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5 UM ESTUDO DE CASO: O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA

5.3 Temas controversos envolvendo o Bolsa Família

5.3.1 A renda como critério de elegibilidade

Para uma família ser elegível e poder receber os benefícios do Programa Bolsa Família, ela deve ser considerada extremamente pobre ou pobre na forma da Lei nº 10.836/04. Uma família é considerada extremamente pobre quando a renda per capita familiar é inferior a R$70,00 (setenta reais) e considerada pobre quando a renda per capita familiar é superior a R$70,00 (setenta reais) e inferior a R$140,00 (cento e quarenta reais).

Além disso, para que haja concessão do benefício, deve haver o cumprimento de certas condicionalidades ou contrapartidas, que, por serem temas de relevância e objetos de controvérsias, serão estudados em tópico específico. Neste momento, cumpre tecer considerações acerca da renda como critério de elegibilidade.

No terceiro capítulo desta dissertação, demonstrou-se que o critério monetário não é suficiente para aferir quem é pobre e quem não é, bem como para aferir o grau de desenvolvimento de certa comunidade ou país. Isto porque existem outros fatores tão ou mais relevantes que a renda que não estão sendo considerados, como a garantia de direitos sociais básicos, da liberdade, da igualdade, da democracia etc.

Entende-se pobreza como a privação de oportunidades. Como já mencionado, não é, exatamente, “não ter”, mas sequer ter a oportunidade de ter. Por isso a renda não é critério suficiente para aferir quem é pobre e quem não é: a renda garante o “ter”, porém as oportunidades dependem de outros fatores, como o acesso a serviços de saúde e de educação básicas, saneamento, moradia, informação etc, que dependem de ações efetivas por parte do Estado. Ser pobre, portanto, vai muito mais além do fato de não ter certo nível de renda definido pela legislação. Assim também afirmam Walquíria Leão Rêgo e Alessandro Pinzani502: “o problema de avaliar a pobreza só por meio do critério da renda é que este último não diz tudo sobre o bem- estar dos indivíduos”.

No caso do Programa Bolsa Família, são elegíveis apenas os considerados pobres ou extremamente pobres na forma da lei. Aquela família cuja renda per capita mensal é de R$150,00 (cento e cinquenta reais) não seria considerada pobre, para a Lei nº 10.836/04, entretanto, é considerada pobre a família cuja renda per capita é igual ou inferior a R$140,00 (cento e quarenta

502 REGO, Walquíria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: Unesp, 2013, p. 149.

reais), o que parece ser bastante incoerente. A diferença de R$10,00 (dez reais) não é, na realidade, significativa: ambas as famílias parecem necessitar de amparo estatal, mas apenas a segunda é considerada pobre.

Outrossim, ainda que se considere somente a renda como critério para definir os níveis de pobreza no país, há de se ressaltar que o valor estipulado, na lei do Bolsa Família, para definir quem é pobre ou extremamente pobre é muito baixo. Assim, não se pode afirmar que o Bolsa Família consegue combater a pobreza no país por dois motivos: primeiro, porque o critério monetário não reflete a realidade em sua plenitude, uma vez que a pobreza é um fenômeno multifacetado e não está limitada ao nível de renda do indivíduo, conforme já analisado exaustivamente nos capítulos anteriores; segundo, porque, ainda que se considere apenas a renda para aferir os níveis de pobreza, os valores estipulados na lei do Programa Bolsa Família (R$140,00 para pobres e R$70,00 para extremamente pobres) são muito baixos e, com certeza, muitas famílias ficam de fora (e não são considerados pobres) porque a renda per capita ultrapassa, ainda que por muito pouco, a linha estabelecida503.

Um forte argumento a favor do estabelecimento da renda como critério de elegibilidade do Programa é o que diz respeito à objetividade. Necessita-se traçar uma linha divisória entre os que terão direito e os que não terão direito a receber o benefício, tendo em vista as limitações orçamentárias e o fato de que o Programa adota uma política focalizada e não universal (ou se teria a renda básica universal, já discutida no segundo capítulo a partir das ideias de Philippe Van Parijs, destinada a todos os residentes permanentes no país). Portanto, seria necessário realizar um corte a fim de que os mais necessitados recebam mais e os menos necessitados não recebam de jeito algum.

