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Repertórios relacionados ao tema ética: Ética – evento crítico perturbador da ordem 85

O repertório interpretativo ética – evento crítico perturbador da ordem pôde ser identificado na fala de Cíntia quando respondia, na dramatização, às perguntas realizadas por Vanessa. Esse repertório é constituído por termos que situam e descrevem situações

específicas em que o tema ética se torna relevante tomando como referência a metáfora da guerra, revoluções, ou seja, um evento crítico que causa um distúrbio da ordem preestabelecida. Assim, fala-se de ética a partir de uma situação atípica que ocorre de maneira não frequente e é carregada de intensidade e movimento disruptivos. Termos utilizados como adorno dessa metáfora são ‘sofrer um ataque’, ‘correr’ no sentido de fugir, ‘não muito habitual’, no sentido de excepcional.

Segue o trecho de análise:

Vanessa: Eu gostaria que você nos contasse um pouco sobre o seu contexto de trabalho que

envolve as práticas grupais e que na verdade o quê que te levou a trabalhar com essas práticas grupais.

Cintia: Bom. É vou ta contando uma experiência antiga, um pouquinho antiga,

aproximadamente uns dois anos atrás, quando eu trabalhava numa instituição. Uma instituição que atende pacientes portadores de sofrimento mental e que lá nosso, nosso campo de trabalho, a atuação era em grupo. E nós formávamos grupos de dez, entre oito e dez pacientes. E num dia, num dia desses grupos é aconteceu algo muito diferente, que não

era muito habitual acontecer. Em geral os pacientes freqüentavam ambulatório eram pacientes que estavam sob o efeito da medicação e então eles eram pacientes tranqüilos, que estavam com o processo cognitivo equilibrado, que tinham condições emocionais de participar dos grupos. Eles é aceitavam as orientações dadas nos grupos, no grupo, faziam as atividades propostas, assim ocorria tranquilamente. E teve um dia que de repente chegou um paciente que tava uns dias sem participar e ele chegou, e era um paciente muito alto, grande e chegou no grupo “E eu quero participar, porque eu amo minha psicóloga e que eu quero beija, quero abraçar e agora ninguém me segura e eu falei ‘E agora? Quê que eu faço, né?’” risos

Vanessa: Que situação.

Cintia: Que situação! E foi interessante porque assim o primeiramente eu pensei, eu faço o quê, eu fico no meu lugar ou eu corro né, quê que eu faço, corrê não tinha jeito, mas Vanessa: Então você avalia que essa situação Cintia, seria uma situação que envolva uma

prática grupal e que envolva um dilema ético?

Cintia: Sim. Sem dúvidas, porque eu estava ali prestes a sofrer um ataque né

Com a fala ‘Em geral os pacientes freqüentavam ambulatório eram pacientes que estavam sob o efeito da medicação e então eles eram pacientes tranquilos, que estavam

com o processo cognitivo equilibrado, que tinham condições emocionais de participar dos grupos. Eles é aceitavam as orientações dadas nos grupos, no grupo, faziam as atividades propostas, assim ocorria tranquilamente’ Cíntia cria a imagem do que ela considera como grupo. Podemos perceber nessa imagem como as coisas estão ordenadas, tranquilas, as pessoas equilibradas aceitando as intervenções e participando colaborativamente com a atividade desenvolvida.

Em seguida, ela colocará em sua fala o evento em que a ética passa a ser o foco de sua análise: ‘E teve um dia que de repente chegou um paciente que tava uns dias sem participar e ele chegou, e era um paciente muito alto, grande e chegou no grupo “E eu quero participar, porque eu amo minha psicóloga e que eu quero beija, quero abraçar e agora ninguém me segura e eu falei ‘E agora? Quê que eu faço, né?’” risos’.

Podemos notar como o evento em que a situação sensível do ponto de vista ético será descrita configura-se como um evento atípico, principalmente, ao reparamos o modo com ela introduz esse evento ‘E teve um dia que de repente’. Nessa fala ela coloca o evento específico ocorrendo em um dia, denotando a raridade desse acontecimento, construindo sua atipicidade, pois não se trata de algo que acontece todos os dias, mas em um dia específicamente. Essa construção linguística é reforçada pela expressão ‘de repente’ focando em como a ação que se seguiria foge à previsibilidade, sendo portanto incomum.

Complementando a descrição desse evento, ela continua com a descrição do sujeito desencadeador dos eventos atípicos: ‘um paciente que tava uns dias sem participar e ele chegou, e era um paciente muito alto, grande’. Percebemos aqui que as características do elemento deturpador da ordem são também características excepcionais, que fogem aos padrões da normalidade, pois o paciente além de estar ‘uns dias sem participar’, portanto

estava fora do grupo que é ordeiro, é uma pessoa ‘muito alto, grande’, isto é, alguém que possui a potencial capacidade de causar transtornos, pela utilização de sua capacidade física.

Notemos que o paciente poderia ser descrito com o uso de inúmeros adjetivos como agressivo, chato, impertinente, etc., que ainda o descreveriam como alguém capaz de deturpar a ordem do grupo, porém a escolha do aspecto físico para descrevê-lo faz um trabalho muito interessante, pois se trata de uma característica que evita contraposição à capacidade de perturbar a ordem construída no relato, uma vez que adjetivos alternativos aos do aspecto físico, que se ligassem à características da personalidade, por exemplo, poderiam ser criticados como sendo fruto da interpretação da psicóloga que está relatando, ou até mesmo de um processo de transferência, em termos psicanalíticos. Assim, a factualidade (Potter, 1996) da ação relatada é reforçada ao impedir versões alternativas que pudessem ser postas na conversa, por meio do uso da característica física como forma de descrever o sujeito gerador de desordem.

Trechos mais isolados podem ser utilizados para mostrar como esse repertório vai sendo configurado como ‘E num dia, num dia desses grupos é aconteceu algo muito

diferente, que não era muito habitual acontecer’ frase que antecede todo o relato do evento

descrito, aparecendo como um marcador que norteará os acontecimento subsequentes, marcando-os como excepcionais.

Outro trecho relevante: ‘Vanessa: Então você avalia que essa situação Cintia, seria uma situação que envolva uma prática grupal e que envolva um dilema ético? Cintia: Sim.

Sem dúvidas, porque eu estava ali prestes a sofrer um ataque né’. Nesse ponto, Cíntia é

contraposta com a dúvida de Vanessa se o que ela relatou seria ou não um relato de evento ético. Ela então responde afirmando veementemente que estava ‘prestes a sofrer um ataque’ utilizando-se novamente do repertório ética – evento crítico perturbador da ordem,

descrevendo o evento ético como um ataque que seria sofrido, palavras que enfatizam o caráter dramático dos eventos intensificando a experiência vivida ao promover o uso de termos geralmente associados a eventos mais graves como guerras, revoluções, terrorismo, etc.

C) Repertórios relacionados ao tema ética: Ética – questão frequente de valor