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5 LIBERDADE RELIGIOSA E RELAÇÕES DE TRABALHO

5.1 A SOBRECARGA ÉTICA DO DIREITO

É importante explicar rapidamente aqui, porém, como a necessidade de tolerância sobrecarrega o direito positivo nessa sua função inusitada de ser, agora na pós-modernidade, o único ambiente ético comum, pois as demais ordens éticas, como a religião e a moral, perderam importância social, diluindo-se e isolando-se em uma progressiva diferenciação.

João Maurício Adeodato aponta a “possibilidade sempre presente de modificar rapidamente os conteúdos éticos do direito positivo, ocorrida com a dogmatização do direito ocidental”, fato que levou a uma disponibilidade de conteúdos éticos nunca vista. Assim, o direito passa a ensejar a tolerância, pois garante um espaço público comum, tendo o direito constitucional uma função precípua neste contexto. 430

O grande problema é que as fronteiras da tolerância precisam ser definidas. Primeiro, a diferenciação do direito em relação às demais ordens éticas; depois, a pulverização das ordens éticas, que tradicionalmente apoiavam o direito, faz com que

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elas se tornem meramente individualizadas ou vinculadas a pequenos grupos, inviabilizando sua função social de amortecedor e solucionador de conflitos.

“Em lugar de serem trazidos para o âmbito do direito apenas os conflitos mais agudos, como era tradicionalmente sua função, todo tipo de problema vem sobrecarregá-lo. Relações de vizinhança, conflitos familiares, problemas entre professores e alunos, tudo isso vai se distanciando dos âmbitos de autoridade moral e religiosa, por exemplo, para vir sobrecarregar a coercitividade do direito”. 431

De acordo com João Maurício Adeodato, o importante é ter em mente que as ordens normativas tradicionalmente funcionaram de modo coordenado, atualizando a capacidade de prometer condutas futuras e assim controlando as expectativas mútuas de comportamento. “Com a complexidade social, porém, há uma dissociação entre elas, que se tornam mais e mais independentes umas das outras, pulverizadas a ponto de cada grupo ou mesmo indivíduo ostentar sua própria moral, sua religião, sua orientação se- xual específica, sua posição política (ou apolítica), suas regras de etiqueta”.

Assim essas ordens normativas, que enfraqueciam os conflitos sociais, perdem tal função agregadora e deixam o direito como único meio de tratamento de conflitos realmente significativo no âmbito da sociedade complexa.

Essa sobrecarga do direito implica uma sobrecarga também do Estado, pois, na modernidade, a pretensão de monopólio estatal da jurisdição faz com que Estado e direito passem a ter funções muito próximas, quase que se confundindo. Se o direito se sobrecarrega, o mesmo ocorre com as responsabilidades que o Estado se arvora a respeito do tratamento dos conflitos jurídicos (fixação de condutas relevantes, proibição do non liquet, monopólio da jurisdição, plenitude hermética do ordenamento jurídico etc).

Já que o justo passa a ser revelado pelo resultado do procedimento, em termos de distribuição de competências e ritos de elaboração de regras, os conteúdos éticos do direito, que certamente estão presentes no caso concreto, passam a ser altamente voláteis e circunstanciais.

Daí a necessidade da tolerância, a relativização paradoxal das determinações éticas que constrangem a conduta. O direito contemporâneo precisa garantir esses muros

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e fios de prumo (nomos), essas condições para o embate de ideologias, interesses e expectativas: as mais bem-sucedidas vão se transformar em conteúdos éticos circunstanciais de normas jurídicas; as demais permanecerão em protesto, buscando positivação.

Assim como grosseria não implica coragem, tolerância tampouco significa aceitar qualquer atitude, não quer dizer pusilanimidade. Tolerância e bonomia não devem aparecer como covardia. Plutarco vai muito mais além da tolerância porque pensa de uma perspectiva moral edificante: “Sem dúvida não se vingar de um inimigo, quando a ocasião se apresenta, é humanidade! Mas compadecer-se dele quando está prostrado e assisti-lo quando está na miséria, aí está a verdadeira generosidade”'. 432

Por outro lado, a justiça do amor não é a justiça de que cuida a função normativa do direito positivo. Justiça jurídica é reagir aos maus e aos incompetentes, é administrar as desigualdades de todos os tipos existentes no meio social, é castigar os eticamente mais hipossuficientes. Os invejosos, ingratos e concupiscentes são tratados por outros sistemas de normas éticas.

A necessidade dessa justiça jurídica dá-se porque a própria ideia de tolerância é paradoxal e também precisa ser criticada, pois pode levar à indiferença, por um lado, ou à covardia, isto é, a tolerância dos intolerantes, a pusilanimidade da tolerância levada a extremos. 433

Em um ambiente no qual a liberdade realmente se efetivasse, não seria necessária tolerância, este o "paradoxo da tolerância". 434

Parodiando Goethe, pode-se dizer que a verdadeira tolerância precisa levar ao “reconhecimento”, pois o simples “tolerar” traz uma carga pejorativa, uma concessão de quem tolera por ser superior. Então, enfrentar o paradoxo significa tentar conciliar os princípios de tolerância e igualdade.

