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3 – RELIGIÃO E LAZER NA CULTURA CRENTE BRASILEIRA

No documento waldneydesouzarodriguescosta (páginas 171-200)

Diante das práticas de lazer descritas no capítulo anterior e da maneira como os jovens com quem convivi apropriam-se delas, surgem muitas dúvidas a respeito de como a religião estaria interferindo no processo. É verdade, como pôde ser observado, que algumas estruturas não propriamente religiosas exercem grande influência, mas o que seria específico da religião dos sujeitos envolvidos? Mediante as diferentes situações de contato que foram descritas, não parece adequado responder a esse questionamento levando em conta apenas os processos específicos da PIB ou dos batistas, embora seu entendimento possa contribuir com a discussão. É necessário ampliar a abstração e fazer uma análise a partir dos processos concernentes aos evangélicos em geral. Essa é a tarefa do último capítulo dessa dissertação.

Esta proposta é um tanto ou quanto ousada e corre o risco de conter muitos pontos cegos. Por tão grande abstração a respeito de um grande número de indivíduos que se reconhece no termo evangélico pode acabar não sendo justa com as diversas nuances que existem entre as diferentes vertentes desta fé. Porém, o contato entre jovens de diferentes igrejas evangélicas é tão intenso no contexto que pesquisei que não me permite recortar a tradição de uma denominação e aplica-la a eles. Os próprios pastores estão conscientes que hoje dividem o pastorado com diferentes líderes religiosos que estão presentes na mídia. Sendo assim, neste capítulo proponho uma visão etnográfica ampla sobre a identidade religiosa evangélica. Vários pontos tratados deverão ser testados, corrigidos e aprimorados em trabalhos posteriores. Contudo, é impossível ter uma mínima compreensão de como a religião influencia o lazer dos jovens evangélicos sem este primeiro esboço.

A princípio, lançarei um olhar retrospectivo sobre os evangélicos buscando entender, em meio às suas origens, como a dimensão do lazer foi estruturada culturalmente, discernindo as principais disposições e motivações que surgiram e quais as implicações sobre as práticas. A seguir, analisando o processo de inserção dessa fé no Brasil, discutirei como a especificidade do contexto brasileiro pode ter alterado tais motivações, fazendo com que o lazer dos evangélicos brasileiros tivesse algumas peculiaridades face aos protestantes em geral. Por fim, discutindo questões específicas da contemporaneidade, buscarei clarear como as disposições religiosas chegaram aos jovens que pesquisei, reconhecendo-as em meio a algumas situações observadas em campo.

3.1 – Heranças puritanas e pietistas da cultura crente

Neste primeiro tópico do capítulo pretendo rastrear questões antigas do universo evangélico que poderiam influenciar o lazer daqueles que hoje aderem a esta religião. Contudo, antes de discutir os aspectos específicos do lazer, convém tecer algumas considerações sobre a possibilidade de análise das diferentes expressões religiosas evangélicas em conjunto. Para o observador do campo religioso brasileiro, compreender a vertente de matriz protestante é sempre um desafio, por conta de sua fragmentação institucional. É uma realidade tão heterogênea que impossibilita a generalização de comportamentos e interpretações (FROSSARD, 2013, p. 45). Mas boa parte dessa heterogeneidade é produzida por oposição. São protestantes de missão se opondo aos pentecostais, pentecostais se opondo aos protestantes de missão e todos contra os neopentecostais111. A diferença é produzida intencionalmente.

Por isso, entendo, assim como Dreher (2013, p. 35), que o ―protestantismo é também uma forma cultural‖. ―Existe uma unidade protestante, apesar da infinidade de denominações e divisões de ordem teológica [...] religiosa [...] [e] divisões políticas e sociais‖ (DREHER, 2013, p. 35). Sempre existiram alguns traços comuns a todas as versões protestantes que surgiram no Brasil desde o século XIX, no movimento missionário brevemente comentado no primeiro capítulo. Que os missionários já chegaram divididos é verdade, mas não se pode negar que eles mesmos já compartilhavam alguns aspectos. Tanto que Mendonça (1995, p. 190), descrevendo a inserção, fala em uma ―unidade teológica do protestantismo no Brasil‖.

Os missionários protestantes que aqui chegaram, vieram majoritariamente dos Estados Unidos. Este país passava pela ―era metodista‖, um período em que a expressão puritana, pietista e arminiana dos metodistas atravessava as igrejas protestantes, independente da denominação (MENDONÇA, 2005). É verdade que as sociedades missionárias estadunidenses que atuaram na América Latina eram tuteladas por denominações, diferente das inglesas que eram interdenominacionais. Mas a herança desta tutela é meramente eclesiológica, ou seja, a forma de governo e organização institucional da igreja112. Os motivos serão comentados mais adiante.

