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A “Nova República” e a Questão Fundiária

As mobilizações populares pelo im do regime militar e a ampliação do número de conlitos no campo, denunciados publicamente, trouxeram novas esperanças para a sociedade civil de realização da reforma agrária. O governo da “Nova Repú blica” assumiu a elaboração do primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). O Incra, então, passou a elaborar o I PNRA, no qual foi previsto o assentamento de 1,4 milhão de famílias ao longo de cinco anos.

De acordo com Oliveira (2001), ao ser anunciado o I PNRA em um congresso de trabalhadores rurais, iniciou- -se movimentação contrária de setores ruralistas que faziam parte do governo da “Nova República” visando impedir a im- plementação da reforma agrária.

A resposta dos latifundiários ocorreu com a organiza- ção dos representantes dos grandes proprietários de terra na União Democrática Ruralista (UDR), que nasceu para garan- tir o direito de proteção da propriedade de suas terras, com

orientação à “militarização” dos latifúndios, visando combater as ocupações de terra com a violência armada e, assim, im- pedir a implantação do PNRA. Desse modo, a reação latifun- diária intensiicou a violência no campo e uma força política contrária à realização do I PNRA se fez presente no Congresso brasileiro, a UDR praticamente centrou seu trabalho na crítica à proposta do I Plano Nacional de Reforma Agrária. Como consequência disso, o I PNRA sofreu mudanças que inviabili- zaram a concretização das metas previstas.

Conforme Pinto (1996), quando o plano foi encaminha- do para ser aprovado, as pressões se multiplicaram e mudanças radicais foram permitidas. O autor destacou duas: a que deixa os latifúndios (por dimensão e por exploração) cumpridores de sua função social não passíveis de desapropriação e a que torna as áreas com alta incidência de arrendatários e posseiros não desapropriáveis. A primeira criou a igura do latifúndio produtivo, e a segunda negou o artigo 20 do Estatuto da Terra que discorre sobre as áreas prioritárias às desapropriações.

Toda a mobilização política implementada pela UDR desarticulou completamente a organização pensada para a implantação do plano. Dessa forma, o governo José Sarney (1985-1990) deixou como saldo um número extremamente reduzido de beneiciários do I PNRA.

Apenas 8% das terras previstas foram desapropriadas e 10% das famílias assentadas. Assim, o sonho de 1,4 mi- lhões de famílias assentadas, que havia sido anunciado em 1985, icou reduzido a pouco mais de 140 mil (OLI- VEIRA, 2001, p. 200).

A mobilização da UDR durante a elaboração da Cons- tituição Federal de 1988 articulou os segmentos contrários a qualquer dispositivo que permitisse a desapropriação por in-

teresse social de terras ociosas. Contando com o apoio dos se- tores conservadores, ligados aos proprietários de terra, a UDR conseguiu, num contexto de elaboração de uma Constituição considerada moderna e avançada, articular manobras políti- cas, fazendo prevalecer seus interesses imediatos. Tudo o que se incorporou à Constituição Federal em termos de função so- cial da terra e desapropriação foi anulado com a introdução do inciso II do artigo 185, que diz ser a propriedade produtiva não suscetível de desapropriação para ins de reforma agrá- ria, não deinindo, portanto, o que se entende por proprieda- de produtiva. Tal dispositivo abriu margem a graves conlitos fundiários no campo brasileiro.

Conforme Silva (1989, p. 199, 201), qualquer proposta de avaliação dos trabalhos ocorridos na Assembleia Nacio- nal Constituinte (ANC) precisa levar em conta o patamar em que ela colocou o segmento dos trabalhadores rurais sem- -terra. Isso porque

[...] a nova CF não diminuiu o terrível fosso que separ a o s em-terra acampado debaixo de uma lona do seu algoz da UDR. Pelo contrário, a Carta de 1988 aprofundou o buraco da desigualdade, impedindo, deinitivamente, que a questão agrária brasileira pu- desse ser resolvida por via pacíica [...]. Ao manter o malfadado inciso que isenta de desapropriação a cha- mada “propriedade produtiva”, a ANC retrocedeu aos idos de 1946 e do ET e desdourou-se quando compa- rada à Carta outorgada pelos três ministros militares em 17 de outubro de 1969.

