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2.1 PRINCIPAIS CONCEITOS E REFERENCIAIS TEÓRICOS

2.1.4 Renda, distribuição e desigualdade das rendas

O conceito de renda, conforme apresentado por Ramos e Mendonça (2005), envolve tipos bastante distintos e também estágios diferentes do desenvolvimento das teorias e preocupações distributivas, quais sejam: a diferença entre a noção de distribuição funcional da renda e a de distribuição pessoal da renda. Trataremos neste estudo da distribuição pessoal da renda, “[...] que diz respeito à repartição da renda total entre os indivíduos.” (RAMOS; MENDONÇA, 2005, p. 356).

É de grande interesse para o nosso estudo a versão da distribuição pessoal da renda, ou seja, a distribuição da renda familiar (ou domiciliar) per capita, por ser, conforme avalia Ramos e Mendonça (2005), esse conceito de distribuição o mais adequado para o exame de questões relativas à distribuição do bem-estar social6 e à incidência de pobreza na sociedade (RAMOS; MENDONÇA, 2005).

6 Entende-se por bem-estar o conjunto de fatores de que uma pessoa precisa para gozar de uma boa qualidade de vida. Esses fatores levam o sujeito a gozar de uma existência tranquila e num estado de satisfação. O bem-estar social engloba, portanto, as coisas que incidem de forma positiva na qualidade de vida: um emprego digno, recursos económicos para satisfazer as necessidades, um lar para viver, acesso à educação e à saúde, tempo para o lazer etc.

Também Pikety (2015) considera que é importante analisar, primeiramente, quais são as diferentes fontes de rendas efetivamente auferidas pelas famílias. Para este autor, a importância dos diferentes tipos de renda (ou grupos de renda) varia de acordo com a pobreza ou riqueza de cada indivíduo.

Os tipos de rendas auferidas pelas famílias são: rendas recebidas em forma de salários; rendas dos trabalhadores autônomos; rendas de aposentadorias; rendas patrimoniais; e rendas provenientes do capital. No grupo de renda dos autônomos compreendem os lucros agrícolas, os lucros industriais e comerciais, bem como os lucros não comerciais. As transferências compreendem a assistência familiar, o seguro-desemprego e a renda mínima. As rendas do capital auferidas pelas famílias, ou rendas do patrimônio das famílias, compreendem os dividendos de ações, os juros e os aluguéis. (PIKETY, 2015, p. 15).

Os estudos apresentados por Ramos e Mendonça (2005) consideram que a distribuição de renda é caracterizada por duas dimensões. A primeira está relacionada com a renda per capita, refletindo uma ideia de “eficiência econômica” por ser fruto da trajetória de crescimento. A segunda está associada ao grau de desigualdade da distribuição, “[...] correlacionada a uma ideia de ‘justiça social’, por apresentar o grau de equidade na repartição da renda total.” (RAMOS; MENDONÇA, 2005, p. 357).

Ramos e Mendonça (2005) justificam que, sob a ótica do bem-estar, ambas são importantes. O fato que podemos destacar é: como comparar o grau de desigualdade de duas distribuições? Para essa questão, esses autores apresentam a seguinte resposta: “classificar a distribuição em ordem crescente das rendas, ou seja, começando pelo mais pobre e terminando com o mais rico” (RAMOS; MENDONÇA, 2005).

Assim, é possível relacionar a cada passo a fração populacional acumulada até ali (eixo “p”) com a fração da renda total acumulada até aquele passo (eixo “y”). A curva gerada desse modo é conhecida como Curva de Lonrenz (L (p))7. Caso ocorra uma distribuição na qual todos detêm a mesma renda, a Curva de Lonrenz correspondente é a diagonal daquele diagrama, sendo conhecida como a linha de perfeita igualdade. Assim, quando se compara duas distribuições, cujas curvas de Lorenz não se interceptam, de forma que uma se situa mais próxima da linha de

7 Nos estudos de Cacciamali, é demonstrada a construção da curva de Lorenz como derivada do referencial de eixos cartesianos, classificados da seguinte maneira: a) classifica-se, num dos eixos, a porcentagem acumulada das pessoas ou das famílias que recebem até um determinado nível de renda; b) no outro eixo, classifica-se a porcentagem acumulada da renda agregada calculada para cada porcentagem da população obtida no item anterior; c) com esses dados, traça-se a curva de Lorenz correspondente (CACCIAMALI, 2004).

perfeita igualdade, tem menor grau de desigualdade. Quando elas se cruzam, têm- se medidas específicas de desigualdade de renda, que, em regra, envolvem certo grau de arbitrariedade na mensuração (RAMOS; MENDONÇA, 2005).

Podemos, ainda, medir a desigualdade considerando as rendas entre as famílias e compará-las com as rendas dos salários entre assalariados. Nesse sentido, Pikety (2015) demonstra que a desigualdade das rendas entre famílias é mais alta do que a dos salários entre assalariados, devido à existência de muitas famílias sem emprego. E acrescenta que normalmente essa desigualdade pode ser explicada por outros fatores. Um deles é o fato de as rendas de atividades não assalariadas, em especial as patrimoniais, serem repartidas de maneira muito mais desigual do que os salários. Essas fortes disparidades de patrimônio, muito maiores do que as desigualdades de salário e renda, são muito menos conhecidas. Além disso, a desigualdade dos patrimônios não se explica só pela desigualdade das rendas presentes e passadas que permitem constituí-los, mas também medida por diferenças de comportamentos de poupança e acumulação que não podem ser justificadas pela desigualdade das rendas.