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Escapará da análise o ―protestantismo de imigração‖ (MENDONÇA, 2005). Acredito que cada foco de imigração protestante precisa ser analisado levando em consideração aspectos do seu contexto de origem, por isso, na abstração que faço nesse estudo considero apenas os (neo)pentecostais e o ―protestantismo de missão‖ (MENDONÇA, 2005).

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―Assim, os presbiterianos com a sua democracia representativa e autoridade conciliar, os congregacionais e os batistas com a sua democracia direta e autonomia das congregações locais e os metodistas com o seu governo

Quando o protestantismo se insere no Brasil, no contexto da primeira república, seus adeptos compartilhavam os mesmos recursos. Mendonça (2005, p. 55) destaca que durante um bom tempo, na maioria das igrejas protestantes no Brasil, utilizava-se o mesmo hinário, a mesma revista de escola bíblica dominical e a mesma versão da Bíblia. Este último traço parece ter deixado uma herança cultural muito forte, pois versículos bíblicos nessa versão se transformaram em jargões, tais como ―o Senhor é o meu pastor e nada me faltará‖, ―Tudo posso naquele que me fortalece‖ e ―se Deus é por nós, quem será contra nós‖. Além dos versículos que os crentes113 conhecem ―de cabeça‖, como aquele considerado por muitos o ―texto áureo‖ da Bíblia: ―Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único Filho para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna‖.

É possível questionar a unidade teológica, principalmente após a década de 1960, quando chegou ao Brasil ―um bando de teologias novas‖ (MENDONÇA, 2005, p. 59). No entanto, não há como negar certa unidade cultural. No sentido estrito do termo, não há unidade teológica nas denominações, nem mesmo no interior de uma igreja. Mas os crentes de diferentes denominações criaram um universo que compartilhavam entre si. Ele manifesta-se em diferentes artefatos culturais.

No hinário Salmos e Hinos, por exemplo, organizado por congregacionais e amplamente utilizado pelos crentes no período de inserção, havia uma ―indiferenciação teológica nuclear‖ (MENDONÇA, 1995, p. 187). Era permeado de diversas teologias, mas como produção cultural (musical), estava presente em todas as igrejas, ―as várias denominações do país cantavam o mesmo repertório, quando muito variado, outra canção com o mesmo estilo e teologia‖ (DOLGHIE, 2007, p. 156). O culto era permeado por essa produção cultural, ainda que em contradição com a visão teológica da denominação. Um bom exemplo é o que acontecia nas igrejas presbiterianas. Mendonça (1995, p. 221-240) destaca como os presbiterianos, marcados pelo calvinismo, curiosamente cantavam o hinário Salmos e

Hinos, com muitos hinos de conteúdo teológico oposto (arminiano), sem qualquer conflito.

Ele foi adotado sem exceções e legitimado como hinódia oficial dos presbiterianos (DOLGHIE, 2007, p. 177).

Foi esta expressão protestante missionária, com todas as suas contradições e relativa unidade cultural que forneceu a moldura teológica para o quadro no qual se desenvolveram as

episcopal. Mas a relativa uniformidade teológica dos ‗avivamentos‘ e da ‗era metodista‘ do protestantismo americano foi mantida‖ (MENDONÇA, 1995, p. 191).

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Por motivos já expostos e outros que serão acrescentados, neste capítulo, considero crente, o adepto da religião evangélica de maneira geral, diferenciando de evangélico na mesma forma que no capítulo anterior.

vertentes pentecostal e neopentecostal (DIAS; PORTELLA, 2013, p. 18). Há muitas diferenças entre pentecostais e protestantes de missão, mas boa parte delas foi produzida politicamente pelas instituições desde a origem das igrejas pentecostais. Na verdade as expressões religiosas comumente utilizadas para distingui-las (línguas, êxtases, riso, cair no espírito, etc.) sempre ―aconteceram na igreja de formas oficiais e oficiosamente‖ (ALENCAR, 2013a, p. 168). Antes do movimento pentecostal, no Brasil do século XIX já era possível encontrar no meio protestante alguns ―resíduos pentecostais‖ (ALENCAR, 2012, p. 42).

