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3.3. Quatro histórias de fotógrafos

3.3.3. Repórter polivalente e ateu

Reynivaldo Brito teve o que podemos chamar de carreira completa em A Tarde. Começou como repórter, tornou-se chefe de reportagem e editor de primeira página. Quando saiu da empresa, em 3 de fevereiro de 2003 era o editor responsável por uma equipe de três repórteres, da qual eu fiz parte por três anos, que produzia as matérias especiais para a edição de domingo do jornal. A este currículo, Brito também pode acrescentar o de repórter fotográfico, pois atuou desta forma em algumas das matérias que realizou, principalmente sobre candomblé.

Ateu, deixa transparecer um profundo respeito pelo dia-a-dia dos terreiros:

A gente tem que respeitar o sentimento religioso das pessoas, a convicção. A religião é necessária neste mundo conflituoso para acalmar esse lado animal do homem, mas eu não acredito em nada52.

O homem descrente manteve uma relação de amizade com líderes religiosos. Nesta categoria de amigos, estão, principalmente, Pai Zé de Ogum, Mãe Mirinha do Portão e Pai Valdemir de Lauro de Freitas. Embora em menor grau, Reynivaldo também relata a

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proximidade com Mãe Menininha do Gantois, uma das grandes sacerdotisas baianas, em sua avaliação, e Mãe Olga de Alaketo. Ao lado de Louriel filho biológico de Mãe Olga, fez algumas das reportagens sobre candomblé.

Louriel, que morreu, fez algumas matérias comigo. A mãe dele, Olga de Alaketo, foi vestida vários anos por Denner, que foi o precussor da moda no Brasil. Denner a vestia e ela ficava parecendo uma rainha africana. Tinha postura de rainha, andava na alta sociedade do Rio e de São Paulo.

Hoje aos 65 anos, Reynivaldo cuida da sua empresa de assessoria de comunicação, um ramo diferente da agitação que cerca o trabalho em redação de jornal. Fazendo um retrospecto da sua carreira, fica patente que foi um jornalista especializado em retratar a cultura afro- brasileira. A proximidade começou por conta da capoeira que ele praticava e o tornou amigo de Mestre Bimba e Mestre Pastinha, em defesa de quem foi bater na Câmara de Vereadores: “Pastinha estava passando fome. Eu era repórter na época, fui à Câmara e falei com algumas pessoas. Ele passou a receber uma pensão que a Câmara concedeu excepcionalmente a ele”.

O convívio com o pessoal da capoeira o aproximou do povo de candomblé por meio de convites para “carurus”, grandes festas onde a iguaria é servida para quem aparecer, que, se vai ficando restrita na capital, por conta do distanciamento que a cidade grande provoca, ainda é muito comum no interior baiano. Estes laços ficaram ainda mais fortes quando Reynivaldo decidiu cursar Ciências Sociais na UFBA, universidade de onde seria professor, anos depois, no curso de jornalismo.

A entrada na escola em tempos de ditadura militar rendeu-lhe problemas bem comuns para estudantes que tinham um comportamento mais decidido. Ao lado de outros colegas, como o sociólogo Gey Espinheira, falecido recentemente, foi afastado do curso. A informação que receberam é que era uma determinação policial. Não houve nenhum tipo de formalidade, como conta Reynivaldo: “Nessa brincadeira, passamos dois anos suspensos, sem nenhuma formalidade, sem nenhum processo”.

Isso aconteceu no início da década de 70, período em que ele começou a trabalhar em A Tarde. Sua contratação foi efetivada em 1º de agosto de 1970, mas a entrada, o jornalista afirma, aconteceu dois anos antes. Era comum no período que os repórteres passassem um tempo trabalhando sem contrato, e às vezes nem mesmo perspectiva de efetivação.

Em A Tarde, Reynivaldo se tornaria um dos repórteres mais acionados para fazer reportagens sobre candomblé, ao lado de Jehová de Carvalho, embora este trouxesse para os seus textos bem mais o universo do candomblé jeje, via o terreiro do Bogum, do qual era ogã.