O autor continua mais adiante,

[...] o destaque à não suscetibilidade da desapro priação da “propriedade produtiva” trata-se, na verdade, de

uma deformação conceitual e uma improprie dade se- mântica, escondendo uma armadilha legal e uma tática latifundiária. Consegue também, com esses artifícios, reduzir consideravelmente a área de terras destinadas à realização da RA [Reforma Agrária] no Brasil.

Silva (1989) chamou a atenção para dois pontos cruciais: primeiro, o fato de que, depois dos resultados da Constituição Federal de 1988, a reforma agrária só poderá ser pensada se houver movimentos sociais na luta pela terra. As chances de negociação pacíica se perderam no “buraco negro” da Cons- tituição. Segundo, a opção governamental pactuada com os la- tifundiários da manutenção de ambiguidades conceituais para se inverter a lógica de desapropriação, inserindo armadilhas contrárias à reforma agrária e, portanto, aos trabalhadores ru- rais brasileiros.

Para Martins (1999, p. 90), na elaboração da Constitui- ção Federal de 1988,

[...] os precários avanços na legislação fundiária da ditadura militar foram praticamente anulados pelos constituintes. A utilização dos conceitos de “proprie- dade produtiva” e de “propriedade improdutiva” in- troduziu uma ampla ambigüidade na deinição das propriedades sujeitas a desapropriação para reforma agrária, praticamente anulando as concepções relati- vamente mais avançadas do ET.

Para essa análise o autor partiu do princípio de que, no Brasil, o atraso é um instrumento de poder. Ou seja, a aliança sociopolítico-econômica entre o capital e a terra consolidada na Constituição Federal de 1988 se configurou em uma aliança do atraso.

De acordo com Oliveira (2001, p. 200),

[...] no governo Collor, a UDR praticamente assumiu o controle da Reforma Agrária no Brasil, portanto, pro- moveu o abandono completo da Reforma Agrária. A queda de Collor e a ascensão de Itamar Franco pra- ticamente nada mudou [...]. Até 1994, o resultado da ação do Estado referente aos assentamentos rurais foi: de 1927 a 1963 foram assentados em projetos de co- lonização no Brasil, oicialmente, 53 mil famílias; de 1964 a 1984, entre colonização e assentamentos, 162 mil famílias; de 1985 a 1994, foram assentadas 140 mil famílias. Estes dados permitem airmar que a partir das políticas do Estado brasileiro nunca se implantou uma política de acesso à terra aos camponeses.

Como se o descaso do Poder Executivo não bastasse, na re- lação entre a legislação e o Poder Judiciário, há sérias contradições que diicultam o processo da desapropriação. Exemplo disso é o artigo 185 da CF de 1988 e a Lei nº 8.629 de 25 fevereiro de 1993,

segundo os quais as pequenas e médias propriedades, assim como as propriedades produtivas, independentemente de seu tamanho, são propriedades não suscetíveis de desapropriação.

A Lei nº 8.629, chamada de Lei Agrária, foi criada com

o objetivo de estabelecer a regulamentação dos dispositivos contidos na Constituição de 1988 relativos à reforma agrária. Com ela, juridicamente, não haveria mais empecilhos à desa- propriação das grandes propriedades improdutivas para ins de reforma agrária. Contraditoriamente, a Lei Complementar nº 76/93 passou a estabelecer um procedimento especial, cha-

mado de rito sumário, para o processo de desapropriação de imóveis rurais por interesse social para ins de reforma agrária, dando ao Poder Judiciário o prazo de 120 dias (artigo 9º) para

decidir se a propriedade é ou não improdutiva, portanto, pas- sível ou não de desapropriação.