Concorda-se, em parte, com este raciocínio. É que, como será analisado a seguir, mesmo adotando-se este critério objetivo, há fraudes e erros na cobertura do Programa, o que significa que existem pessoas elegíveis que não recebem e existem pessoas não elegíveis que recebem os benefícios. Se os critérios forem subjetivos, a margem de fraude e de erros na cobertura seria, certamente, ainda maior.

503 No mesmo sentido: “a combinação do critério de renda monetária com a definição de uma linha de pobreza muito baixa resulta, em última instancia, na restrição do potencial de inclusão social do Programa”. SENNA, Mônica et al. Programa Bolsa Família: nova institucionalidade no campo da política social brasileira?. Katálysis, Florianópolis, v. 10, n.1, p. 86-94, jan-jun. 2007, p. 93.

Assim, em razão da ausência de um critério objetivo melhor, escolhe-se a renda para aferir quem poderá ou não receber o benefício. Com isso, não se concorda que a renda deve ser o critério utilizado pelo Brasil para aferição de pobreza. Para explicar melhor, deve-se esclarecer a diferença entre as seguintes expressões: renda como critério de elegibilidade para aferição dos benefícios do Programa Bolsa Família e renda como critério para aferição de pobreza.

Para a Lei nº 10.836/04, não há diferença entre as duas expressões. O erro se encontra exatamente neste ponto. Considerando que a renda é o critério para aferição de pobreza, entende- se que a mera transferência de renda será capaz de combater os níveis de pobreza e diminuir os índices de desigualdade no país. As notícias de jornais e alguns indicadores sociais também corroboram esse entendimento, ao afirmar que “milhões de brasileiros ultrapassam a linha de pobreza” a cada ano.

Por exemplo, de acordo com estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), entre 2003 e 2007, cerca de 16,5 milhões de pessoas conseguiram ultrapassar a linha de pobreza504. Em 2012, foram mais de 3,5 milhões de pessoas. No Ceará, de acordo com estudo realizado pelo Laboratório de Estudo da Pobreza (LEP) da Universidade Federal do Ceará, em 2012, certa de 1,44 milhão de pessoas saíram da linha de pobreza505. Os estudos afirmam que os benefícios do Programa Bolsa Família contribuíram para a melhoria nos índices referidos. Esta pobreza, entretanto, baseia-se somente no critério monetário e não é capaz de refletir a realidade em sua plenitude.

Dessa forma, esses índices e os programas de transferência de renda, e aí se inclui o Programa Bolsa Família, acabam mascarando a realidade: se a renda é o critério pra afirmar quem é pobre e quem não é, a transferência direta de dinheiro aos indivíduos será o instrumento mais eficaz para a erradicação da pobreza. Basta que o governo transfira o dinheiro para que estas pessoas ultrapassem a linha estabelecida e saiam dessa condição. Enquanto isso, continuam sem acesso à educação, à saúde, à moradia e a outros serviços básicos que garantem a existência de vida digna. Continuam, portanto, a ser pobres, em sentido amplo.

Se houver a diferenciação entre a renda como critério de elegibilidade para aferição do benefício do Programa Bolsa Família e a renda como critério para aferição de pobreza, esta

504 WEISSHEMER, Aurélio. Bolsa Família - Avanços, limites e possibilidades do programa que está transformando a vida de milhões de famílias no Brasil. 2. ed. São Paulo: Perseu Ábramo, 2010, p. 19.