Nas origens, os pentecostais eram ―ex-protestantes de missão‖. A princípio, não se tratava de uma denominação, mas de um movimento (ALENCAR, 2012, p. 80). Já havia um mundo cultural religioso sistematizado no qual essa vertente iria se inserir. As cisões ocorreram por conta da não aceitação da proposta pentecostal entre dirigentes das denominações já estabelecidas. A Igreja do Evangelho Quadrangular, por exemplo, não veio para o Brasil como uma denominação. Foi um movimento avivalista, vindo dos Estados Unidos para o Brasil, que inicialmente encontrou aceitação entre presbiterianos, sendo que alguns pastores foram expulsos da denominação (ROSA, 1978, p. 16). O caso das Assembleias de Deus comentado no primeiro capítulo também é ilustrativo. A dissidência batista não se deu apenas por causa da doutrina pentecostal. Alencar (2012, p. 46, 47) explica que também pesou a autonomia da igreja local (traço essencialmente batista), a desconfiança dos brasileiros em relação aos suecos e desentendimentos anteriores entre dois pastores.

Quando surgiram grupos retomando a emocionalidade, não foram bem recebidos pelas denominações. Ao assumirem a centralidade da experiência, estes grupos afetaram a eclesiologia, (ROCHA, TEPEDINO, 2011, p. 43), ou seja, a maneira de entender como a igreja deve ser organizada. As propostas eclesiásticas disponíveis começaram a ser questionadas por conta de uma nova maneira de compreender a ação do Espírito Santo na vida do crente. ―O Espírito é quem toma o espaço no lugar das hierarquias e estas só são possíveis, se confirmadas por Ele‖ (ROCHA, TEPEDINO, 2011, p. 44). Este desencanto com a denominação abriu a possibilidade de criação de novas igrejas. Nota-se que é o mesmo ponto em que divergiram os diferentes protestantes de missão, uma questão eclesiológica. O que não necessariamente implica em um rompimento cultural.

A tamanha fragmentação institucional das igrejas pentecostais pode causar ao observador a impressão de estar diante de uma miscelânea de igrejas. No entanto, a maioria (se não todas) destas novas denominações surgiu de dissidências. E há um detalhe importante: ―boa parte das dissidências teve origem no choque entre grupos e suas respectivas lideranças

no seio das igrejas, o que gerou a formação de outras organizações, sem, no entanto, em muitos casos, que houvesse significativas diferenças doutrinárias‖ (ALMEIDA, 2009, p. 36, 37). Prova disso é que as Assembleias de Deus ―são o fundamento da matriz pentecostal brasileira [...] os demais movimentos pentecostais nasceram tendo as ADs como referência, seja em progressão, concorrência ou negação‖ (ALENCAR, 2012, p. 23, grifo original). Uma das maiores manifestações deste último aspecto no campo que pesquisei era quando alguns jovens da PIB referiam-se às suas antigas denominações como igrejas ―tipo a Assembleia‖. A emergência do pentecostalismo operou no campo religioso brasileiro uma queda do apreço denominacional, o que já não era estranho ao protestantismo de missão114.

Alguns crentes fazem questão de enfatizar suas diferenças, e são muitas, mas as identidades, mesmo no campo pentecostal fragmentado, são construídas por relações (ALENCAR, 2012, p. 37). Em geral, eles estão em constante relação, o que de certa maneira os une. Contrariando essa unidade, membros e líderes das igrejas consideradas neopentecostais enfatizam o rompimento com expressões pentecostais antigas. ―Os neopentecostais estão cientes de que romperam com a tradicional estética pentecostal. Falam disso sem cerimônia. Criticam abertamente os crentes apegados aos velhos costumes‖ (MARIANO, 1999, p. 211). Nota-se que há uma intencionalidade no discurso de diferenciação, por isso essa ruptura precisa ser lida com cautela.

Primeiro por que alguns traços culturais permanecem, como as ―orientações tipicamente puritanas‖ (MARIANO, 1999, p. 210). Depois, por que mudanças já vinham acontecendo nas denominações, de forma que ―ninguém ficou imune‖ (MARIANO, 1999, p. 204). O que aconteceu na prática é que, devido aos reveses culturais, alguns exteriores ao campo religioso, os crentes foram forçados a colocar lógicas diferentes em harmonia. Uma lógica conservadora e outra liberal que, hoje, podem ser encontradas até mesmo no interior de igrejas aparentemente neopentecostais, como foi apresentado por Maranhão Filho (2013, p. 102), ao distinguir um ―discurso congelado‖ e outro ―derretido‖ na Bola de Neve Church. Maior flexibilidade em comparação com outras igrejas pentecostais caracterizaria o ―derretimento‖ do discurso e a existência (ou permanência) de algumas doutrinas rígidas, o ―congelamento‖ (MARANHÃO FILHO, 2013, p. 103).

