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5 LIBERDADE RELIGIOSA E RELAÇÕES DE TRABALHO

5.2 RELAÇÕES DE TRABALHO

Hannah Arendt explana que “o trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, onde tal existência não está necessariamente

438

Cf. BAHIA, Saulo, “Poder Judiciário e direitos humanos”, ob. cit.

439

MACHADO, Clara Cardoso. Direitos fundamentais sociais, políticas públicas e controle jurisdicional do orçamento. Dissertação de mestrado. – Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2010, p. 11-12.

contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último”. 440

Segundo a autora, o trabalho produz um mundo ‘artificial’ de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais.

Ainda se destaca: “O trabalho e seu produto, o artefato humano, emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano” 441. A partir destas noções, podemos agora adentrar no contexto em que a Ciência do Direito passa a disciplinar as relações contratuais de trabalho.

É certo que o objeto do contrato de trabalho não é a pessoa do trabalhador, mas sua atividade, ou sua energia laborativa. Como o contrato de trabalho gera uma relação de trato sucessivo ou de execução continuada, ele absorve boa parte do tempo e da energia da pessoa do trabalhador. Portanto o envolvimento pessoal do trabalhador no cumprimento das obrigações por força do contrato de trabalho não representa um episódio passageiro no desenvolvimento de sua vida cotidiana.

O trabalhador compromete sua própria pessoa no cumprimento das obrigações contratuais. Em consequência, a implicação da pessoa do trabalhador na execução do contrato de trabalho afeta não somente seus interesses profissionais, mas também seus interesses pessoais (saúde, intimidade, integridade física, tempo livre etc). 442

O contrato de trabalho cria determinada relação jurídica, que é a própria relação de emprego. E a relação jurídica, por sua vez, é o vínculo que impõe a subordinação do prestador de serviços ao empregador, o qual detém o poder diretivo. 443

Alice Monteiro de Barros afirma que a relação jurídica estabelece-se entre sujeitos de direito, e não entre sujeito e objeto, pois ela somente existe entre pessoas. Desta forma, a relação jurídico-trabalhista estabelece, por força de lei (art. 2° e 3° da CLT), a posição do poder de uma pessoa e a respectiva posição de dever da outra, para a tutela de um interesse, ou seja, o valor relativo que um determinado bem representa para o sujeito. 444

440

Cf. ARENDT, ob. cit., p. 15.

441

Cf. ARENDT, ob. cit., p. 16.

442

Cf. ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 3.ed. rev. e aumentada. – São Paulo: LTr, 2009, p. 215.

443

Cf. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2008, p. 232.

444

Segundo a autora, este seria o conceito de contrato de trabalho:

“É o acordo expresso (escrito ou verbal) ou tácito firmado entre uma pessoa física (empregado) e outra pessoa física, jurídica ou entidade (empregador), por meio do qual o primeiro se compromete a executar, pessoalmente, em favor do segundo, um serviço de natureza não-eventual, mediante salário e subordinação jurídica”. 445

A nota típica, portanto, do contrato de trabalho é a subordinação jurídica, uma vez que é exatamente esta subordinação que irá distinguir o contrato de trabalho dos contratos que lhe são afins e, evidentemente, o trabalho subordinado do trabalho autônomo. 446

Não menos certo, porém, é que não se pode separar o trabalho da pessoa daquele que o presta. A impossibilidade de separar o trabalho da pessoa do trabalhador é o primeiro dado sobre o qual se baseia o critério objetivo que caracteriza a subordinação. Fácil é concluir, portanto, que na execução do contrato de trabalho, o empregado reúne a dupla qualidade de titular de direitos fundamentais que lhe assistem como cidadão e de titular de direitos fundamentais aplicáveis estritamente no âmbito da relação de emprego. 447

O traço característico da subordinação jurídica é a observância a diretivas constantes sobre o modo e o tempo em que deverá ser executada a prestação de serviços. É de se ressaltar, de antemão, que existem situações nas quais as circunstâncias geralmente consideradas para qualificar a relação jurídica como de emprego encontram-se muito difusas, dando azo ao surgimento de um terceiro gênero, intitulado trabalho parassubordinado. 448

Este último significa, na dicção de Murilo Sampaio de Oliveira:

O trabalho parassubordinado é uma categoria intermediária entre o autônomo e o subordinado, abrangendo tipos de trabalhos que não se enquadram exatamente em uma das duas modalidades

445

Cf. BARROS, Alice Monteiro, ob. cit., p. 233. Dentre os caracteres do contrato de trabalho, a autora elenca os seguintes: “trata-se de um contrato de direito privado, sinalagmático, de execução continuada, consensual, intuitu personae em relação ao empregado, oneroso e do tipo subordinativo”.

446

Idem, p. 233.

447

ROMITA, ob. cit., p. 211

448

tradicionais, entre as quais se situam a representação comercial, o trabalho dos profissionais liberais e outras atividades atípicas, onde o trabalho é prestado com pessoalidade, continuidade e coordenação. Seria a hipótese, se cabível, do trabalho autônomo com características assemelháveis ao trabalho subordinado. 449

O direito do trabalho convive atualmente com o fenômeno da parassubordinação, que significa simplesmente prestação de trabalho com grande autonomia por parte do prestador.

Até a EC n. 45/04, não se admitia a provocação da Justiça do Trabalho para o exame de tais conflitos, dada a vinculação à análise das controvérsias inerentes à relação de emprego, marcada, como cediço, pelo fenômeno da subordinação. A parassubordinação, em rigor, determinava, de imediato, o afastamento do juiz do trabalho quanto à apreciação do dissídio.