Percebe-se, assim, que a principal razão pela qual a desigualdade das rendas aparece sempre bem mais elevada do que a desigualdade dos salários é o fato de que a maioria das famílias de baixa renda recebe pequenas aposentadorias e muitas vezes “[...] é formada apenas por um único membro, ao passo que as famílias de alta renda são geralmente formadas por casais, não raro com dois salários e filhos para criar.” (PIKETY, 2015, p.22).

Se calculássemos a razão P90/P10, não pelas rendas das familias, mas pelas rendas das familias de acordo com o número de membros, a fim de medir a desigualdade dos padrões de vida e não das rendas propriamente ditas, encontraríamos uma razão um pouco superior à da desigualdade dos salários.

No entando, conforme Pikety (2015), infelizmente, é muito mais difícil fazer as comparações internacionais das rendas das famílias do que dos salários, pois é problemático conseguir levar em conta exatamente as mesmas categorias de renda em todos os países.8 Em suma, podemos afirmar que a desigualdade entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres de um país, que pode ser mensurada por uma

8 Mesmo assim, em 1995, foi publicado, a pedido da OCDE, o estudo internacional sobre a desigualdade das rendas Luxembourg Income Study (LIS), fruto de um ambicioso projeto de construção de uma base de dados comparativos para diferentes países (ATKINSON et al., 1995).

razão P90/P10 da ordem de 3-4, “[...] é cerca de duas a três vezes inferior à desigualdade dos padrões de vida no tempo entre o fim do século XIX e o fim do século XX e à desigualdade no espaço entre os paises ricos e os países pobres.” (PIKETY, 2015, p. 25).

A questão da distribuição de renda colocada por Cacciamali (2004) é elucidativa. Segundo ela, a busca de uma distribuição de renda igual para todos os membros de uma sociedade, ou para todas as famílias, não implica necessariamente que ela seja justa ou equânime. Essa é uma questão ética e ideológica controvertida entre indivíduos e entre nações. De acordo com a autora, raciocinando com casos extremos, para alguns, os indivíduos deveriam ser remunerados de forma igualitária, independentemente da capacidade produtiva e da acumulação prévia de estoque de riqueza e de capital humano. Já, para outros, deveriam ter remunerações diferenciadas. Ademais, a sua reflexão revela que, “[...] nas sociedades democráticas modernas, essas questões levam a conflitos explicitos, canalizados por grupos ou partidos politicos que podem vir a ser filtrados pelos dirigentes e orientar a política econômica” (CACCIAMALI, 2004).

Já para Pikety (2015), a questão da desigualdade e da redistribuição é o ponto central das discussões políticas, que se opõem em duas posições. De um lado, a posição neoliberal de direita, que defende que somente “[...] as forças do mercado, a iniciativa individual e o aumento da produtividade possibilitam no longo prazo uma melhoria efetiva da renda e das condições de vida, em particular dos mais desfavorecidos” (PIKETY, 2015, p. 9). De acordo com essa posição, a ação pública da redistribuição deve ser moderada e se limitar a instrumentos que interfiram o mínimo possível nesse mecanismo. De outro lado está a posição tradicional de esquerda, herdada dos teóricos socialistas do século XIX e da prática sindical, que defende que “[...] somente as lutas sociais e políticas são capazes de atenuar a miséria dos menos favorecidos produzida pelo sistema capitalista” (PIKETY, 2015, p. 9). Neste rumo, o autor apresenta que a ação pública de redistribuição deve interferir no processo de produção, contestando a maneira como as forças de mercado determinam os lucros apropriados pelos detentores do capital e da desigualdade entre os assalaridos.

Segundo Pikety (2015), o conflito de posições entre direita e esquerda nos remete à distinção entre a redistribuição pura e a redistribuição eficiente, e ainda, demonstra que:

[...] as discordâncias quanto à forma concreta e à adequação de uma ação pública de redistribuição não se devem necessariamente a princípios antagônicos de justiça social, mas, sobretudo a análises antagônicas dos mecanismos econômicos e sociais que produzem a desigualdade. (PIKETY, 2015, p. 10).

Isso ocorre com maior frequência em relação à maneira mais eficaz de melhorar as condições de vida dos menos favorecidos e à extensão dos direitos que podem ser concedidos a todos do que em relação aos principios de justiça social.9

Pikety (2015) coloca a questão do conflito direita/esquerda para demonstrar a importância da oposição entre diferentes tipos de redistribuição e diferentes instrumentos de redistribuição. Nesse sentido, apresenta as seguintes questões: devemos deixar o mercado operar livremente e nos contentar em distribuir a renda por meio de impostos e transferências fiscais? Ou devemos tentar modificar estruturalmente a maneira como as forças de mercado produzem a desigualdade?

Segundo Pikety (2015), a primeira questão corresponde às situações em que o equilíbrio de mercado é de fato eficiente no sentido de Pareto.10 A segunda adequa-se a contextos em que as imperfeições do mercado conduzem a intervenções diretas no processo de produção, a fim de melhorar a eficiência no sentido de Pareto da alocação de recursos e alcançar a equidade de sua distribuição.