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3. A construção social do Diabetes mellitus: Construcionismo Social, repertórios

3.2 Os repertórios interpretativos do Diabetes mellitus

3.2.1 O repertório interpretativo histórico

Uma das maneiras utilizadas para compreender o diabetes é o repertório interpretativo histórico. Segundo esse repertório, o diabetes é uma doença muito antiga na história do homem e foi, ao longo do tempo, sendo marcada por algumas hipóteses e suposições, construindo um campo de conhecimento. Entretanto, a história que contaremos nesse

momento é uma história que aborda a constituição do diabetes como um problema, uma doença.

As primeiras suspeitas do diabetes, de acordo com Gama (2002), datam da era egípcia e também das escritas do povo judeu. A tradição oral conta a história de um ancião que, por volta de 1500 a.C., no Egito, começou a apresentar sede intensa, urinar muito e, em pouco tempo, veio a falecer. Outro indício histórico do diabetes no passado é o Papiro de Ebers, documento médico egípcio descoberto num túmulo em Tebas (cidade do antigo Egito) com data de 1550 a.C., que continha descrições sobre muitas doenças, entre elas uma que se caracterizava pelas pessoas apresentarem emissão frequente e abundante de urina (Delfino & Mocelin, 1997).

Na Grécia, o médico romano Aretaeus (81 a 138 d.C.) da Capadócia, relatou uma doença cujos principais sintomas eram: eliminação constante de urina, sede incontrolável e emagrecimento, que segundo ele, eram devido a influências estranhas que afetavam a bexiga e os rins. Aretaeus observou que, na maioria das vezes, as pessoas que tinham esses sintomas entravam em coma antes da morte (Arduino, 1980). Foi esse médico romano também que usou pela primeira vez o nome “diabetes” que, em grego, significa “passar através de”, pois, para ele, a emissão frequente da urina assemelhava-se a uma drenagem de água por meio de um sifão. Conforme Aretaeus, as pessoas que tinham diabetes tinham um fluxo constante de urina. Na verdade, ele acreditava que se tratava de uma “condição terrível”, em que a pessoa nunca parava de urinar; que ocorria o derretimento da carne e dos membros em urina. O médico entendia também que a vida das pessoas com diabetes era curta, dolorosa e desagradável (Delfino & Mocelin, 1997).

Nos séculos V e VI d.C., de acordo com Arduino (1980), especialistas em Medicina da Índia descreveram, com detalhes, alguns sintomas dessa doença, destacando o sabor adocicado da urina das pessoas com diabetes, denominando a condição de doença de

Madhumeha (urina doce). Para estes hindus, tratava-se de uma enfermidade em que as pessoas apresentavam uma urina doce como mel, pegajosa e capaz de atrair as formigas.

Avicena (960-1027 d.C.), um grande médico árabe, também descreveu algumas características do diabetes, destacando a perda das funções sexuais e da gangrena como possíveis sintomas relacionados à doença. Para o médico, no diabetes, o fígado estava comprometido, sendo a tuberculose e o furúnculo complicações muito comuns da doença (Arduino, 1980).

O termo “mellitus” foi acrescento à nomenclatura do diabetes por Cullen (1709-1790), a fim de distinguir essa condição de outras nas quais a urina não era doce e não tinha gosto (diabetes insípido). O termo “mellitus”, de origem latina, quer dizer “mel ou adocicado” (Delfino & Mocelin, 1997).

Em 1815, de acordo com Arduino (1980), o médico Chevreul propôs que o açúcar presente na urina das pessoas com diabetes era indistinguível do açúcar presente na uva. Mais tarde, em 1838, Peligot deu nome a esse açúcar de glicose. Por esta razão, os médicos passaram a experimentar a urina das pessoas com suspeita de diabetes. Posteriormente, em 1889, os cirurgiões alemães, Oskar Minkowski (1858-1931) e Joseph von Mering (1949- 1908), estudando o papel do pâncreas na digestão de gorduras, acreditaram que a extirpação do pâncreas no cão provocava o aparecimento de sintomas muito semelhantes ao diabetes humano (Delfino & Mocelin, 1997).

Em 1901, Eugene Opie, nos Estados Unidos, observou alterações nas ilhotas de Langerhans9 de pacientes com diabetes, desenvolvendo a hipótese de que essas seriam a sede da doença. Nessa mesma época, Sobelow e Schulze, demonstraram que a ligadura dos canais excretores resultava em atrofia do pâncreas, sem que houvesse alteração nas ilhotas ou aparecimento de diabetes em animais (Arduino, 1980).

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As ilhotas de Langerhans são células especiais do pâncreas (alfa, beta, detla e PP) que produzem insulina e glucagon, que agem como reguladores do metabolismo celular (Sociedade Brasileira de Endocrinologia, 2002).

Dessa forma, após esses experimentos, os pesquisadores levantaram a hipótese de que o pâncreas deveria produzir uma substância que fosse capaz de regular o metabolismo da glicose. Mais precisamente, em 1913, Shaefer supôs que as ilhotas de Langherans seriam as responsáveis pela produção dessa substância que atuava no metabolismo da glicose e propôs que o nome dessa seria insulina (insula, do latim, significa ilha). Porém, a insulina só foi identificada e comprovada em 1921, em Toronto, por Frederick Grant Banting, com a colaboração do estudante de medicina Charles Best. Banting comprovou que a injeção dessa substância (insulina) diminuia os níveis de glicemia em cães pancreatectomizados, melhorando os sintomas da doença. Em 1922, Leonard Thompson, um garoto de 11 anos, que estava à beira da morte, recebeu a primeira injeção de insulina com a finalidade terapêutica (Arduino, 1980; Gama, 2002). A partir daí, a insulina se tornou uma grande companheira de muitas pessoas com diabetes. A identificação da insulina representou, na verdade, um marco na história do Diabetes mellitus. Tal descoberta rendeu o prêmio Nobel de Medicina a Banting, que ficou eternizado como uma espécie de “herói”.

Dessa maneira, o repertório interpretativo histórico nos indica como diferentes explicações, principalmente causas, foram sendo construídas acerca do diabetes ao longo do tempo. De início, acreditava-se que era uma doença em que ocorria o derretimento da carne e essa escoava pela urina, depois, tem-se a percepção do sabor adocicado da urina, seguida da observação de alterações nas ilhotas de Largerhans e, finalmente, da descoberta da insulina. Esse repertório promove assim: 1) o entendimento do diabetes como algo antigo na história humana; 2) a percepção de mudanças na compreensão do que seria o diabetes; 3) a noção de que a disfunção do diabetes é resultante de esforços de médicos e pesquisadores, validando o conhecimento científico; e 4) o diabetes como problema do corpo relativo ao funcionamento do organismo. Por meio dessas proposições, entendemos que o repertório interpretativo histórico compreende: a) o diabetes como um fenômeno sócio-histórico; b) a pessoa com

diabetes como alguém com uma doença, com um problema; c) as causas do adoecimento como sendo variáveis por meio de processos sócio-históricos; e d) o cuidado com o diabetes como sendo contingente à história, isto é, em cada época, acreditava-se em formas diferentes de cuidado; além disso, a identificação da insulina se constituiu como um marco importante na forma de cuidar da doença.

Como vimos, esse repertório conta uma história médica sobre o diabetes, porém, apesar disso, ele nos permite refletir sobre algumas descrições, mostrando que elas são situadas e históricas. Em geral, isso é importante, pois quando estamos lidando com questões relacionadas à saúde, geralmente tendemos a apagar a história e a olhar para os objetos como sendo universais e naturais.

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