• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 7 – DISCURSOS SOBRE OS SUJEITOS, MOEDA E LÍNGUA NO

7.2. RELAÇÕES DE SUBSTITUIÇÃO: NÃO, NEM E DESNACIONALIZAÇÃO

7.2.1. Relações de substituição: não, nem

Consideremos, inicialmente, a definição de não e nem. Para tal, como já fizemos nesta tese, utilizamos o Novo diccionário da língua portuguesa, elaborado por Cândido de Figueiredo:

Não adv. Partícula negativa opposta a sim. De maneira nenhuma [...] (ibid., 1913, p. 1374, grifos do autor).

Nem adv. Não; até não. Conj. E não. E sem [...] (ibid., p. 1384). Com suporte em definições de Pêcheux e Fuchs (op. cit.), a partir do enunciado “Não havia escola, nem justiça, nem administração, nem organização política” (SD23, grifos nossos), entendemos que há uma equivalência entre os elementos não = nem de tipo dicionário. Nesse caso, não é contextualmente sinônimo de nem, ou então é sua metáfora adequada.

Ademais, embora possa haver uma equivalência de tipo

dicionário (ibid.) entre os elementos nem = não, tomados isoladamente, isso

não ocorre da mesma maneira na estrutura do enunciado, onde temos uma relação não simétrica; ou seja, os elementos substituíveis – escola, justiça, administração, organização política – não são equivalentes semânticos. Poderíamos pensar na relação argumentativa do enunciado estabelecida entre escola, justiça, administração e organização política, nessa ordem, e organizada pelo não e pelo nem, e trazer a questão da argumentação para o campo da análise do discurso.

54 “Conjunções aditivas – a aditiva apenas indica que as unidades que unem (palavras, grupos de palavras e orações) estão marcadas por uma relação de adição. Temos na língua portuguesa dois conectores aditivos: e (para a adição das unidades positivas) e nem (para as unidades negativas)” (BECHARA, 2009, p. 269, grifos nossos).

[...] a argumentação, em análise do discurso, é vista no processo histórico em que as posições dos sujeitos são constituídas. Desse modo, a instância da formulação – em que entram as intenções – já está determinada pelo jogo das diferentes posições do sujeito em relação às formações discursivas, jogo ao qual ele não tem acesso direto. Ou seja, as filiações ideológicas já estão definidas e o jogo da argumentação não afeta as posições dos sujeitos (ORLANDI, 1996, p. 49-50).

Ainda de acordo com Orlandi, podemos dizer que no nível da formulação o sujeito de discurso (autor do relato) “já tem sua posição determinada e ele já está sob o efeito da ilusão subjetiva, funcionando ao nível imaginário” (ibid., p. 50). E “afetado pela vontade da verdade, pelas suas intenções, pelas evidências do sentido e pela ilusão referencial (a literalidade)” (ibid.) os elementos do enunciado são apresentados nesta ordem: escola, justiça, administração, organização política e numa relação não/nem. Nessa relação não/nem, o enunciado produz um efeito argumentativo de mínimo, daquilo que, no caso, a cidade deveria ter, antes de mais nada.

Como podemos observar, o enunciado “Não havia escola, nem justiça, nem administração, nem organização política” (SD23, grifos nossos) se constrói numa estrutura sintática aditiva negativa e isso se reforça no verbete do dicionário acima exposto, quando vemos que a entrada nem pressupõe uma equivalência nem = e nem. Nesse sentido, levando-se em consideração a base linguística, afirmamos que a conjunção aditiva negativa nem funciona produzindo o efeito de sentido de substituição “orientada” (op. cit.) pelo valor desses elementos, os quais não são equivalentes, mas estão em relação.

Não poderíamos afirmar, em razão de uma relação de sentidos (lógica) entre não e nem, que não ter escola pode ser mais preocupante do que não ter justiça, administração e organização política, assim como não podemos dizer que a cidade primeiro deveria ter organização política, depois administração, depois justiça e por último escola, já que não há uma relação mecânica entre as marcas formais e o que elas significam nos processos discursivos. Mas a evidência de não haver escola funciona no discurso como um efeito da carência de justiça, administração e organização política.

