1988), também fez o mesmo procedimento comunitário em várias instituições: na divisão para a síndrome do esforço (1941); no hospital para ex-prisioneiros de guerra, em Dartford (1945); na divisão de reabilitação industrial de Belmont (1947), ficando conhecido como o psiquiatra mais representativo das comunidades terapêuticas e sendo imitado por muitos.

A Comunidade Terapêutica baseia-se em alguns princípios que foram definidos como revolucionários e que são aversivos ao tipo de relação tradicional

médico–paciente, estabelecendo princípios como a conservação da individualidade do

paciente, a convicção de que os pacientes são dignos de confiança e que têm a capacidade de assumir responsabilidades e iniciativas. Baseado nesses princípios, segundo Schittar (1988), em 1958 foi realizado um estudo sobre as instituições psiquiátricas em associação com a OMS e o Comitê de Especialistas, estes afirmaram que o hospital psiquiátrico deveria ser, em sua totalidade, uma comunidade terapêutica.

Schittar (1988) relata que muitos estudos foram realizados sobre as comunidades terapêuticas e sua eficácia, mas poucos tentaram descobrir, além da ideologia, qual era o poder de decisão real dos pacientes, citando alguns estudiosos que se aventuraram nessa pesquisa, como Rubenstein e Laswell, os quais concluíram que, na Comunidade Terapêutica, os pacientes continuavam privados de certas

liberdades, e as equipes continuavam sendo os agentes habilitados e mandatários da sociedade.

Alguns psiquiatras ingleses responderam a essa questão afirmando existir uma necessidade de um poder não apenas fantasmático, mas também real do médico. E o próprio Maxwell Jones, que inicialmente foi crítico a essa questão, desenvolveu a teoria da ―autoridade latente‖, afirmando que o ―líder‖ deve entrar em ação no momento em que certos limites forem atingidos, justificando que isso deve ser feito para que a confiança da comunidade nas próprias capacidades de controle não seja ―minada.‖

Aquilo que surgiu como exigência de renovação fundamental das instituições psiquiátricas revelam como um novo tipo de instituição, mais moderna, mais eficiente, mas na qual as relações de poder parecem permanecer as mesmas, reflete Schittar (1988), afirmando que o balanço da Comunidade Terapêutica não pode ser tido como falho. Pois, através da Comunidade Terapêutica, colocam-se as contradições da realidade institucional, permitindo, mesmo que não de forma ideal, o questionamento, nas reuniões e nas assembléias, sobre o uso do poder médico, afirmando que ―As contradições permanecem, mas o importante é tomar consciência delas‖ (p.147).

Segundo Oliveira (2002), a Comunidade Terapêutica modificou a instituição psiquiátrica, mas não conseguiu colocar em questão o problema da exclusão social do doente mental. Rotelli, Leonardis e Mauri (2001a) também afirmam que a prática da Comunidade Terapêutica atinge o seu limite: reconhece as próprias fronteiras, que são os muros do manicômio. As ideologias comunitária da liberdade e da democracia, no íntimo, escondem a realidade perpetuada pela exclusão; a ilusão de uma relação imediata com o outro mascara a reprodução inexorável de

uma relação de domínio constituído sobre o poder/saber do terapeuta; a subjetividade do paciente existe verdadeiramente apenas no momento em que ele pode sair do manicômio, ou seja, somente quando lhe são restituídos e reconstituídos aqueles recursos e condições materiais, sociais, culturais que tornam possível o efetivo exercício de sua subjetividade fora do manicômio.

De acordo com Basaglia (1985), se, por um lado, a comunidade terapêutica pode ser considerada um passo necessário na evolução do hospital psiquiátrico, por outro, não pode ser considerada a meta final, mas, antes, uma fase transitória enquanto a própria situação evolui, uma vez que a Comunidade Terapêutica é um local em que todos os componentes estão unidos em um total comprometimento. Portanto, o primeiro passo da passagem da ideologia tutelar àquela mais terapêutica é o da transformação das relações interpessoais entre aqueles que atuam nesse campo.

