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Relações com gênero

No documento A atividade estética da dança do ventre (páginas 129-134)

4. DANÇA DO VENTRE COMO AMÁLGAMA DE RELAÇÕES ESTÉTICAS

4.8. Relações com gênero

Depois de compreender a pluralidade de sentidos da dança do ventre ao longo de sua história segundo a visão da entrevistada, quis saber qual era afinal o sentido dessa dança para ela, o que Jufih me respondeu:

A dança do ventre pra mim é a dança da mulher, sabe, a dança do feminino. É uma dança assim que a gente se expressa o máximo na nossa essência feminina. É um momento que tu pode flutuar, que tu pode voar. Eu brinco com as alunas: ‘voa’. Tu pode voar, mas ao mesmo tempo tu pode às vezes ser mais firme. Tu pode estar trabalhando vários aspectos do feminino, sabe, o aspecto mais firme, mais forte, o aspecto mais suave, né, o aspecto mais lúdico, mais de brincadeira, o sensual, né, o lado sensual.

Jufih define a dança do ventre como a dança da mulher, a dança do feminino. É possível compreender que nessa definição ela apresenta o sentido mais geral da dança do ventre, o sentido que permanece através da multiplicidade de danças do ventre realizadas em diferentes tempos e em diferentes lugares. É o feminino que se afirma na dança do ventre, ainda que com diferentes valores – mítico, sagrado, profano, etc - e através de diferentes formas.

Quando Jufih diz que a dança do ventre É uma dança assim que a gente se expressa o máximo na nossa essência feminina, entendo que ela já não fala apenas por si própria, mas em nome de todas as mulheres que praticam essa dança, constituindo-a como expressão do feminino. Depois de analisar a dança do ventre como objetivação da singularidade da bailarina, faz-se necessário a partir dessa fala de Jufih buscar a compreensão do objeto dessa investigação a partir do caminho inverso, ou seja, do particular para o geral. Nesse sentido, a dança do ventre é a dança do feminino, embora o feminino, como categoria geral, não possa ganhar expressão na dança senão de modo particular. Em cada bailarina, em cada dança concretizada, o feminino se expressa como um único. A essência feminina de que fala Jufih não pode, portanto, ser pensada como um a priori, como um dado, mas como potência que na dança do ventre a bailarina trabalha em seus múltiplos aspectos, conforme ela exemplifica: o aspecto firme, o forte, o suave, o lúdico, o sensual. Segundo Bencardini, os momentos da vida de uma mulher, assim como as suas emoções podem ser expressas na dança: “A dança do

ventre é uma forma de expressar a feminilidade em seus vários aspectos: a mãe, a mulher, a amante, a filha, a anciã sábia, a guerreira, etc” (2002, p. 78).

A reflexão teórica desenvolvida no capítulo 1, na terceira parte deste trabalho, buscou compreender a questão do feminino na dança do ventre como histórica e socialmente construída, portanto desnaturalizando a noção do feminino como essência. Não se trata aqui de afirmar o contrário, mas apenas de reconhecer o feminino como o mote geral para o trabalho de enformação estética da dança do ventre. Na fala de Jufih pode-se observar que o feminino na dança do ventre é resultado desse trabalho: Tu pode estar trabalhando vários aspectos do feminino, trabalho que se constitui como um modo de produção específico sobre os corpos. Somente depois de incorporar determinados movimentos e atitudes cênicas enformadoras dessas diferentes facetas do feminino, a bailarina pode “naturalmente” expressá-las através da dança.

Para a entrevistada a dança do ventre é a dança do feminino. E para o outro? Perguntei a Jufih como alguém que estivesse na platéia a definira dançando, sendo esta sua resposta:

Pode ser que alguém me olhando de fora me defina como a manifestação da energia do feminino.

Entende-se, a partir de Bakhtin (1976, 2003a), que o sentido vivo de uma obra se constitui no seu encontro dialógico com o contemplador. Para Jufih pode ser que o contemplador a defina como a manifestação da energia do feminino. Na verdade, percebo agora que a pergunta que lhe fiz em certo sentido a convida a imaginar-se no lugar exterior daquele que a vê dançando. Desde esse lugar exotópico de alguém olhando de fora, defini-la como a manifestação da energia do feminino é apontada por Jufih como uma possibilidade de leitura pelo espectador. Outras leituras também seriam possíveis, pois a dança é polissêmica, seu sentido é instaurado no encontro com outros sentidos, na tensão dialógica entre os sentidos da dança para o autor e os sentidos para o contemplador.

Na continuação de seu enunciado, Jufih continua falando sobre o feminino na dança do ventre, porém agora a partir de sua relação com o masculino:

Acho que quem olha alguém dançando vê a energia do feminino, claro que tem ali junto um pouco de masculino também, porque a gente não é só o feminino. O feminino está dentro do masculino e o masculino está dentro do feminino, na verdade é tudo uma coisa interagindo com a outra. Mas eu sinto que a dança do ventre ela dá uma potencializada no feminino, no lado feminino, pra talvez buscar um equilíbrio, porque a gente tem o masculino, mas o feminino está em maior peso eu acredito na mulher, e no homem tem feminino, mas o masculino está mais fortalecido.

