4. DANÇA DO VENTRE COMO AMÁLGAMA DE RELAÇÕES ESTÉTICAS
4.8. Relações com gênero
Depois de compreender a pluralidade de sentidos da dança do ventre ao longo de sua história segundo a visão da entrevistada, quis saber qual era afinal o sentido dessa dança para ela, o que Jufih me respondeu:
A dança do ventre pra mim é a dança da mulher, sabe, a dança do feminino. É uma dança assim que a gente se expressa o máximo na nossa essência feminina. É um momento que tu pode flutuar, que tu pode voar. Eu brinco com as alunas: ‘voa’. Tu pode voar, mas ao mesmo tempo tu pode às vezes ser mais firme. Tu pode estar trabalhando vários aspectos do feminino, sabe, o aspecto mais firme, mais forte, o aspecto mais suave, né, o aspecto mais lúdico, mais de brincadeira, o sensual, né, o lado sensual.
Jufih define a dança do ventre como a dança da mulher, a dança do feminino. É possível compreender que nessa definição ela apresenta o sentido mais geral da dança do ventre, o sentido que permanece através da multiplicidade de danças do ventre realizadas em diferentes tempos e em diferentes lugares. É o feminino que se afirma na dança do ventre, ainda que com diferentes valores – mítico, sagrado, profano, etc - e através de diferentes formas.
Quando Jufih diz que a dança do ventre É uma dança assim que a gente se expressa o máximo na nossa essência feminina, entendo que ela já não fala apenas por si própria, mas em nome de todas as mulheres que praticam essa dança, constituindo-a como expressão do feminino. Depois de analisar a dança do ventre como objetivação da singularidade da bailarina, faz-se necessário a partir dessa fala de Jufih buscar a compreensão do objeto dessa investigação a partir do caminho inverso, ou seja, do particular para o geral. Nesse sentido, a dança do ventre é a dança do feminino, embora o feminino, como categoria geral, não possa ganhar expressão na dança senão de modo particular. Em cada bailarina, em cada dança concretizada, o feminino se expressa como um único. A essência feminina de que fala Jufih não pode, portanto, ser pensada como um a priori, como um dado, mas como potência que na dança do ventre a bailarina trabalha em seus múltiplos aspectos, conforme ela exemplifica: o aspecto firme, o forte, o suave, o lúdico, o sensual. Segundo Bencardini, os momentos da vida de uma mulher, assim como as suas emoções podem ser expressas na dança: “A dança do
ventre é uma forma de expressar a feminilidade em seus vários aspectos: a mãe, a mulher, a amante, a filha, a anciã sábia, a guerreira, etc” (2002, p. 78).
A reflexão teórica desenvolvida no capítulo 1, na terceira parte deste trabalho, buscou compreender a questão do feminino na dança do ventre como histórica e socialmente construída, portanto desnaturalizando a noção do feminino como essência. Não se trata aqui de afirmar o contrário, mas apenas de reconhecer o feminino como o mote geral para o trabalho de enformação estética da dança do ventre. Na fala de Jufih pode-se observar que o feminino na dança do ventre é resultado desse trabalho: Tu pode estar trabalhando vários aspectos do feminino, trabalho que se constitui como um modo de produção específico sobre os corpos. Somente depois de incorporar determinados movimentos e atitudes cênicas enformadoras dessas diferentes facetas do feminino, a bailarina pode “naturalmente” expressá-las através da dança.
Para a entrevistada a dança do ventre é a dança do feminino. E para o outro? Perguntei a Jufih como alguém que estivesse na platéia a definira dançando, sendo esta sua resposta:
Pode ser que alguém me olhando de fora me defina como a manifestação da energia do feminino.
Entende-se, a partir de Bakhtin (1976, 2003a), que o sentido vivo de uma obra se constitui no seu encontro dialógico com o contemplador. Para Jufih pode ser que o contemplador a defina como a manifestação da energia do feminino. Na verdade, percebo agora que a pergunta que lhe fiz em certo sentido a convida a imaginar-se no lugar exterior daquele que a vê dançando. Desde esse lugar exotópico de alguém olhando de fora, defini-la como a manifestação da energia do feminino é apontada por Jufih como uma possibilidade de leitura pelo espectador. Outras leituras também seriam possíveis, pois a dança é polissêmica, seu sentido é instaurado no encontro com outros sentidos, na tensão dialógica entre os sentidos da dança para o autor e os sentidos para o contemplador.
Na continuação de seu enunciado, Jufih continua falando sobre o feminino na dança do ventre, porém agora a partir de sua relação com o masculino:
Acho que quem olha alguém dançando vê a energia do feminino, claro que tem ali junto um pouco de masculino também, porque a gente não é só o feminino. O feminino está dentro do masculino e o masculino está dentro do feminino, na verdade é tudo uma coisa interagindo com a outra. Mas eu sinto que a dança do ventre ela dá uma potencializada no feminino, no lado feminino, pra talvez buscar um equilíbrio, porque a gente tem o masculino, mas o feminino está em maior peso eu acredito na mulher, e no homem tem feminino, mas o masculino está mais fortalecido.
