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4. AS TRANSFORMAÇÕES DO SISTEMA DE PRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

4.1. PRIMEIRAS ATIVIDADES PRODUTIVAS DIRECIONADAS AO COMÉRCIO

4.2.1. RELAÇÕES ECONÔMICAS NO PERÍODO DA BORRACHA (MERCANTIL

(MERCANTIL E DE RECIPROCIDADE)

A comercialização da borracha na Ilha do Capim era feita em uma bodega que ficava no setor Caratateua, em um local chamado de igarapé Cachoeirinha, que pertencia a um descendente dos primeiros donos da ilha. Chamava-se Mundico, e era o principal seringalista da época. Toda a produção era trazida para esse local e não podia ser vendida em outro lugar. Ele vendia a borracha para uma empresa de Belém chamada Bittar. A comercialização no período da borracha ocorria preponderantemente pelo

seringueira e colocar a cuia e seis horas depois iam coletar o leite extraído e por último a defumação do látex para obter a borracha fina.

10 Tipo de borracha que não precisava ser defumada para ser comercializada.

11 Uma estrada de borracha representa o caminho que o ribeirinho anda e onde se encontra um número

sistema de terça12. Nesse período havia também o aviamento13, que vamos descrever no tópico seguinte.

No período da borracha, a maioria das terras eram concentradas na mão de um pequeno grupo de pessoas que eram donos. Com o crescimento do extrativismo da borracha, muitas famílias chegaram em busca de trabalho e como não tinham acesso à terra, pagavam a terça. A terça se intensificou com a chegada dos novos seringueiros e funcionava como um pagamento ao dono da terra para o seringueiro poder desenvolver suas atividades. De acordo com o entrevistado: "olha, a terça funcionava assim, se eu produzia trinta quilos de borracha dez quilos eram do dono da terra que sedia a estrada pra gente trabalhar" (Estevo, 2018). Essa prática ocorreu durante todo o período da borracha e começou a mudar com o declínio da mesma, mas ainda ocorria em outras atividades como a criação de porcos. Isso mostra o quanto, por meio da terça, a renda era deslocada dos seringueiros e transferida para os seringalistas.

Apesar de haver uma diversidade de atividades e produtos na ilha, essas relações mercantis não deixavam com que o território melhorasse principalmente economicamente, pois a possibilidade de organização do mercado (melhores preços e diversificação de produtos) pelos trabalhadores era muito difícil, ou seja, a gestão do território sempre teve um grande limite nas relações mercantis. Desta forma, essas relações mercantis contribuíam com a pobreza dos trabalhadores, pois criavam formas de expropriação da riqueza devido a um conjunto de fatores como a concentração da riqueza em agentes internos (os donos das terras) e externos (regatões, entre outros) à comunidade; a comercialização da borracha a preços injustos; e forte relação de dependência, pois não podiam comercializar seus produtos em outros locais.

Outra relação mercantil é o aviamento, um sistema bastante conhecido na Ilha do Capim pelos moradores, que começou a ser utilizado no período de produção da borracha. O aviamento é um sistema de adiantamento de mercadorias a crédito. Na ilha, o aviamento ocorria da seguinte forma: o dono da bodega (comerciante ou aviador) adiantava bens de consumo (café, açúcar, remédios, entre outros) e instrumentos de trabalho (faca, lata entre outros) ao seringueiro e este o restituía a dívida com os produtos da extração do látex. Esse sistema gerava muitas dívidas aos seringueiros, pois

12 Transferência de um terço de tudo o que era produzido para o dono da terra. 13 Sistema de adiantamento de mercadorias a crédito.

ficavam sempre dependentes dos seringalistas e não conseguiam obter uma renda que os sustentasse para além da comida. Segundo um entrevistado:

Esse trabalho dava pouco, era como um trabalho escravo, só dava pra comer, não dava pra comprar roupa, as nossas roupas era a mamãe que fazia, a gente levava a borracha e trazia as compras, as vezes quando adoecia não dava nem pra comprar o remédio (TEÓFILO, 73 anos, Ilha do Capim, 2018). Era difícil o seringueiro acumular algum dinheiro porque dificilmente se usava dinheiro, já que as mercadorias eram trocadas com o dono da bodega. Além disso, apesar de ter outras atividades produtivas que podiam contribuir com a família, concentravam os esforços na borracha, que mais dava retorno econômico, pois precisavam produzir o suficiente para "ter saldo" (quitar as dívidas). Por fim, a mercadoria fornecida aos seringueiros tinha um valor bem maior aos praticados nos centros urbanos. Isso ocasionava um endividamento e uma dependência do seringalista durante todo o período da atividade. Outro problema era o preço pago na borracha, que, segundo os moradores, era um valor injusto, que só dava para pagar as contas.

De acordo com Esterci (1996), ainda durante a vigência do regime escravista, havia outras formas de imobilização de trabalhadores e elas foram utilizadas depois da abolição, nas principais áreas de produção. Um desses sistemas era o aviamento, amplamente empregado na Amazônia no período da borracha. Segundo Esterci:

A grosso modo, pode-se dizer que o que aprisionava o trabalhador não era o vínculo com a terra, mas a dependência criada a partir do fornecimento por um patrão, que lhe comprava a borracha e outros produtos da floresta, e lhe fornecia produtos que ele precisava e não produzia. No que tange a lógica da contabilidade, nada muito diferente do que se passa em outras situações, ela pendia para o lado do patrão de modo a reproduzir a dependência (ESTERCI, 1996, p.126).

