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3.2 O ESPAÇO COMO UMA CONSTRUÇÃO HISTÓRICA

3.2.1 A relação dos discursos com a realidade

Tanto Chartier quanto Felipe (2001) chamam a atenção para a definição da região somente por suas características físicas. E assim, polemiza Chartier (2002) diretamente com a tradição vidaliana em geografia. Neste sentido, os autores têm muita razão em criticar essa postura em geografia. Porém, não se pode imaginar a construção de uma região apenas por suas significações ou representações simbólicas instituídas, mesmo que historicamente, pelos discursos.

As idéias podem-se estender às representações, às significações simbólicas ou até aos discursos, mas não são independentes do real. Gaddis (2003) refere-se a algo semelhante a isso quando escreve em seu livro sobre a representação do espaço pela cartografia.

Os mapas da cartografia, segundo o autor, são representações do espaço, de um território real, que existe. Mas é uma representação que reduz “a complexidade infinita a uma moldura de referência, finita, maleável” (GADDIS, 2003, p.48).

[...] Evitamos a literalidade na elaboração de mapas porque isso faria com que eles não se tornassem representações, mas sim

9 Ferro (1989) refere-se às festas da seguinte maneira: a festa freqüentemente acompanha a

comemoração ou confunde-se com ela. Realiza a reconstituição da história. A verdade histórica torna- se fruto de uma composição. A comemoração acusa silêncios, desloca os fatos e os seleciona. Tem uma função conservadora. A transmissão televisiva acrescentou, ao lado do comemorável e o não comemorável, o mostrado e o não mostrado cujo efeito é aumentar a legitimidade das instituições e das pessoas representadas. As comemorações têm como efeito reforçar o sistema. O controle sobre a história completa-se pelo dispositivo das comemorações e festas. Mas, pela sua extensão, elas não podem ser consideradas apenas como uma estratégia de poder. As festas de categorias de profissão têm por função fornecer um modelo aos mais jovens, reforçando o gosto pelo trabalho e a recompensa aos cidadãos exemplares; as festas e comemorações reforçam a identidade social.

réplicas. Os detalhes nos afogariam: a destilação necessária à compreensão e à transmissão de uma outra experiência se perderia. [...] Mas, apesar dessa utilidade óbvia, não existe um único mapa correto. E, então, se pensarmos a história como uma espécie de mapeamento? [...] Permitiria variar os níveis de detalhamento, não simplesmente como reflexo de escala, mas também da informação disponível num dado momento sobre uma paisagem especifica, geográfica ou histórica [...].

[...] A comprovação na cartografia ocorre pela adaptação das representações à realidade. [...] Temos razões para representá-la: queremos encontrar nosso caminho sem precisar confiar em nossos sentidos imediatos; por isso, sorvemos a experiência generalizada de outros [...].

[...] A comprovação cartográfica é, portanto, totalmente relativa: depende de quão bem o desenhista atinge a adequação entre uma paisagem que está sendo mapeada e as demandas dos futuros usuários do mapa. Mas, apesar dessa indeterminação, não conheço um pós-modernista que negaria a existência de paisagens, ou a utilidade de representá-las. [...] Seria também imprudente que historiadores decidissem, em virtude do fato de que eles não têm uma base absoluta para medir tempo e espaço, que não se possa saber o que acontece dentro deles [...] grifos do original (GADDIS, 2003, p. 48 a 50)

Ou seja, o que Gaddis (2003) parece ressaltar é que não é possível ter uma representação literal da realidade, pois, do contrário, não seria uma representação, mas uma réplica. As representações são formas conceituais da realidade, e não a própria realidade. E essa adaptação pode-se dizer teórica, é importante para generalizar o conhecimento para os outros10.

Mas a generalização não é exata nem total. Essa indeterminação do real representado não significa a sua não-existência ou a inutilidade da representação do real. Para Gaddis (2003), o fato de não poder chegar a um conhecimento absoluto sobre o real não implica que não se possa conhecê-lo.

Gaddis (2003, p.16) refere-se a isso pela primeira vez em seu livro quando escreve sobre o “significado da consciência histórica”. De acordo com o autor, a maturidade nas relações humanas requer o reconhecimento da identidade do homem pelo caminho da aceitação de sua relativa insignificância no “esquema das coisas” (GADDIS, 2003, p.20).

[...] O reconhecimento da insignificância do homem não realça, como seria de esperar, o papel da mediação divina na explicação das questões humanas: é justamente o oposto. [...] Atribui a

10 Posteriormente, Gaddis (2003, p.25) faz uma ressalva: é preciso “entender que generalizações nem

responsabilidade dos acontecimentos históricos diretamente às pessoas que vivem através da história [...].