Nessa fala Jufih desconstrói a noção essencialista de feminino na dança do ventre: a gente não é só o feminino. Mas o que é o feminino para a entrevistada? Poderíamos interpretá- lo a partir da categoria de gênero? A princípio pareceria que sim, pois em sua fala destaca-se o caráter fundamentalmente relacional do gênero, constituindo-se na interação entre feminino e masculino. No entanto, a categoria de gênero pressupõe essa interação como oposição entre sujeitos: “Gênero entendido como um conceito relacional que pressupõe o masculino e o feminino se constituindo culturalmente nas relações de oposição (não necessária ou idealmente antagônicas) entre o homem e a mulher” (Lago, 1994, p.171).

Na interação de que fala Jufih, por outro lado, o feminino e o masculino não se opõem, mas se complementam, estando um dentro do outro e ambos presentes num mesmo sujeito, tanto no homem como na mulher, ainda que em diferentes proporções: a gente tem o masculino, mas o feminino está em maior peso eu acredito na mulher. Quando Jufih fala que a dança do ventre potencializa o lado feminino, entende-se, portanto, que esse não é o único lado da mulher, embora seja esse o lado mais enfocado na dança do ventre.

Analisando sua fala a partir da perspectiva dialógica, pergunta-se: será que necessariamente, ao constituir-se como sujeito generificado, a pessoa se apropria da significação social de gênero reproduzindo sua oposição básica? Ou será que há espaço para criação de novos modos de subjetivação e objetivação, a partir da ressignificação desse discurso pelo sujeito singular que dele se apropria? A resposta de Jufih parece apontar nessa segunda direção, uma vez que, em última análise, vai além da divisão binária homem- masculino/mulher-feminino, substituindo a lógica do masculino ou feminino, pela co- existência do feminino e masculino num mesmo sujeito. O feminino não se constitui como negação do masculino, mas como força que se afirma na relação dialógica com ele. Essa dialogia entre o feminino e o masculino é também constitutiva da dança do ventre:

Aí na dança do ventre a gente manifesta vários aspectos do feminino desde a mulher mais forte até a mulher mais doce, mas também tem momentos assim que a gente usa um pouco a característica masculina, quando é um momento mais pesado assim, um momento mais firme, mais calculado, aí eu to sendo mais, usando um pouco a energia masculina, por exemplo bastão, dabcke, mas sendo feminina, você é feminina, mas você usa um pouco a energia masculina em alguns momentos, mas de forma feminina.

A bailarina faz referência a duas danças folclóricas, bastão e dabke, originalmente executadas por homens e que hoje são dançadas também pelas mulheres. São danças de força,

cuja música tem um ritmo forte49, com batidas pesadas, exigindo da bailarina o uso de mais força para compor uma atitude cênica diferenciada em relação à dança clássica, onde pode ser mais melódica, mais suave. No entanto, Jufih afirma que mesmo usando a “energia masculina” nesses estilos folclóricos, a bailarina o faz sendo feminina. O que muda?

Acredito que é o lugar simbólico, sendo esse social e culturalmente construído, subjetivo e objetivo ao mesmo tempo, de onde a dança é executada e a partir do qual é vista pelo outro. Em que posição de sujeito Jufih se situa? Em sua fala, ao mesmo tempo em que admite a presença do masculino na mulher, afirma a predominância do feminino e situa a dança do ventre como lugar especial de objetivação e subjetivação do feminino, pois, segundo ela, essa dança dá uma potencializada no feminino. Essa potencialização do feminino resulta, a meu ver, do trabalho estético que a bailarina realiza sobre si mesma através da dança do ventre, reafirmando, por meio dela, o desejo de alguém que se faz sujeito inscrevendo seu corpo num lugar simbólico socialmente reconhecido como feminino. Nas palavras da entrevistada:

A dança do ventre pra mim é a dança da mulher, sabe, a dança do feminino (...) É o momento assim que eu me sinto mais mulher né, é o momento que eu posso ser mais mulher, na verdade, porque hoje em dia a gente anda esquecendo esse lado.

Jufih, ao afirmar que na dança do ventre pode ser mais mulher, leva-nos a analisar essa atividade como uma vivência do feminino pela bailarina, uma vivência em que ele é potencializado justamente por sua dimensão construtiva, pois na dança do ventre o feminino é enformado esteticamente, transformando-se em uma obra de arte que traz a singuralidade do sujeito que assina sua criação e que, por meio dela, afirma-se como mulher perante o outro que a co-cria.

49 Sobre o ritmo Said, usada na dança com bastão, escreve Bencardini: “Estudiosos da cultura árabe dizem que

em princípio esse ritmo era dançado apenas por homens que simulavam batalhas com seus longos bastões, sendo também um treinamento para lutas” (2002, p.66).

No documento A atividade estética da dança do ventre (páginas 129-134)