Assiste razão a Kelsen. Só a tolerância para com as diferenças éticas pode descarregar o direito moderno e dar mais funcionalidade às normas não coercitivas de convivência social.

E por isso que Kelsen vai dizer que a democracia não se caracteriza somente pela prevalência do princípio da maioria: “A dominação da maioria, que é tão característica da democracia, diferencia-se de qualquer outra forma de dominação

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Cf. ADEODATO, ob. cit., p. 139.

433

Idem, p. 140.

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porque, em sua mais íntima essência, não apenas pressupõe conceitualmente uma oposição — a minoria -, mas também a reconhece politicamente”.

Ora, a existência necessária da minoria exige a convivência entre lados diferentes, justamente a tolerância que a democracia enseja, na medida em que garante a existência de maiorias e minorias, conceitos correlatos, que se exigem reciprocamente.

“O pluralismo religioso tem como consequência a secularização do Estado, que propõe como finalidade do direito o estabelecimento de uma ordem social que assegure aos membros da comunidade política uma coexistência pacífica, sejam quais forem suas concepções religiosas”. A tolerância recíproca adquire até outra caracterização, sob a forma de ecumenismo. 435

Sugere, com isso, que o Brasil de tantas éticas é também o Brasil de inúmeras confissões religiosas. (...) “A contínua migração religiosa, o crescimento das seitas, um certo ecletismo confessional a permitir o convívio de ritos diversos”. A mesma pessoa que se diz católica frequenta centros espíritas ou recebe ‘passes’, não se recusando também a comparecer a cultos afroindígenas, aceitar o jorei e, inclusive, ser supersticiosa. 436

Saulo Casali aponta: “pela falta de uma cronologia histórica estrita, existe, segundo muitos, a maior pertinência em se falar de “dimensões” de direitos, ao invés de “gerações” de direitos”.

Isto porque, conforme referido autor, haveria, na evolução dos direitos fundamentais e nos países emergentes como o Brasil, “uma espécie de desenvolvimento combinado, tal como falava Trotsky, onde índios deixaram de utilizar arcos e flechas e passaram de imediato a fazer uso de rifles, sem fazerem uso das armas que tenham evoluído entre estes extremos. Aproximaram-se etapas diversas, o arcaico com o novo”.437

Desta feita, cumpre transcrever a doutrina de Saulo Casali Bahia:

435

Cf. PERELMAN, Chäim. Ética e direito, p. 314-5, citado por NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 7. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 253.

436

Idem, p. 252.

437

Cf. BAHIA, Saulo José Casali. in “Poder Judiciário e direitos humanos”, texto produzido para a palestra de abertura do Módulo III – Direito Previdenciário (Curso), promovido pela Escola de Magistratura do Tribunal Regional Federal da 4ª Região - EMAGIS, em 30 de agosto de 2007. Disponível em

<<http://www.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/aft_PODER%20JUDICIARIO%20E%20DIREITOS%20HU MANOS.pdf>> acesso em 07/03/2011.

“No Brasil, assim, enquanto ainda não se garantiu efetivamente o direito à liberdade profissional (vide os crônicos casos de trabalho escravo ainda existentes), já se produziu o desenvolvimento de certos direitos sociais ou econômicos em escala comparada ao primeiro mundo. Não haveria, então, em países que vivem saltos evolutivos em matéria de direitos fundamentais, condições de se falar em gerações de direitos, tal como teria ocorrido na Europa, quando a primeira geração (direitos individuais e políticos) foi sucedida por uma segunda (direitos sociais e econômicos), e, após, por uma terceira geração (direitos à paz e à segurança), apenas quando consolidados os direitos pertinentes à etapa anterior”. 438

Ante o exposto, concluiremos este item com a citação das ideias de Clara Cardoso Machado. Segundo a autora:

“A sociedade vive, atualmente, em um contexto híbrido entre a necessidade de um Estado intervencionista social de direito (modernidade tardia) e o neoliberalismo econômico (pós-modernidade tracejada). Bem por isso, parece mais escorreito aludir a um Estado Constitucional e Democrático de Direito que vise à realização do Estado Social em meio às expectativas da pós-modernidade”. Equilibrar esses dois ângulos não é tarefa fácil, principalmente quando a procura pelo desenvolvimento econômico não se perfaz em conjunto com o bem-estar social. O descompasso entre a enorme quantidade de textos normativos e suas reais concretizações torna evidente a necessidade de materializar as aspirações da sociedade que, ao menos, garantam aos indivíduos uma vida com dignidade. 439