Nessa fala Jufih desconstrói a noção essencialista de feminino na dança do ventre: a gente não é só o feminino. Mas o que é o feminino para a entrevistada? Poderíamos interpretá- lo a partir da categoria de gênero? A princípio pareceria que sim, pois em sua fala destaca-se o caráter fundamentalmente relacional do gênero, constituindo-se na interação entre feminino e masculino. No entanto, a categoria de gênero pressupõe essa interação como oposição entre sujeitos: “Gênero entendido como um conceito relacional que pressupõe o masculino e o feminino se constituindo culturalmente nas relações de oposição (não necessária ou idealmente antagônicas) entre o homem e a mulher” (Lago, 1994, p.171).
Na interação de que fala Jufih, por outro lado, o feminino e o masculino não se opõem, mas se complementam, estando um dentro do outro e ambos presentes num mesmo sujeito, tanto no homem como na mulher, ainda que em diferentes proporções: a gente tem o masculino, mas o feminino está em maior peso eu acredito na mulher. Quando Jufih fala que a dança do ventre potencializa o lado feminino, entende-se, portanto, que esse não é o único lado da mulher, embora seja esse o lado mais enfocado na dança do ventre.
Analisando sua fala a partir da perspectiva dialógica, pergunta-se: será que necessariamente, ao constituir-se como sujeito generificado, a pessoa se apropria da significação social de gênero reproduzindo sua oposição básica? Ou será que há espaço para criação de novos modos de subjetivação e objetivação, a partir da ressignificação desse discurso pelo sujeito singular que dele se apropria? A resposta de Jufih parece apontar nessa segunda direção, uma vez que, em última análise, vai além da divisão binária homem- masculino/mulher-feminino, substituindo a lógica do masculino ou feminino, pela co- existência do feminino e masculino num mesmo sujeito. O feminino não se constitui como negação do masculino, mas como força que se afirma na relação dialógica com ele. Essa dialogia entre o feminino e o masculino é também constitutiva da dança do ventre:
Aí na dança do ventre a gente manifesta vários aspectos do feminino desde a mulher mais forte até a mulher mais doce, mas também tem momentos assim que a gente usa um pouco a característica masculina, quando é um momento mais pesado assim, um momento mais firme, mais calculado, aí eu to sendo mais, usando um pouco a energia masculina, por exemplo bastão, dabcke, mas sendo feminina, você é feminina, mas você usa um pouco a energia masculina em alguns momentos, mas de forma feminina.
A bailarina faz referência a duas danças folclóricas, bastão e dabke, originalmente executadas por homens e que hoje são dançadas também pelas mulheres. São danças de força,
cuja música tem um ritmo forte49, com batidas pesadas, exigindo da bailarina o uso de mais força para compor uma atitude cênica diferenciada em relação à dança clássica, onde pode ser mais melódica, mais suave. No entanto, Jufih afirma que mesmo usando a “energia masculina” nesses estilos folclóricos, a bailarina o faz sendo feminina. O que muda?
Acredito que é o lugar simbólico, sendo esse social e culturalmente construído, subjetivo e objetivo ao mesmo tempo, de onde a dança é executada e a partir do qual é vista pelo outro. Em que posição de sujeito Jufih se situa? Em sua fala, ao mesmo tempo em que admite a presença do masculino na mulher, afirma a predominância do feminino e situa a dança do ventre como lugar especial de objetivação e subjetivação do feminino, pois, segundo ela, essa dança dá uma potencializada no feminino. Essa potencialização do feminino resulta, a meu ver, do trabalho estético que a bailarina realiza sobre si mesma através da dança do ventre, reafirmando, por meio dela, o desejo de alguém que se faz sujeito inscrevendo seu corpo num lugar simbólico socialmente reconhecido como feminino. Nas palavras da entrevistada:
A dança do ventre pra mim é a dança da mulher, sabe, a dança do feminino (...) É o momento assim que eu me sinto mais mulher né, é o momento que eu posso ser mais mulher, na verdade, porque hoje em dia a gente anda esquecendo esse lado.
Jufih, ao afirmar que na dança do ventre pode ser mais mulher, leva-nos a analisar essa atividade como uma vivência do feminino pela bailarina, uma vivência em que ele é potencializado justamente por sua dimensão construtiva, pois na dança do ventre o feminino é enformado esteticamente, transformando-se em uma obra de arte que traz a singuralidade do sujeito que assina sua criação e que, por meio dela, afirma-se como mulher perante o outro que a co-cria.
49 Sobre o ritmo Said, usada na dança com bastão, escreve Bencardini: “Estudiosos da cultura árabe dizem que
em princípio esse ritmo era dançado apenas por homens que simulavam batalhas com seus longos bastões, sendo também um treinamento para lutas” (2002, p.66).