505 DEPENDÊNCIA do Bolsa Família quase triplica no Estado. Diário do Nordeste Online. Disponível em: <http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1185156>. Acesso em 10 jan. 2013.

celeuma será resolvida. No primeiro caso, em razão da necessidade de objetividade para a concessão de um benefício assistencial, estabeleceu-se a renda como o elemento chave. Mas isso não quer dizer que o combate à pobreza está resolvido. A família apenas será elegível para receber um benefício assistencial, não devendo, em razão disto, ser considerada, ao contrário do que existe atualmente, pobre ou extremamente pobre.

A diferença não é tão sutil quanto parece. Não se trata apenas de mudança na nomenclatura. É que a mudança de compreensão acerca do que se entende como pobreza é determinante para a criação de políticas públicas visando ao seu combate. Ao se entender que o Programa Bolsa Família é um programa de benefícios assistenciais que não é suficiente para combater a pobreza no país, o enfoque será a criação de políticas públicas efetivas em relação à melhoria de serviços públicos básicos, como educação, saúde, moradia, saneamento básico etc, pois estas, sim, serão eficazes no que tange à erradicação à pobreza.

A correta compreensão do significado do patamar de R$70,00 ou R$140,00 evita que a pobreza seja combatida de uma maneira simplista e não condizente com a realidade. Evita, portanto, que a pobreza seja combatida com a mera transferência de renda, sem a melhoria de serviços públicos que garantam as liberdades dos indivíduos e iguais oportunidades para todos.

Desse modo, retira-se, também, a ilusão de que o Programa Bolsa Família resolverá o problema da pobreza no país506. Trata-se de um benefício assistencial específico, importante e necessário, que deve ser combinado com outras políticas públicas sociais e com a prestação de serviços públicos de qualidade.

Nesse mesmo sentido, Guilherme Delgado507, ex-pesquisador do IPEA, ao analisar os impactos do Programa Bolsa Família, critica a ideia de que os níveis de desigualdade e de pobreza diminuíram tão somente por causa desta política: “O Bolsa Família é um pingo d’água nessa história. São os pagamentos dos direitos sociais que representam a grande fatia dessa transferência de renda”. Em seguida, ressalta que é a efetivação de direitos sociais e de políticas públicas de educação fundamental e saúde que podem representar uma efetiva melhoria na distribuição de renda do país. O estudioso não considera o Programa desnecessário, apenas

506 REGO, Walquíria Leão; PINZANI, Alessandro. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. São Paulo: Unesp, 2013, p. 11.

507 IHU Online. As verdades e mentiras sobre a distribuição de renda no Brasil. São Paulo, 14 jul. 2006. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-anteriores/2715-as-verdades-e-mentiras-sobre-a- distribuicao-de-renda-no-brasil-entrevista-especial-com-guilherme-delgado-do-ipea> Acesso em: 10 out. 2013.

desmistifica a ideia de que ele, sozinho, é responsável pelas melhorias em relação ao combate à pobreza e à desigualdade no país.

Em pesquisa realizada pelo Laboratório de Estudo da Pobreza (LEP), da Universidade Federal do Ceará, constatou-se que, ainda que seja possível verificar um aumento na renda dos indivíduos considerados pobres após o recebimento dos benefícios do Programa, a condição de pobreza ainda permanece508. Nas conclusões de um artigo publicado na Revista Brasileira de Economia, em que os dados das pesquisas estatísticas foram divulgados e analisados, os economistas do LEP Emerson Marinho, Fabrício Linhares e Guaracyane Campelo, afirmaram que os resultados da pesquisa realizada demonstram que o Programa Bolsa Família cumpre a sua função assistencialista, porém não é suficiente em relação à erradicação da pobreza.

Assim, diante do exposto, não se concorda com a ideia de a Lei nº 10.836/04 traçar a linha para definir quem é pobre e quem é extremamente pobre. Entende-se que a lei, por necessidade de estabelecer critério objetivo, pode determinar a renda como critério para aferir quem é elegível e quem não é elegível a receber este benefício assistencial, porém isto não se confunde com a caracterização da pobreza, uma vez que este deve ser entendida de forma mais ampla e combatida com medidas que garantam o desenvolvimento a longo prazo, conforme já discutido nos capítulos anteriores.