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Relações com o corpo

No documento A atividade estética da dança do ventre (páginas 81-84)

4. DANÇA DO VENTRE COMO AMÁLGAMA DE RELAÇÕES ESTÉTICAS

4.2. Relações com o corpo

Jufih havia falado no enunciado anterior sobre diferentes modos de fazer um mesmo movimento a partir da consciência corporal: conforme a consciência do movimento esteja na musculatura, ou na articulação, ou na transferência de peso, a bailarina pode obter diferentes efeitos visuais, criando variações de um mesmo movimento. Mas o que seria exatamente essa consciência? Quando fiz essa pergunta à Jufih, ela me respondeu:

A consciência corporal eu acho que é tu perceber que tu está dentro do corpo (riso) de uma certa forma, tu perceber o teu corpo cada milímetro dele, sentir da ponta do dedo da tua mão até a ponta do dedo do teu pé, até a ponta do fio do cabelo, sabe, conseguir sentir a cada movimento o que é que aquele movimento desperta dentro de ti, e o que é que está acontecendo, que tipo de intenção tu está colocando na hora que faz o movimento, por isso que eu falo de musculatura, de articulação, a diferença é simplesmente intenção né, de tu perceber os teus ossos, por exemplo, movimento de articulação, tu tem que perceber os teus ossos, onde é que eles estão.

Para Jufih, a consciência corporal envolve sentir-se por dentro, sentir os efeitos do movimento na fisicalidade mesma do corpo. Essa consciência que diz possuir sobre seus músculos, ossos e articulações é uma consciência sensível, cinestésica, que pode ser compreendida a partir do conceito de corpo interior desenvolvido por Bakhtin: “O corpo interior – meu corpo enquanto elemento de minha autoconsciência – é um conjunto de sensações orgânicas interiores, de necessidades e desejos reunidos em torno de um centro interior...” (2003a, p.44). O corpo interior é a realidade concreta, carnal do sujeito, é a “carne mortal da vivência” (Bakhtin, 2003a, p.105).

Consoante o autor, o eu vivencia a si próprio enquanto corpo interior, sendo o corpo do outro um corpo exterior. Assim, pode-se analisar que no ato de dançar Jufih vivencia a dança desde a perspectiva do seu corpo interior, que ela enuncia como consciência corporal. Somente para o outro é que aquilo que ela sente como movimento na autoconsciência de seu corpo interior assume a forma plástico-pictural de um todo esteticamente acabado enquanto corpo exterior. Nesse sentido, enquanto dança Jufih estaria, segundo Bakhtin, no lugar próprio da personagem, pois o centro de gravidade estaria no seu próprio vivenciamento como sujeito da vida. No entanto, na dança do ventre criada em um improviso, existe um paradoxo, porque

nessa vivência estética a bailarina é ao mesmo tempo a autora que enforma e a personagem enformada.

Interessada em compreender melhor esse processo complexo de criação via improvisação, solicitei que Jufih me contasse como ele acontecia, tendo ela respondido:

É todo um trabalho de consciência corporal. A gente tem que primeiro se sentir por dentro, e como é o movimento no corpo, como a gente percebe o movimento, onde que alonga, onde que contrai (risos). Aí depois que percebe isso bem, aí a gente começa a deixar o corpo falar, é mais ou menos como se o corpo falasse. Claro que é tudo junto, tua emoção está no teu corpo, teu corpo está falando, está botando pra fora alguma emoção também. Independente de ter uma música ou de ter na tua cabeça algum tipo de emoção, só de tu fazer algum movimento com o teu quadril já te desperta alguma emoção, e tu sentir alguma coisa já te traz um movimento também, uma coisa leva à outra. E é isso que acontece no improviso pra mim, eu ouço a música e a música é como se fosse o que vai motivar a emoção em mim, vai me trazer mais emoção naquele momento e aí sentindo a música, percebendo o que o meu corpo está com vontade de fazer, aí a dança vai nascendo, sabe (risos).