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A vinda dos missionários para o Brasil já tinha exigido uma cooperação acima da divisão denominacional (MENDONÇA, 1995, p. 60). E nos anos 50, instituições missionárias leigas para-eclesiásticas promoviam eventos que reuniam crentes de diferentes igrejas. Para Mendonça (1990b, p. 58), tais organizações ―apagam o brilho das Igrejas tradicionais‖.

Muitos dados precisam ser acrescentados a estes. O que foi apresentado é apenas um esboço de apresentação do que pretendo neste capítulo. A ideia é construir uma moldura teórica suficientemente ampla para conseguir dar conta de como os jovens com quem convivi em campo vivenciam o lazer. Esta totalidade é o que chamo de cultura crente brasileira. Tanto a espiritualidade quanto o lazer dos jovens que pesquisei não são definidos exclusivamente pelas igrejas de que são membros. Esses sujeitos estão inseridos em uma trama que as excede. A atenção aos traços comuns das diferentes religiosidades de matriz protestante é essencial para entender a forma como um crente vivencia o seu lazer.

Essa proposta enfrenta o fato de que os estudos de religião no Brasil geralmente não se atentam às relações entre religiosidades. Montero (2004, p. 127), fazendo um balanço da produção antropológica recente, desvenda ―a passagem de uma antropologia preocupada em descrever grupos empíricos para uma antropologia mais voltada para a análise de relações‖. No entanto, esta tendência não parece ter sido absolvida nos estudos de religião. A antropóloga explica que:

[...] a antropologia das religiões, ao descrever credos e comportamentos aparentemente auto-referidos a um sistema de crenças específico, acaba por contribuir para a reificação desses universos percebidos como descontínuos, sem que os permanentes fluxos que os articulam sejam tomados como objeto de reflexão (MONTERO, 2004, p. 126).

Diante disso, proponho com a noção de cultura crente brasileira ampliar a escala de análise dos evangélicos criando um quadro teórico que permita reconhecer fluxos entre as diferentes vertentes que existem no Brasil115. Compreender como os evangélicos influenciam- se mutuamente é condição preliminar para compreender como a religião influencia o lazer dos jovens que investiguei. É por este motivo que não chamo esse quadro de cultura evangélica, mas crente. Ele só faz sentido considerando um mundo evangélico em relação a si mesmo, onde qualquer adepto, do mais conservador ao mais liberal, possa ser reconhecido nele.

Tendo esta realidade em vista, o que será feito a seguir é um mapeamento de como a dimensão do lazer está sistematizada na cultura crente brasileira. Como será descrito, a dimensão da busca pessoal por prazer é de muito apreço a este sistema cultural. É até mesmo causadora de algumas divergências entre as igrejas. É do interesse dos mais conservadores, se apresentarem como guardiães de uma tradição, repudiando algumas formas de lazer. Também é do interesse dos mais liberais, apresentarem-se como mais ―modernos‖ e ―descolados‖ para com estas mesmas formas. Para desvendar como o lazer foi estruturado, torna-se relevante

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perguntar pelo que os conservadores não conseguiram conservar e os liberais não conseguiram liberar. Desvendar essa dimensão é a tarefa das próximas partes deste capítulo.

O ideal seria fazer uma descrição da história do protestantismo até o tempo presente, destacando diferentes maneiras como os crentes lidaram com o lazer. Tarefa gigantesca para o limite do trabalho aqui proposto. Na impossibilidade de realiza-la, destaquei três pontos julgados essenciais para o entendimento de como a questão está pautada para os jovens que pesquisei. Primeiramente algumas heranças protestantes, ou seja, traços do protestantismo anterior à ação missionária no Brasil que até hoje afetam a forma como um crente vivencia o lazer. Num segundo momento, mapearei como a especificidade do contexto brasileiro influenciou a forma como o lazer foi interpretado. Por fim, aponta-se como a contemporaneidade afetou as relações. Cada parte do capítulo é dedicada a um destes três pontos. Nesta seção enfocarei o primeiro.

A grande dificuldade de compreensão da forma como os jovens evangélicos lidam com o lazer hoje advém de uma aparente controvérsia: a princípio, o crente era visto como avesso a toda prática de lazer, mas hoje são vistas novas formas de ser crente que contradizem isso. É preciso considerar o fato de que já existiam várias formas de ser protestante antes dos missionários difundirem esta fé no Brasil. Por conseguinte, essas formas refletiam diferentes maneiras de lidar com a busca pessoal por prazer. Duas versões históricas do protestantismo parecem influenciar ainda hoje o modo como os evangélicos desfrutam do lazer: o puritanismo e o pietismo. Passo agora a comentar o primeiro.