Por conseqüência, temos que o art. 114, I, autoriza o envio aos órgãos jurisdicionais trabalhistas de dissídios que, agora, envolvam trabalhadores em regime de parassubordinação, como se sucede, por exemplo, com os representantes comerciais autônomos contratados rigorosamente de acordo com as prescrições da Lei n. 4.886/65, alterada pela Lei n. 8.420/92. 450

Quanto ao tema da parassubordinação, assim conclui Manoel Jorge e Silva Neto:

“Aderimos à corrente restritiva da competência material da Justiça do Trabalho, concluindo o seguinte: a) persiste, obviamente, a competência para o julgamento de ações entre empregado e empregador; b) a "relação de trabalho" compreendida na sua competência não se estende para o exame de controvérsias de trabalhadores autônomos (médicos, arquitetos, corretores, advogados, etc.) — salvo se lei ordinária dispuser expressamente a respeito, conforme faculta o art. 114, IX —, mas tão-só de relações de trabalho caracterizadas pela antedita parassubordinação, como acontece com os representantes comerciais autônomos”.

449

Cf. OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio, In As novas faces do direito do trabalho: estudos em memória de Gilberto Gomes. Org. João Alves Neto. Salvador. – Salvador: Quarteto, 2006, p. 299.

450

Num ramo da Ciência Jurídica em que o objeto útil dos contratos é a própria força de trabalho da pessoa humana, ou seja, uma projeção de sua personalidade, a vulnerabilidade dos direitos fundamentais de tantos quantos laborem sob subordinação é especialmente aguçada; e, no entanto, a imensa maioria das ações propostas na Justiça do Trabalho não persegue a satisfação dos conteúdos de direitos fundamentais como a vida, a integridade física, a liberdade, a honra, a privacidade ou a informação, mas apenas a quitação de direitos de crédito de estrita aferição patrimonial.

Citando a doutrina de Délio Maranhão, Arion Sayão Romita destaca já ser pacífico há muito tempo o entendimento de que, dentre as obrigações assumidas pelo empregador por força da celebração do contrato de trabalho, está a ‘obrigação de respeitar a personalidade moral do empregado na sua dignidade absoluta de pessoa humana’. Ou seja: “No âmbito da relação de trabalho, os direitos fundamentais correspondem à projeção da dignidade da pessoa humana na disciplina jurídica do contrato”. 451

O dever que tem o empregador de dispensar tratamento digno ao empregado está na raiz da obrigação de respeitar os direitos fundamentais do obreiro. Esta obrigação tem por conteúdo o respeitos aos direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, que se relacionam com os direitos fundamentais, considerados de maneira genérica.

O eixo ideológico desta construção doutrinária não é outro senão o reconhecimento da Drittwirkung, ou seja, da eficácia em face do empregador dos direitos fundamentais do empregado na execução do contrato de trabalho. 452

Não se admite que, em meio aos milhões de contratos formais de emprego que existem no Brasil, as lesões ou ameaças de lesão a direitos fundamentais sem expressão patrimonial (vida, integridade, liberdade, informação, etc.) reduzam-se a números tão marginais. Nesse sentido, assim se manifesta Guilherme Guimarães Feliciano:

“[...] A subordinação jurídica do trabalhador torna-se instrumento de opressão e tirania no âmbito das unidades produtivas, conquanto sem a visibilidade de outrora. Na sociedade pós-moderna, a reificação do homem trabalhador dá-se à margem da grande empresa, mas para o seu proveito nas complexas estratégias de reengenharia, empowerment e terceirização. A discriminação do trabalhador negro ganha foros de normalidade,

451

Cf. ROMITA, ob. cit., p. 215-6.

452

desvelando-se nos anúncios de emprego que exigem "boa aparência". Não vai atrás a discriminação da mulher e do portador de deficiência no mercado de trabalho. O trabalho escravo é redescoberto no meio rural, ao lado do trabalho infanto-juvenil, sob a batuta de "gatos", aliciadores ou cooperativas de mão-de-obra. Revela-se ainda nas relações domésticas, onde a miséria e a paradoxal solidão do mundo globalizado convergem para a proliferação das "filhas de ocasião", que se sujeitam à servidão humana por anos a fio em troca de alimento e moradia. Nas unidades fabris, inclusas as da grande empresa, os números oficiais de acidentes de trabalho continuam despontando entre os maiores do planeta, anunciando a privação de tudo quanto constitui a própria humanidade do trabalhador: a sua compleição somática (nas mutilações), a sua saúde (nas moléstias), a sua tranqüilidade (nos transtornos psíquicos); por vezes, a sua existência (nos eventos fatais). 453

A isso ainda se soma o fato de os trabalhadores preferirem aguardar o término regular dos contratos de trabalho para reclamar, em juízo, todos os direitos violados, sempre pela ótica exclusiva do fator indenizatório. A gravidade aí reside, pois, consumadas as lesões, é impraticável a restituição ao "status quo ante".

Essa é, por evidente, uma disfunção do sistema brasileiro de tutela processual trabalhista. Há meios processuais para corrigi-la, os quais devem estar aliados a uma conscientização difusa dos operadores jurídicos quanto às possibilidades e aos

benefícios da tutela judicial preventiva e/ou restauradora nos quadros de violação dos

direitos fundamentais dos trabalhadores.