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Reinvenção da alfabetização: uma revolução conceitual

2.3 Alfabetização: a reinvenção de um objeto culturalmente constituído

2.3.1 Reinvenção da alfabetização: uma revolução conceitual

A partir da concepção teórica piagetiana da apropriação de conhecimentos através da atividade do sujeito em interação com o objeto de conhecimento, Emilia Ferreiro e Ana Teberosky desenvolveram pesquisas e estudos que provocaram significativas reformulações na fundamentação teórica do processo de ensino- aprendizagem da lecto-escrita, pois ao publicarem a obra Psicogênese da Língua Escrita (1985), possibilitaram novos entendimentos acerca da alfabetização inicial, gerando, conseqüentemente, uma revolução conceitual, já que em suas pesquisas deslocam a atenção das discussões acerca da alfabetização das questões do “como se ensina” (questão dos métodos), para o “como a criança aprende” a ler e a escrever (WEISZ, 1985).

Desse modo, a teoria piagetiana, discutida anteriormente, e a ênfase que as autoras dão, em suas pesquisas, em compreender o modo como as crianças se apropriam da lecto-escrita, permitiu que hoje se entendesse o processo pelo qual a criança percorre na busca de compreensão das características, do valor e da função deste objeto cultural que constitui a língua escrita, além do mais possibilitou que se elaborasse uma outra concepção sobre a criança, pois se passou do entendimento dessa como um ser passivo e mero “memorizador” das instruções formais

repassadas pela professora alfabetizadora para um sujeito criador, porque construtor, de conhecimentos por meio de reflexões. Ou seja, de acordo com Ferreiro e Teberosky:

O sujeito que conhecemos através da teoria de Piaget é aquele que procura ativamente compreender o mundo que o rodeia e trata de resolver as interrogações que este mundo provoca. Não é um sujeito o qual espera que alguém que possui um conhecimento o transmita por um ato de benevolência. É um sujeito que aprende basicamente através de suas próprias ações sobre os objetos do mundo e que constrói suas próprias categorias de pensamento ao mesmo tempo que organiza seu mundo (1985, p. 29).

Assim, essas autoras introduzem, através de seus estudos, a concepção de língua escrita como objeto de conhecimento e sujeito da aprendizagem como sujeito cognoscente, sujeito ativo criador do conhecimento, deixando bastante nítida a idéia sobre a qual as crianças, a partir do momento em que compreendem a língua escrita como objeto, dando atenção sobre seus usos e funções, elaboram hipóteses e explicitam idéias teóricas que constantemente colocam à prova frente às escritas reais presentes na sociedade, além do mais confrontam essas suas hipóteses e idéias com as concepções dos outros sujeitos (SINCLAIR, 1990).

Nesse sentido, toda a compreensão que os estudos dessas autoras trouxeram acerca dos processos e das formas pelas quais as crianças constroem o conhecimento sobre a língua escrita, possibilitou o entendimento da alfabetização inicial sob um novo ângulo, no qual os métodos tradicionais de alfabetização já não têm tanta relevância, visto que toda a apropriação conceitual desse objeto de conhecimento, que é a escrita, é construído a partir da própria atividade do sujeito cognoscente.

Portanto, pode-se concluir que sendo a língua escrita considerada como um objeto de conhecimento e não apenas como um objeto de ensino, a alfabetização inicial passa também a ser compreendida como um processo que implica a apropriação de um sistema de representação (FERREIRO, 1993; 2001), sistema esse que não envolve apenas marcas gráficas, mas, principalmente, que envolve interpretação (sentido e significado) dessas marcas gráficas. Desse modo, fala-se de alfabetização como Cultura Escrita, uma vez que se trata de um aprendizado:

[...] que envolve mais que aprender a produzir marcas, porque é produzir língua escrita; algo que é mais que decifrar marcas feitas por outros, porque é também interpretar mensagens de diferentes tipos e de diferentes graus de complexidade; algo que também supõe conhecimento acerca deste objeto tão complexo – a língua escrita -, que se apresenta em uma multiplicidade de usos sociais (FERREIRO, 1993, p. 79).