É o pensamento puritano que ―molda e conforma o mundo evangélico que tem suas raízes na Inglaterra, em oposição ao Anglicanismo, penetra nos Estados Unidos e, a partir dali, penetra na América Latina no século XIX‖ (DREHER, 2013, p. 39). Ele foi trazido ao Brasil pelos missionários estadunidenses congregacionais, batistas, presbiterianos e metodistas. Já o pietismo foi o movimento que mais impulsionou a vinda destes missionários (MACIEL, 1988, p. 16). Esta vertente ―trouxe alguns elementos que tiveram papel importante nas atitudes e práticas que identificam o protestantismo de missão no Brasil‖ (SILVA, 2011, p. 82). Sendo assim, o entendimento de como o lazer era concebido nestas expressões religiosas é essencial para compreender como algumas atitudes se cristalizaram entre os crentes brasileiros em relação a este aspecto.

A expressão puritana é a que mais problematizava o lazer. Uma vez que os puritanos sempre tiveram uma forma muito peculiar de lidar com a questão, foi por sua influência que surgiu a ideia de que o crente é avesso ao lazer. Mas como dimensão da cultura é difícil acreditar que o lazer seja totalmente reprimido em qualquer contexto. Uma clássica descrição

dos puritanos foi realizada Weber na obra A ética protestante e o “espírito” do capitalismo (WEBER, 2004), por isso ela ganhará um espaço privilegiado em minha análise. Não levarei em consideração apenas seu caráter sociológico, mas farei também uma leitura diferenciada, como uma espécie de crônica. Trabalharei de modo semelhante ao adotado por Fernandes (1963) ao interpretar crônicas sobre os índios tupinambás no Brasil e Alencar (2012) ao interpretar as biografias dos fundadores das Assembleias de Deus, ou seja, com atenção não só ao que é eminentemente dito, mas também ao que se deixa escapar. Se a intencionalidade do autor é a de apresentar o puritano como aquele que toma o trabalho como obrigação, sendo, aparentemente, avesso ao lazer, serão destacadas nuances dessa imagem que o próprio Weber deixou escapar, muitas em notas de rodapé.

Antes disso é preciso entender os propósitos sociológicos da obra. Nela, o autor está preocupado principalmente com o capitalismo moderno. Em sua interpretação, para que este sistema econômico tomasse a dimensão que hoje conhecemos era necessário que as pessoas fossem dotadas de um estilo de vida específico. O propósito do autor é:

[...] averiguar se, e até que ponto, influxos religiosos contribuíram para a cunhagem qualitativa e a expansão quantitativa desse ―espírito‖ mundo afora, e quais são os aspectos concretos da cultura assentada em bases capitalistas que remontam àqueles influxos. (WEBER, 2004, p. 82, grifo original).

Para o cumprimento dessa tarefa, são apresentados tipos ideais de ―espírito do capitalismo‖ e de ―ética protestante‖. Esta noção de tipo ideal é uma das contribuições mais caras de Weber à teoria sociológica. Em suas palavras, trata-se de ―uma reconstrução ideal típica no conjunto histórico de um certo número de características para construir um todo inteligente‖ (WEBER, 1998, p. 466). Em um conceito típico ideal acentuam-se determinados traços da realidade para poder interpretá-la. É uma ferramenta criada para reduzir conceitos abstratos à ação compreensível.

O tipo ideal de ―ética protestante‖ apresentado por Weber é o modo puritano de viver. A principal característica destacada é tratamento do trabalho profissional cotidiano como um dever. Para construir esse tipo, o autor retoma a concepção que Lutero tinha de ―vocação‖ (beruf), ―aquilo que o ser humano tem que aceitar como designo divino [...] a missão dada por Deus‖ (WEBER, 2004, p. 77, grifo original). Constatando que esta expressão se fazia ―presente em todos os povos predominantemente protestantes‖ (WEBER, 2004, p. 71), o autor a concebe como a raiz da ética que pretende apresentar. Mas tal concepção não gerou

imediatamente um estilo de vida, foi o calvinismo que a fez perdurar, produzindo uma ética peculiar (WEBER, 2004, p. 71, 72).

Esse processo não aconteceu de forma intencional, mas foi uma consequência imprevisível, até mesmo indesejada pelos reformadores (WEBER, 2004, p. 81). É decorrente de um problema soteriológico, ou seja, de saber quem está salvo, quem vai para o ―céu‖. ―A teologia medieval identificava a Igreja romana com o Reino de Deus. [...] Ela [a igreja] seria o Reino de Deus e quem estivesse fora do Reino seria considerado alguém fora da comunhão

No documento waldneydesouzarodriguescosta (páginas 171-200)

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