Considerando que os sentidos estão em movimento, significando sempre e de muitas e variadas maneiras, a conjunção aditiva negativa produz o

efeito de que, naquelas condições de produção, nenhuma dessas possibilidades se realiza: escola, justiça, administração, organização política. Trata-se de discursos constituídos por saberes que resultam de lugares diferentes, saberes que não são homogêneos. Nessa acepção, essa

substituição “orientada” negativa poderia ser relacionada aos discursos sobre o

estabelecimento do povoado (cidade) de Dionísio Cerqueira e sobre a instauração do Estado/nação nesse espaço fronteiriço – que implica legitimar as autoridades brasileiras, as leis brasileiras, a vigilância à fronteira e outras, como analisamos no capítulo 4, a partir do relato Pela fronteira, de 1903.

Em vista disso, parece-nos oportuno retomar um enunciado que faz parte da SD20, analisada no capítulo 6, e que trata do lado brasileiro da fronteira: “Não havia official de registro civil, de sorte que as creanças que ali nasciam eram registradas, como argentinos, em Barracon, e, como taes, eram mais tarde inscriptos nos respectivos assentamentos militares” (grifos nossos). A formulação negativa que abre o enunciado – “Não havia official de registro civil” –, assim como a negativa implícita de que não havia junta de serviço militar no lado brasileiro da fronteira, agrega-se ao discurso de substituições construídas numa estrutura negativa, como analisamos acima. Deve-se salientar que “não havia” equivale, no discurso em questão, a “havia” na Argentina.

Dentre as análises realizadas acerca do enunciado “Não havia escola, nem justiça, nem administração, nem organização política” (SD23, grifos nossos), convém reforçar aqui que, diante da falha no processo de interpelação pelo Estado, a sociedade na fronteira, em particular a brasileira, num gesto de resistência vai apresentando soluções às situações dessa falha. Podemos destacar algumas delas: registrar as crianças no cartório de Barracón (Argentina) e inscrevê-las, mais tarde, na junta de serviço militar daquele país.

Considerando tais colocações, devemos ressaltar, consoante Orlandi (2015, p. 192), que

[...] o Estado capitalista é estruturado pela falha, produzindo a falta e, em consequência a divisão, a diferença que, pelo funcionamento da ideologia em uma sociedade hierarquizada, cujas relações são dissimétricas, configurando-se como

relações de força, e de poder, simbolizadas, produzem a segregação (preconceito) (grifos da autora).

Nessa direção, as descrições feitas nos relatos funcionam como uma evidência do espaço de fronteira (formalmente constituído por três cidades conurbadas), um lugar onde faltam instituições disponíveis para todos os habitantes. Por conseguinte, tais agrupamentos de cidades vão sendo divididos: de um lado, Barracón (Argentina), colocado no relato como margem direita e parte principal do agrupamento, onde, conforme as descrições, havia escola, oficial de registro civil, assentamentos militares e outras instituições; de outro lado, na denominada margem esquerda, Barracão e Dionísio Cerqueira (Brasil), de modo que, numa relação hierarquizada, o espaço brasileiro fica aí significado como um espaço “vazio”, como já abordamos nesta tese, como um lugar onde as instituições estão por ser estabelecidas, de modo que as relações de substituição construídas numa estrutura negativa produz um efeito de apagamento do político.

Por sua vez, conforme o relato, ao dizer que não havia escola, oficial de registro civil, assentamentos militares, etc., o sujeito fronteiriço, especialmente aquele que habitava o lado brasileiro da fronteira, vai sendo significado na falta, como um sujeito segregado (id., 2008b) dos direitos conferidos pelo Estado nacional. Apesar disso, no jogo das relações de

substituição entre o negativo e o positivo, em face do discurso do Estado, a

sociedade brasileira na fronteira é capaz de lidar com “o que há”: registrar o filho no/a país/cidade vizinho/a onde está o cartório, alfabetizar-se, embora na língua do vizinho, significando de outro modo a sua relação com o espaço – país, território.