• Nenhum resultado encontrado

Relacionamentos e conflitos sociais

No documento ELZA HAURESKO (páginas 102-105)

2. XOSÉ LOIS GARCÍA E SUA DRAMATURGIA NO CONTEXTO DA

3.9. Relacionamentos e conflitos sociais

Partimos do entendimento, explicitado ao longo desta dissertação, de que García pode ser compreendido como um escritor de esquerda, crítico do capitalismo econômico, por entender que este sistema possui contradições como a concentração e acumulação da riqueza associada à produção da pobreza, gerando alienação e autoritarismos. Este seu ponto de vista se constrói iluminando artisticamente o ponto de vista dos vencidos, os quais, em sua obra, relutam em aceitar que se “inclinem diante da pujança da história” (BENJAMIM, 2012, p.3). Para dar visibilidade aos contrastes e mazelas sociais, o escritor lança mão da ironia e do humor para estimular a crítica e a vigilância do público para com os diferentes problemas enfrentados pela humanidade.

Nesse sentido, suas peças teatrais identificam elementos que sugerem que a classe social de baixa renda é vítima da violência de uma ordem imposta, é privada de se instruir em condições adequadas, porque necessita trabalhar para sobreviver. A recorrência desses temas pode ser vista como uma insistência em não aplainar os conflitos humanos e, por isso, o escritor se levanta a escrever acerca do

dominado, encontrando no teatro o instrumento para disseminar formas de resistência e de opor a dominação. De acordo com Boal,

o teatro não é revolucionário em si mesmo, mas certamente pode ser um excelente „ensaio‟ da revolução. O espectador liberado, um homem íntegro, se lança a uma ação! Não importa que seja fictícia: importa que é uma ação. (BOAL, 2013, p. 124).

Nesse ambiente da ficção, o teatro de García sugere que a pobreza é a origem de todas as misérias humanas como a ignorância, a prostituição, a subserviência e todos os tipos de violência à qual são expostos os excluídos social e economicamente. Face ao exposto, acreditamos que a peça O Reloxio de Merexildo, ao eleger os excluídos como protagonistas apresenta nos diálogos a pobreza como sendo a principal causa da brutalidade, do alcoolismo e da violência:

Xecas – media hora che vou dar de vida? Nin falar, agora mesmo che vou visitar o bandullo. (Érguese ranqueando e busca polos recantos da casa e dá fortes golpes.) Así que xa presentías a túa morte. (Pausa.) Es unha porca neboenta. (Da uma gargalhada.) Ademais de barregana es meiga. Santa María te sentencias. (Pausa.) Onde escondiches a coitela! Onde metiches a coitela? A coitela quere empaparse co teu sangue e tallar a túa carne aceda. (GARCÍA, 2009a, p. 7).

Esse cenário é assentado na violência doméstica, quando “ouvem-se” os fortes golpes na residência do casal. Reforça-se, também, que no teatro de García acontece uma colisão entre o teatro da mentalidade burguesa e o teatro da classe baixa. Este ato é representado de forma contundente na peça Mirafentos, a qual apresenta três classes distintas: Salustiana, da classe subalterna e com baixo grau de instrução, Candorosa, doutora em arte, e Don Nicanor, um rico fidalgo. Neste diálogo, percebe-se que o pobre é ignorante em alguns temas devido à falta de instrução e, por esta razão, não compreenderá o fascínio que um estudioso interessado em erotismo desenvolve pelos falos e vaginas. Esta passagem acontece quando os três personagens discutem a respeito:

Salustiana- (Ollando e finxindo) Don Nicanor, outra vez a voltas co sexo. Non lle chegou con falar do orgón e agora colecciona carallos e conas. Candorosa – Non sexa vostede ordinária. Son falos e vaxinas, non como di vostede.

Don Nicanor – (Érguese violentamente) – Para de contado, Salustiana! (Pausa) Fai sosegar os celos! (GARCÍA, 2010b, p. 9).

Candorosa explica que os falos serviam as mulheres medievais como práticas para fecundação e é uma celebração aos instintos e afetos de grandeza inimaginável. Para Salustiana, as genitálias fazem alusão apenas aos apelos sexuais.

Este relato nos permite supor que essa peça partilha do desejo de apontar o antagonismo entre os que, ao se instruírem, se libertaram, e os que não se instruíram, permanecem doutrinados. Outro aspecto importante ocorre no diálogo da peça Mirafentos, a qual apresenta um conflito de classes, que a sociedade, muitas vezes, compreende como natural:

Don Nicanor – A miña mai botou-me do pazo. En Mirafentos non había pousada para sodomitas e seres satânicos. Fun parar a Salamanca, despois a París e por fin a Oxford. (Pensa e ri.) Ai! O Oxford dos meus coitos universitários. Alí aprendín o verdadeiro sentido do sexo. Freud e Raid fixéronme transitar pola psicanálise.

(...)

Salustiana – Neses dez anos eu casei e enviuvei. Foi un reencontro estraño, pasamos un do outro. Nunca falamos disto. (Pensativa.) El é o señor do pazo e eu simple mandadeira. O meu bisavô, o meu avô, e o me pai foron os caseiros do pazo. Unha estirpe para servir e outa para ser servida. (GARCÍA, 2010b, p. 13).

Os diálogos expostos representam duas classes, uma na personagem de Don Nicanor, que circula em universidades e em espaços culturais de destaque. Enquanto a personagem da classe subalterna, personificada por Salustiana que, nascida em precárias condições econômicas, passa a desenvolver trabalhos manuais que lhes roubam o direito de ler, de se instruir, configurando um quadro em que sua liberdade permanece sempre ameaçada, restando-lhe o trabalho da servidão.

Nesta perspectiva, a peça nos permite reflexões mediante o protagonismo das personagens que têm interesses políticos e ideológicos antagônicos.

Levando em consideração as reflexões de Boal (2013), que considera o teatro um “ensaio da revolução”, fazemos uma analogia das peças teatrais de García a um “atentado”. Utilizamos dessa metáfora para caracterizar a rapidez com a qual as peças se apresentam e as implicações das motivações ideológicas. Essas peças teatrais “atentados” são suficientemente intensas para desconstruir alguns pensamentos cristalizados, conduzindo o leitor a flexibilizar seus pensamentos e enxergar os privilégios da classe dominante e tomar consciência de classe.

No documento ELZA HAURESKO (páginas 102-105)