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Além de A Tarde, Reynivaldo trabalhou, de 1975 a 1985, como correspondente local da Revista Manchete, periódico para o qual também fez diversas matérias sobre o candomblé baiano. Apesar de ser, principalmente, repórter de texto, numa das suas reportagens, que, como ele mesmo conta, causou muita polêmica no meio do candomblé, também atuou como fotógrafo: o sacrifício de um boi para Ogum, no terreiro de Zé de Ogum, em Lauro de Freitas.

É curioso como ele conseguiu se dividir em duas atividades, registrando com a câmera todos os detalhes e fazendo depois o texto da reportagem. O ritual é descrito de forma pormenorizada, como veremos mais adiante, pois as fotos feitas por ele fazem parte do conjunto das 50 que serão analisadas neste trabalho.

Quando atuava também como fotógrafo, Brito, ao contrário dos demais, tinha o crédito para o seu trabalho. É comum nas reportagens para as quais fez fotos ter abaixo do título, o seguinte crédito: textos e fotos de Reynivaldo Brito.

No caso das fotos para o sacrifício do boi, ele conta que chegou ao terreiro bem cedo para acompanhar tudo. Não ficou para dormir, mas passou três dias acompanhando de perto desde os preparativos até a conclusão da festa: “Eu chegava cedo e saía muito tarde, de madrugada”.

Intimidade parecida como a que desfrutava no terreiro comandado por Zé de Ogum, Reynivaldo relata ter conquistado também no São Jorge Filho da Goméia, liderado na época por Mãe Mirinha do Portão e que hoje é comandado por Mãe Lúcia Neves, sua neta biológica. Mesmo após ter deixado a reportagem e assumido cargos de chefia, ele continuou a abrir as portas para o candomblé, agora de forma ainda mais direta, com poder de decisão, nas páginas de A Tarde. A diferença é que, neste período, a pauta já circulava por vários repórteres, diferentemente do que acontecia com ele e Jehová de Carvalho.

Embora confessadamente ateu, Reynivaldo Brito dá mostras de que não ficou tão imune ao universo mágico do candomblé. Quando conta os bastidores da reportagem intitulada Flores e Galos Brancos para acalmar o Tempo53

No terreiro de Zé de Ogum, Reynivaldo recebia as reverências de visitantes ilustres. Para ele eram reservadas as “cadeiras altas”, que costumam ser disponibilizadas nos terreiros para quem tem altos postos no candomblé. Mas, diferentemente de Carlos Santana, não

, feita no terreiro de Mirinha do Portão, oportunidade em que também fez as fotos, relata uma reação incomum a quem não acredita em nada. O elemento desencadeador da sensação foi um banho de pipoca: “Nunca me esqueci. Fiquei todo arrepiado. Quando eu chegava a Portão, parecia que eu era um rei.”

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chegou a ser ogã, nem mesmo suspenso, talvez por sua conhecida insistência em se definir como ateu.

A importância de Reynivaldo como repórter e mais tarde em posição de chefia não passava despercebida, principalmente para estas Casas com as quais tinha maior proximidade. Ele relata que, realmente, influenciava em tudo que saía em relação a estes terreiros, depois que assumiu os cargos de chefia. Era também uma troca de favores, pois o jornalista conta ter ganhado mais de dez prêmios de reportagem tendo o candomblé como tema.

A receita para que esta negociação fosse possível é simples, na avaliação do jornalista: “Se você pegar amizade, você consegue tudo. Não precisa ser filho-de-santo, pois eu nunca acreditei em nada”. Ao dizer isto, ele faz uma pausa e mostra que, mesmo para um ateu, neste universo nem sempre os olhos auxiliam a razão, pois se lembra de um episódio que conseguiu deixá-lo impressionado, embora já não lembre o nome do terreiro:

Era uma solenidade para caboclo. Cheguei lá, fiquei sentado. Depois de meia-noite, botaram umas brasas enormes. Um cara, com o pé descalço, andou sobre elas e apagou tudo. Além disso, ele deve ter bebido mais de dez litros de cachaça enquanto estava virado. Depois veio me abraçar e eu querendo correr, mas não consegui. Depois consegui me mandar, e ficou todo mundo dando risada, pensando que eu estava com medo, mas era porque o cara estava todo suado.

O complemento do relato de Reynivaldo é a recomposição do ateu que, mesmo sem acreditar, prestou um papel significativo para a preservação da memória do candomblé nas páginas e no acervo de A Tarde. Ilustração 18

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