Basaglia (1985) ressalta que não é a Comunidade Terapêutica enquanto organização estabelecida e definida dentro de novos esquemas, diferentes daqueles da psiquiatria asilar, que irá garantir a eficácia terapêutica da nova ação, e sim o tipo de relação que irá se instaurar no interior dessa comunidade. Ela se tornará terapêutica na medida em que consiga identificar as dinâmicas de violência e expulsão presentes na instituição e na sociedade como um todo; criando pressupostos para uma gradual tomada de consciência e possibilidade de fazer-lhes frente e combatê-las, reconhecendo-as como parte integrante de uma estrutura social particular, e não como

um dado de fato irrefutável. ―A Comunidade Terapêutica parece ser o ‗último grito‘

da psiquiatria; a estrutura em cujo seio deveriam ser encontradas as soluções para as contradições contra as quais se debate a psiquiatria institucional‖ (Schittar, 1988, p.149).

2.1.2. Psicoterapia Institucional

Para Desviat (1999), a Psicoterapia Institucional é uma das tentativas mais rigorosas de salvar o manicômio; influenciada pela psicanálise, procura organizar o hospital psiquiátrico como campo das relações significantes.

A adoção da psicanálise nos hospitais franceses data de 1940, quando François Tosquelles, um jovem enfermeiro catalão exilado depois da guerra espanhola, desenvolveu, em um asilo rural (Hospital Psiquiátrico de Saint-Alban), uma experiência radical de transformação, tornando-o lugar de resistência ao nazismo, espaço de encontro de militantes marxistas, freudianos, questionando a instituição psiquiátrica como espaço de segregação e suas relações autoritárias.

O movimento foi denominado Psicoterapia Institucional, relata Oliveira (2002), e teve maior ênfase na década de 1950, na França, com forte contestação da psiquiatria asilar. Parte da idéia de que, para tratar o doente, era preciso primeiro tratar a instituição, para que ela se tornasse terapêutica. Tornando a instituição o menos alienante possível, visava, pois, modificar a organização institucional para transformá- la em um instrumento de cura. A Psicoterapia Institucional tem por objetivo principal o resgate do potencial terapêutico do hospital psiquiátrico, acreditando que o hospital pode ser reformado e dedicado eficientemente à cura dos doentes mentais. Considera, assim, que a instituição psiquiátrica tem características doentias que precisam ser tratadas, passando, a Psicoterapia Institucional, a ser uma tentativa de conciliação da psiquiatria com a psicanálise, buscando a introdução da psicanálise nos asilos.

Nesse contexto ―neoasilar‖, destacam Birman e Costa (1994), a

psicanálise é transformada para atender às novas demandas, usada como instrumento adaptativo e pedagógico para promover a comunicação e a reeducação dos pacientes para o convívio social. Introduz o trabalho em grupo nos hospitais, visando à

recuperação do paciente para a vida social e familiar. As regras e as normas existentes no hospital deveriam ser uma síntese das regras da vida social mais ampla, que deveriam ser interligadas pelos pacientes, e a cura estaria relacionada com essa possibilidade de reeducação. Surgem também as terapias de família como forma de evitar a alienação do paciente de sua vida familiar pelo ato de internação. O psicótico passa a ser encarado como um sintoma de enfermidade mais ampla e complexa, que é a da estrutura de sua família; passa-se a investir não apenas na reabilitação do doente, mas também na da família, que deverá ser reestruturada para adaptar-se ao doente. Modifica-se, assim, a perspectiva psiquiátrica, para a qual não se trata de curar um doente, mas de adaptá-lo num grupo, torná-lo novamente sujeito de uma rede de inter- relações sociais.

A Psicoterapia Institucional é criticada por centrar-se no espaço institucional asilar, resumindo-se a uma reforma asilar que não questiona a função social da psiquiatria, do asilo e dos técnicos, não tendo como objetivo mais amplo a transformação do saber psiquiátrico.

Destaca, Oliveira (2002), que tanto a Comunidade Terapêutica como a Psicoterapia Institucional são projetos importantes, na medida em que introduziram modificações no interior da instituição psiquiátrica, criando relações terapêuticas pouco hierarquizadas, compartilhadas e democráticas. Entretanto, esses projetos apresentam limitações, pois não questionam o problema da exclusão do louco e a noção de doença mental que, em última instância, fundamentam a instituição psiquiátrica, já que centram suas ações terapêuticas no interior da instituição, na cura do doente, isolando-o do contexto político, cultural e social mais amplo.

2.2. Reformas Psiquiátricas que Visam Superar o Espaço Asilar como