Logo, toda essa revolução conceitual que Ferreiro e Teberosky (1985) trouxeram à tona, ao discutirem o modo como as crianças se apropriam do objeto cultural que é a língua escrita, fomentaram novos entendimentos acerca da alfabetização inicial de crianças, pois agora sabe-se que as crianças elaboram e relaboram hipóteses ao refletirem sobre o que a escrita representa e como ela é representada. Reflexões essas que se iniciam muito antes da criança receber informações formais e sistematizadas, sobre esse objeto de conhecimento, oriundas do ambiente escolar.

Entretanto, apesar dessas autoras serem hoje consideradas pioneiras ao trazerem dados concretos sobre os processos de construção dos conhecimentos no domínio da língua escrita, bem como a compreensão da natureza das hipóteses infantis e dos tipos de conhecimentos específicos que a criança possui ao iniciar a aprendizagem escolar, tendo como base epistemológica a perspectiva psicogenética, faz-se necessário salientar que o pioneirismo, em estudar, buscando compreender, como se dá o desenvolvimento da escrita na criança, é de Vygotski e de Alexandre Luria, um de seus seguidores soviéticos.

Todavia, os estudos de Ferreiro e Teberosky não se distanciam e muito menos se contrapõe às idéias revolucionárias de Vygotski e Luria, apresentadas em meados da década de 1920 quando descreveram suas investigações acerca da “pré-história da escrita”.

De acordo com Rocco (1990), durante a revolução que envolvia a Rússia, os cientistas soviéticos do grupo de Vygotski sistematicamente estudaram e questionaram temas que décadas mais tarde iriam interessar ao resto do mundo. Nesse sentido, tais cientistas produziram quase as mesmas conclusões que Ferreiro e seus colaboradores chegaram há cinqüenta anos depois. No entanto, os resultados das pesquisas de Vygotski e seu grupo, em função da proibição que ocorreu das obras desses psicólogos soviéticos, tanto no ocidente, como no oriente, permaneceram ignorados por quase todo o mundo, até mais ou menos a década de

60, no século XX. Por conta disso, Ferreiro e Teberosky só tiveram contato com os dados obtidos por esses pesquisadores através de suas pesquisas quando já estavam concluindo a escrita da obra Psicogênese da Língua Escrita.

Nesse sentido, Rocco ressalta que Luria e Ferreiro, mesmo que separados um do outro pelo espaço de tempo, acabaram por pesquisar um mesmo tema, os processos de construção da escrita pela criança pequena, e “[...] dentro das especificidades que lhes são inerentes, percorreram itinerários muito parecidos ou paralelos” (ROCCO, 1993, p. 32).

Assim, toda a proximidade evidenciada pela pesquisa de Ferreiro e dos cientistas soviéticos, está justamente na questão de como esses teóricos entendem a linguagem. Ou seja, como visto no tópico anterior, para Vygotski (1984; 1993), a linguagem tem um aspecto predominantemente social, uma vez que, por não haver dissociação entre a função comunicativa e a intelectual, a comunicação para ser efetiva precisa estar imersa numa rede de significados. Logo, em concordância com esse pressuposto, Ferreiro e Teberosky (1985) e Ferreiro (1993), entendem que a leitura e a escrita não podem ser vistas pelas ações mecanizadas, mas sim, através de um processo de construção individual (porque envolve assimilação de estruturas internas) de um sujeito cognoscente inserido num meio social que lhe proporciona informações específicas e, conseqüentemente, conflitos cognitivos que fomentam seu desenvolvimento e geram construção de conhecimentos.

Para as autoras da Psicogênese da Língua Escrita, a criança constrói e reconstrói a lecto-escrita através da interação com outros sujeitos, pois é o outro quem propicia situações de conflitos. Sendo, portanto, a busca por resoluções desses conflitos que leva a criança a evoluir conceitualmente.

Por isso, tanto para Ferreiro e Teberosky (1985), como para Vygotski (1984), o processo de ensino e de aprendizagem necessita estar baseado na função social e precisa também ter significado e sentido para a criança. Portanto, para que ocorra uma aprendizagem da linguagem escrita (isto é, para que a criança compreenda o sistema alfabético e sua função social), é imprescindível que o ato de ler e de escrever possibilite ao sujeito o pensar e o expressar de suas idéias, opiniões e sentimentos.

2.3.2 Apropriação da lecto-escrita: processo de construção individual de um