[...] Reconhecemos nossa insignificância no universo infinito. Sabemos ser impossível para nós [...] capturar em telas tudo o que vemos no horizonte longínquo, ou recapturarmos em nossos livros e leituras tudo o que aconteceu [...] o melhor que podemos fazer [...] é reapresentar a realidade [...].

[...] O mero ato de representação, todavia, nos faz sentir superiores porque nós mesmos estamos encarregados desta ação [...] [e segue:] dominamos uma paisagem mesmo quando somos diminuídos por ela – grifos do original (GADDIS, 2003, p.21 e 22)

O pesquisador é insignificante em relação à infinitude do conhecimento. Mas também porque não pode retratar toda a realidade e, mesmo esse retrato, não é mais do que uma representação da realidade. Essa representação da realidade, todavia, pode-se observar nas afirmações de Gaddis (2003), nos faz sentir superiores porque é através dela que “dominamos”, conhecemos a realidade.

O pesquisador seria limitado, portanto, tanto pela incapacidade de escrever, sobretudo o que ocorreu sobre um determinado fenômeno, mas também porque escreve ou conhece através de um sistema de signos, símbolos da realidade: “[...] a evidência de um historiador é sempre incompleta, sua perspectiva é sempre limitada [...]” (GADDIS, 2003, p.42).

O autor desenvolve essa idéia quando diferencia a representação literal da abstrata. Segundo Gaddis (2003, p.27), a singularidade da abstração é a sua projeção efetiva para “além do tempo e espaço”. De acordo com ele, há uma

[...] tensão entre particularidade e generalidade – entre representação literal e a abstrata [...]. A abstração é um exercício artificial que envolve uma supersimplificação de realidades complexas. [...] [os historiadores] empregam a abstração para superar uma restrição diferente, que é o distanciamento no tempo de seus objetos de estudo [...]

[...] Tensão por um lado, entre o literal e o abstrato, entre a descrição detalhada de fatos ocorridos em algum momento do passado, e, por outro, o amplo esboço que se estende por longos períodos da história [...] (GADDIS, 2003, p.29)

Os historiadores podem manipular o tempo e o espaço e até mesmo transcendê-los, continua afirmando Gaddis (2003, p.33), “[...] todavia, eles devem realizar essas manipulações de tal modo que, ao menos, elas se aproximem dos padrões de comprovação das ciências sociais [...]”.

Hobsbawm e Ranger (1997) referem-se a isso quando tratam do papel do historiador na invenção das tradições:

[...] Todos os historiadores, sejam quais forem seus objetivos, estão envolvidos neste processo, uma vez que eles contribuem, conscientemente ou não, para a criação, demolição e reestruturação de imagens do passado que pertencem não só ao da investigação especializada, mas também a esfera pública onde o homem atua como ser político. Eles devem estar atentos a esta dimensão de suas atividades [...].

[...] Sejam quais forem as continuidades históricas ou não envolvidas no conceito moderno [...] estes mesmos conceitos devem incluir um componente construído ou ‘inventado’. E é exatamente porque grande parte dos constituintes subjetivos da ‘nação’ moderna consiste de tais construções, estando associada a símbolos adequados e, em geral, bastante recentes ou a um discurso elaborado a propósito (tal como o da ‘história nacional’), que o fenômeno nacional não pode ser adequadamente investigado sem dar-se a atenção devida a ‘invenção das tradições’[...] (HOBSBAWM e RANGER, 1997, p.23).

Portanto, segundo Hobsbawm e Ranger (1997), há um envolvimento do historiador no processo de criação de tradições inventadas. O historiador não pode ser alheio a eles e as suas características de formação e existência. Existência científica, no dizer do autor, mas, também, social ou pública, para ser fiel as suas palavras.

Para Hobsbawm e Ranger (1997), os “constituintes subjetivos”, ou seja, a subjetividade de uma população está “associada a símbolos adequados”. A subjetividade do povo de um lugar associa símbolos, representações sobre o lugar em que vive ou sobre o modo de vidas sociais, adequadas, coerentes com seus modos de vida também sociais.

A forma de ver o espaço está condicionada por um momento histórico determinado, mas também o momento histórico determinado influencia o fazer do historiador.

Certeau (1979) também se refere à influência do meio na subjetividade do historiador, afirmando que todo sistema de pensamento encontra-se referido a “lugares” sociais, econômicos e culturais. O fazer da história, portanto, continua o autor, está relacionado entre um lugar e procedimentos de análise. A isso este autor chama de operação histórica.