Na Amazônia, além da borracha, esse sistema se ampliou para outros produtos como a farinha, que funcionava também como moeda de troca. Segundo Pinton e Emperaire (2000), as regras do aviamento garantem, em princípio, aos patrões o domínio da circulação da farinha de mandioca. De acordo com as autoras, vendendo sua farinha aos patrões, os pequenos produtores são obrigados a se abastecer com eles e, ainda que consigam diminuir seu grau de dependência, a lógica das trocas perpetua sistemas de obrigação dos quais a negociação é excluída. De acordo com Emperaire:

Este termo Aviamento é uma derivação de aviar, que significa preparar, executar; o aviamento é, em seu sentido mais amplo, o conjunto dos utensílios ou de gêneros necessários a realização de um objetivo. Na Amazônia, o termo aviamento refere-se ao sistema econômico que dá base ao extrativismo e no qual cada elo da cadeia está ligado ao precedente por uma

relação de dependência, que se dá por meio de um adiantamento de produtos manufaturados contra uma certa quantidade de produtos florestais. O último elo é o coletor, e o primeiro, a firma exportadora. O credor é chamado de aviador e o devedor aviado. Os termos aviado e aviador refere-se a estrutura hierarquizada do sistema tal qual é praticada desde o final do século XIX, quando se falava de casa aviadora para se designar as casas de comercio especializadas no extrativismo. Os termos freguês e patrão, as vezes utilizados, evidenciam não só as relações econômicas, mas também sociais que se dão no extrativismo (EMPERAIRE; 2000, p. 207).

Assim como em toda a Amazônia o aviamento contribuiu com a pobreza na Ilha do Capim e isso aliado ao arrendamento da terra através do sistema da terça, criou formas de expropriação da riqueza e dependência dos trabalhadores da borracha que concentrava a riqueza em um pequeno grupo, impedindo que essa renda circulasse na comunidade e a comercialização em outros locais (monopólios), além de forçar o trabalho em uma única atividade (especialização).

Porém, em paralelo a este sistema de exploração, os moradores desenvolviam formas de troca de produtos baseadas na reciprocidade, envolvendo uma diversidade de espécies vegetais, animais e a força de trabalho, o que fortalecia a resistência desses trabalhadores diante da exploração do seu trabalho.

Uma dessas atividades era o mutirão que consistia essencialmente na organização de pessoas próximas (na maioria das vezes vizinhos) convocados por um deles para fazer um determinado trabalho na Ilha do Capim. Os moradores faziam mutirão para fazer roças, farinha, plantio, derruba, colheita, limpeza de áreas, entre outros. De acordo com o entrevistado:

A gente sempre se ajudava aqui, logo quando começou esse trabalho de roça, nós fizemos uma roça muito grande bem no meio da ilha, tinha famílias lá do Caratateua, do furo e aqui do marintuba, nós derrubamos, depois queimamos e plantamos juntos, depois nós dividimos em partes iguais e cada família ficou com a área que estava mais próximo de sua casa, pra colher a produção (ARMÍNIO, 60 anos, Ilha do Capim, 2018).

O mutirão era uma atividade que, segundo eles, contribuía muito com as famílias, principalmente em atividades que exigiam maior esforço físico.

Uma outra relação de reciprocidade que ocorria também na Ilha do Capim é a troca de diária. Essa relação ocorria quando uma pessoa convidava a outra para desenvolver uma atividade durante uma determinada quantidade de dias em vários tipos de serviços como: limpeza de área, construção de casas, construção de cercas, entre outros. Essas relações ocorriam segundo eles quando, "eu convidava uma pessoa para roçar a minha roça durante dois dias e depois eu o ajudava durante dois dias também,

é assim que funcionava (TEÓFILO, 2018)". A troca de diária era uma relação que ajudava muito, porque as vezes um morador tinha que colher a mandioca que estava no tempo de colheita e que não podia esperar, mas precisava fazer uma limpeza antes da colheita e a troca de diária possibilitava uma limpeza mais rápida. Além disso às vezes não tinha dinheiro para pagar uma diária a outra pessoa, então pagava com seu próprio trabalho.

O empréstimo também era uma relação de reciprocidade que ocorria muito na ilha do Capim, para obter principalmente alimentos, ferramentas e embarcações. Essas parcerias ocorriam da seguinte forma: "quando eu precisava ir em Abaetetuba e não tinha passagem eu emprestava a embarcação do compadre para fazer a viagem e ele não cobrava nada (DOMINGOS, 2018)". Além do empréstimo de embarcações, tinha também o empréstimo de alimentos que na maioria das vezes era "pago" (retribuído) com o mesmo tipo e mesma quantidade, numa outra ocasião.

A doação era outra relação de reciprocidade importante na Ilha do Capim no período da borracha. Segundo os moradores, ela ocorria quando uma pessoa repassava parte de algum produto que produzia no extrativismo, no cultivo ou na criação para outra pessoa sem desejar nada em troca. Isso ocorria de várias formas: "olha, antes aqui, tinha muita fartura, nos criava muito porco, quando o papai matava um porco ele mandava, um quarto para cada vizinho e nós ficava com um quarto só. Na pesca também era assim (ARMÍNIO, 2018)". A doação era uma forma de partilha que beneficiava as famílias, pois as vezes recebiam doações que estavam precisando e não tinham como pagar, principalmente quando se tratava de alimentos.