A Lei Agrária apresenta dois sérios problemas: primei- ro, ao reairmar a insusceptibilidade da desapropriação para ins de reforma agrária da pequena e média propriedade rural, contribuiu para o desmembramento de grandes propriedades improdutivas em várias outras propriedades pequenas e mé- dias (improdutivas), como uma forma de burlar a lei. Segundo, ao conceituar a propriedade produtiva como aquela que, ex- plorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamen- te, graus de utilização da terra e de eiciência na exploração (BRASIL, 1993), tornou o conceito de propriedade produtiva ininteligível, dando margem para complexas e demoradas dis- putas judiciais. Além disso, ainda, a lei de rito sumário, que possibilita aos proprietários ações contestatórias, reduz e com- promete toda a eiciência do instrumento de desapropriação de terras.

Desse modo, o grande obstáculo na legislação que tem diicultado o processo de desapropriação de terras para ins de reforma agrária, nos dias de hoje, é resultado da própria Cons- tituição Federal de 1988 e de sua legislação ordinária.

A Constituição de 1988, além de retroceder na questão da reforma agrária, criou uma verdadeira contradição na le- gislação agrária brasileira. Segundo o Estatuto da Terra, a terra produtiva é passível de desapropriação. O estatuto diz, clara- mente, que a função social da terra é a combinação dos itens: terra produtiva, manutenção de justas relações de trabalho, cumprimento da legislação ambiental e não cultivo de drogas. No entanto, mesmo sendo produtiva, mas se não cumprisse com a legislação trabalhista, a terra poderia ser desapropriada. Em 1988, a Constituição Federal destacou o item “terra produ-

tiva” como critério. Com isso, instalou-se uma contradição na legislação, pois, se antes a “terra produtiva” que não cumpria com a legislação trabalhista poderia ser desapropriada, passou a não ser mais. Assim, o Estatuto da Terra de 1964 nos critérios de desapropriação para ins de reforma agrária é muito mais progressista que a Constituição Federal de 1988.

Para a realização da reforma agrária, o Estatuto da Terra e a Constituição Federal de 1988 se referem, especialmente, à desapropriação. No caso do estatuto, as desapropriações recai- riam sobre os minifúndios e os latifúndios que não cumpris- sem a função social. Depois, a Constituição Federal de 1988 determinou que pequenas e médias propriedades não podem ser desapropriadas, propriedades produtivas também não. Mesmo assim, o Incra tem uma trajetória que incorporou ou- tros procedimentos que passou a chamar de reforma agrária, como, por exemplo, a distribuição da terra pública via projeto de colonização, regularização fundiária, titulação e arrecada- ção de terras. Considerando que a terra é pública e, portan- to, com sua distribuição não ocorre mudanças na estrutura fundiá ria, isso não é reforma agrária de fato.

A expressão reforma agrária remete a uma estrutura fun- diária existente e a uma relação da sociedade capitalista com ela. Mas essa é uma polêmica no seio do debate sobre legislação fun- diária e política de reforma agrária no Brasil. Ao agilizar o aces- so à terra via mercado de terras, o governo colocou em xeque o Estatuto da Terra de 1964 e a Constituição Federal de 1988, que legitimam a reforma agrária a partir da lógica da desapropriação de terras que não cumprem com sua função social. Algo bem di- ferente de quando se pensa a reforma agrária como uma política de acesso à terra sob a lógica do mercado.

Nesse contexto, os governos da “Nova República” renova- ram o pacto social, político e econômico das elites. Primeiro, re-

trocedendo na possibilidade de constituição da reforma agrária e, segundo, reairmando a propriedade privada da terra como sendo parte constitutiva da produção do capitalismo brasileiro rentista.

A presença do Estado nas questões relacionadas à política agrária se manteve com o interesse explícito de promover mu- danças e garantir a não realização da reforma agrária no país.

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A Reforma Agrária de Mercado do Banco

Mundial

2.1 o Projeto Novo Mundo Rural Brasileiro do Governo

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