Ao longo de sua enunciação, Jufih alterna diferentes lugares, ora fala a voz da professora dirigindo-se à aluna para explicar-lhe como fazer, ora a da bailarina respondendo em primeira pessoa à pesquisadora, mas em ambas as vozes ela fala a partir da própria vivência de sua relação com o corpo durante o processo criativo. A partir de sua própria experiência, portanto, Jufih define o improviso como um trabalho de consciência corporal, mediado pela música e pela emoção. Esse trabalho é motivado por uma forma de ouvir emocional, estabelecido pela bailarina entre seu corpo e a música. Nesse modo de ouvir, explica Santaella:

... a música provoca aquilo que chamo de emoção instintiva, ressonância, correspondências que são atraídas por semelhanças de pulsação. Em suma, há ritmos sonoros que apresentam correspondências com os ritmos biológicos que acompanham diferentes estados de sentir (2001, p.83).

Nesse ouvir emocional a bailarina pulsa com a música. A interrelação entre esses elementos do processo de criação – música, movimento, emoção - é complexa e não linear, pois, trata-se de uma dança em espiral, onde como explica Jufih só de tu fazer algum movimento com o teu quadril já te desperta alguma emoção, e tu sentir alguma coisa já te

traz um movimento também, uma coisa leva à outra. O fundamental é perceber o caráter dialético desse processo, onde o sujeito se desdobra em dois lugares: num onde a bailarina é afetada pela música (a música é como se fosse o que vai motivar a emoção em mim), e num lugar onde ela objetiva a emoção, transformando-a em movimento (teu corpo está falando, está botando pra fora alguma emoção). Nesse processo, portanto, o corpo da bailarina se constitui como espaço para uma escuta sensível, emotiva da música e ao mesmo tempo responsiva, pois à música que lhe desperta uma emoção seu corpo responde, por assim dizer, com um movimento emocionado.

Jufih explica que no improviso, a partir do trabalho de consciência corporal, ela deixa o corpo falar. Analisou-se anteriormente a consciência corporal de que fala a entrevistada a partir do conceito de corpo interior, ou seja, como consciência sensível do próprio corpo. No entanto, não se pode esquecer que a consciência corporal da entrevistada é resultado de um longo processo de construção de um saber corporal, desenvolvido ao longo de anos de estudo e prática da dança, a partir da apropriação de sua linguagem, ou seja, da incorporação dos movimentos básicos constitutivos da dança do ventre, que por sua vez são encorpados em um corpo moldado por anos de dança clássica. Desse modo, não se trata de um puro sentir, pois essa consciência corporal é também formativa, semioticamente mediada pelos movimentos. Na atividade estética da dança do ventre, portanto, o corpo não falará de qualquer maneira, mas se expressará mediado pelos movimentos específicos daquele gênero de dança.

Jufih afirma que é como se o corpo falasse e me pergunto: falasse o quê? Com quem? Ela mesma responde na seqüência do enunciado analisado quando faz referência ao papel da música e da emoção durante a improvisação. Ela de certo modo fala de si, pois seu corpo, dançando, está botando pra fora alguma emoção, ao mesmo tempo que fala com a música, pois seu movimento se constitui como resposta na escuta corporal sensível da música por ela dançada. Na dança que vai nascendo nessa interação da bailarina com a música seu corpo se constitui como um corpo dialógico.

Numa primeira análise, sou tentada a buscar na fala de Jufih uma lógica temporal: ela ouve a música, a música desperta uma emoção em seu corpo que então a expressa num movimento. No entanto, essa seqüência não existe no momento do dançar, em que o sujeito encontra-se como um todo, é tudo junto, como a própria bailarina explica. Numa análise mais atenta, pode-se compreender que em seu dançar o processo criativo é vivenciado por Jufih como uma unidade construída a partir de múltiplas relações. Estas relações, dela com seu corpo, com suas emoções, com a música, com a técnica, me parecem acontecer antes como interconexões do que como sucessões.

No processo criativo relatado pela bailarina, destaca-se a mediação da afetividade, uma vez que nessa interconexão de relações objetivadas na dança as emoções, intensificadas pelo modo como a música toca o sujeito, mobilizam o corpo em cujos movimentos elas encontram expressão. Essa trans-formação dos sentimentos, chamada por Vygotski (1999) de catarse, vai além da simples descarga motora da emoção, pois trata-se de sua elaboração estética via forma e, ainda que essa forma utilize o próprio corpo como meio de materialização, ao fazê-lo produz um outro corpo: o corpo dançante, um corpo encantado. Esse encantamento acontece, segundo Maheirie (2003, p.149), “porque toda emoção visa produzir um mundo mágico, um mundo imaginário, no qual o corpo se transforma num meio de ‘encantamento’ deste mundo”.

No documento A atividade estética da dança do ventre (páginas 81-84)