Para ele, a operação histórica refere-se à combinação de um lugar social e de práticas científicas. E conclui que a escrita histórica se constrói em função do espaço em que está inserida ou, em outro momento, que a história é produto de um lugar.

Para Certeau (1979), o lugar tem uma dupla função: permite um tipo de produção e lhe interdita outros. A permissão e a interdição, continua o autor, são pontos cegos da pesquisa histórica, essa combinação que age no trabalho destinado a modificá-la.

A pesquisa está circunscrita pelo lugar que define uma conexão do possível com o impossível. A história se define por uma relação da linguagem com o corpo social e também com os limites colocados por esse mesmo corpo social: “[...] Toda interpretação histórica depende de um sistema de referência, que se infiltrando no trabalho de análise, organizando-o sem saber, remete a subjetividade do autor [...]” (CERTEAU, 1979).

Pode-se inferir, por este estudo de Certeau (1979), que é em função do lugar que se instauram os métodos e as indagações relativas aos documentos. A escrita representa simbolicamente um lugar, um espaço, e o espaço também define uma maneira, uma representação simbólica pelo historiador. É uma relação de mútua determinação.

Nesta mesma problemática, Lapa (1981) afirma que o historiador é sujeito histórico e produtor do conhecimento sobre a realidade histórica, portanto, sujeito e objeto do conhecimento ao mesmo tempo, em um processo interativo, ou seja, de influências recíprocas.

O conhecimento histórico produzido pelo historiador, continua Lapa (1981), é apenas uma forma teórica de apreensão do objeto pelo sujeito, dependente de sua natureza social. Não existe neutralidade científica.

Em outras palavras: o conhecimento histórico produzido pelo historiador é perpassado pelas influências sociais de seu tempo histórico, pela posição social em que se insere na sociedade, pelos métodos, técnicas, regras, leis teóricas e instrumentos de investigação existentes e assumidos, escolhidos ou selecionados por ele em suas pesquisas. “A mutabilidade do objeto leva também à mutabilidade do conhecimento” (LAPA, 1981, p.212).

Essa é a postura sobre a produção do conhecimento também estabelecida neste trabalho de pesquisa. O que se está fazendo aqui é um estudo histórico, no qual o autor sofre as influências sociais de seu meio, da posição social que ocupa e

do contexto histórico em que vive. Dessa forma, esse conhecimento será um dia superado por outros autores.

Neste sentido, é de suma importância o conceito de empatia de Rosanvallon (1995, p.22):

[...] A empatia, contrariamente à simpatia, não implica em nenhuma identificação. [...] Analisar os dados da situação na qual se encontra um autor, e apreender com riqueza a estrutura do campo histórico- intelectual no qual se move [...], analisar permanentemente a diferença entre minha situação própria e aquela que observo [...] [e citando FOULQUIÉ prossegue] ‘a empatia [...] aparece essencialmente como movimento participativo, visando a compreensão do outro na qualidade de outro e a antevisão de suas potencialidades’ [...] grifo do original.

Referem-se, muitas vezes, aos Rosado como uma família de prática política manipuladora na invenção das tradições. Mas, seria isso suficiente para fornecer toda a explicação? É preciso compreender a prática política da família Rosado dentro da estrutura histórico-intelectual em que se move.

Afirma-se, inclusive, que eles introduzem novos problemas que não existiam nos movimentos originais. Mas será que as tradições “inventadas” pelos Rosados não seriam uma necessidade imperiosa da realidade da época para manter os vínculos sociais, a coesão da sociedade? Não seria essa busca da identidade local (regionalismo) a forma como o nacionalismo brasileiro se formou por todo o país? Não seria esse movimento apenas uma sensibilidade de Dix-sept Rosado para um movimento que se gestava socialmente em todo a extensão do território brasileiro? Não seria a identidade local algo importante?

Somente os Rosado tentam identificar a história da cidade com a história de sua família, ou isso seria uma prática recorrente nas famílias tradicionais do que se convencionou chamar de Nordeste, ou quem sabe, prática recorrente de um período histórico nacional? Qual a relação entre a construção histórico-simbólica do Estado Nacional e os espaços regionais e locais, como o de Mossoró? Qual a relação entre o regionalismo e o nacionalismo na construção cultural e nas percepções espaciais do lugar?

Essas e outras questões precisam ser levantadas para problematizar e compreender o fenômeno social da Coleção Mossoroense como algo complexo.