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Representação e consciencialização sobre a violência doméstica

3.4. Interpretação de dados e discussão de resultados

3.4.11. Representação e consciencialização sobre a violência doméstica

A casa é “o espaço privilegiado da violência contra as mulheres e a violência é transversal a todas as classes sociais, diferenciando‑se, contudo, quando analisada segundo as suas formas/tipos de manifestação” (Pais, 1998, p. 51).

A representação do senso comum comummente transpõe que a violência doméstica incide mais nas classes baixas, com baixa escolaridade e trabalho precário, porém os técnicos sublinharam que isto é apenas um mito e não representa a realidade atual. A violência doméstica está presente em todas as faixas etárias, com baixa e alta escolaridade, poderá haver maior ou menor incidência, mas segundo as estatísticas da APAV (2014 e 2015), nenhuma sustenta o mito. Segundo Machado e Gonçalves (2003) há outros fatores que contribuem para a violência doméstica, a maior ou menor incidência depende também de outro tipo de fatores, tais como o isolamento, que poderá ser geográfico, afetivo e social, elevando o poder, o domínio ou a influência moral do agressor sobre a vítima. Nestes casos, o que se verifica é o afastamento das vítimas das relações de proximidade levando‑as ao isolamento e privando‑as da convivência com familiares e/ou amigos.

A Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, mais conhecida por “Convenção de Istambul”, aborda que a violência contra as mulheres não se restringe por idade ou por estatuto social ou país, embora seja mais significativa em comunidades de acentuada desigualdade social, de intolerância e de negação. Ou seja, trata‑se de um paralelo sentido na nossa sociedade, na medida que atos de violência, principalmente os de violência doméstica, se fazem sentir em todas as idades e classes sociais, não só propriamente as mais baixas como se crê muitas das vezes, relatórios anuais desmistificam:

84 De entre os dados possíveis de apurar no ano de 2014, os níveis de ensino superior (7,6%) e o nível de ensino básico do 3º ciclo (4,8%), destacaram‑se face aos restantes. Já no que diz respeito à principal atividade económica, 29,6% dos utentes que tiveram contato com a APAV encontravam‑se empregados/as. No entanto é importante ressalvar os 19,4% de pessoas desempregadas. (APAV, Relatório Anual 2014)

As vítimas que recorreram aos serviços da APAV em 2015, eram sobretudo casadas (30%) e com um tipo de família nuclear com filh@s (37,7%). No que diz respeito à escolaridade e à atividade económica, o grau de ensino situa‑se entre o ensino básico (3.º ciclo), o ensino secundário e o ensino superior (16,6%), sendo que 27,8% destas vítimas encontrava‑se a trabalhar. (APAV, Relatório Anual 2015)

A Convenção de Istambul refere um dos pontos que os técnicos da APAV também referem, a ausência de denúncias de comportamentos de violência:

a violência contra as mulheres é muitas das vezes considerada matéria privada e muitas mulheres hesitam em denunciá‑la, ou são dissuadidas de fazê‑lo pela sua família ou comunidade. (Conselho da Europa, 2000, p. 16)

Esta é uma realidade muito presente no Gabinete de Faro, muitas das vítimas de violência doméstica, informam‑se dos seus direitos, do que poderão vir a fazer futuramente ou quais são as contingências que têm de encarar para solucionar o seu problema. Contudo, muitas mesmo quando informam os técnicos da APAV que irão fazer queixa, poucas são aquelas que realmente a fazem. Assim, em muitos destes casos o agressor permanece ileso, ilibado criminalmente.

Na Convenção de Istambul abordou‑se que “muitos casos não chegam aos tribunais ou, quando chegam, os agressores recebem penas mínimas.” (Conselho da Europa, 2000, p. 16) Muitos dos técnicos evidenciam a falta de ajudas e na resolução rápida dos casos, principalmente meios financeiros aos quais as vítimas possam recorrer para darem início ou azo ao seu “novo projeto de vida” (E. 7).

Um dos pontos que foca a Convenção de Istambul é “a falta de sensibilidade para com as vítimas durante a investigação e o processo judicial resultam muitas vezes numa

85 revitimização.” (p. 16) A revitimização é um processo pelo qual há muita indecisão por parte das vítimas em apresentar queixa ou mesmo dar a conhecer o seu caso, muitas sentem‑se expostas e sem respostas sociais para o seu caso: “a lei tem ido adequando algumas medidas de prevenção e de respostas às situações de crime, tem ido, mas muito devagar e então continua a haver falta de resposta presente. Normalmente, há muitas situações em que as pessoas querem sair, mas não tem como” (E. 7).

Outro ponto focado é refere que a revitimização “desencoraja as mulheres de denunciarem a violência, tanto mais que, na ausência de uma proteção adequada, a denúncia aumenta o risco de serem sujeitas a mais violência.” (Conselho da Europa, 2000, p. 16) Muitos dos técnicos da APAV entrevistados mencionaram a proteção facultada à mulher vítima de violência doméstica como insuficiente ou desadequada, quer pelas forças de autoridade legislativa que servem a comunidade quer pelas entidades com recursos. Deste modo, há dois pontos que carecem de atenção; em primeiro lugar, as forças de autoridade não dispõem de uma rede de suporte para proteger a vítima após a queixa contra o seu agressor, apenas em caso de perigo de vida, nestes casos, há um protocolo de emergência. Porém, para casos que apenas resultem numa queixa crime a vítima volta para o seu lar e, muitas das vezes, para junto do seu agressor, que muitas das vezes é seu companheiro e vivem juntos. Desta forma, não há como controlar que a vítima não venha a sofrer de violência doméstica novamente, até mesmo por retaliação da mesma ter apresentado queixa. Muitas das vítimas, não tendo uma estrutura de suporte familiar, voltam para junto do seu agressor sujeitando‑se a uma nova situação violência doméstica ou uma situação de risco maior.

“A nível processual, a nível jurídico, tribunais, etc., etc. eu acho que as coisas até estão a andar, mas continuamos com o mesmo impasse, e o depois? Onde estão as respostas? Para nossa grande frustração, temos assistido a pessoas que têm desistido do projeto de vida e voltado para o agressor; umas, pelas mais diversas razões; outras, porque não conseguem estar sozinhas e não aguentam; outras, porque acham que ele até vai mudar, aprendeu com este afastamento, e vai mudar. Mas em muitas situações voltam para o agressor, de forma muito ponderada porque não tiveram outras respostas, isso mesmo dizem‑no aqui” (E. 7).

Muitas das evidências refletidas pelas entrevistas referem a falta de apoio, a revitimização e a atitude preconceituosa perante a sua situação, sendo muitas das vezes referida como vergonha. Apesar da existência de serviços institucionalizados e especializados, sua atuação não é suficiente em muitos dos casos e não protege a vítima de violência doméstica à sua exposição ou situações que venham a sofrer novas situações de violência ou o reviver das mesmas – a revitimização.

86 Atualmente, em muitos casos a maioria das vítimas não acionam medidas nem têm conhecimento dos direitos que têm ao seu dispor, resultando numa atitude passiva de aceitação ou de resignação perante situações que muitas das vezes são percecionadas como normais. Deste modo, verificamos um distanciamento das leis e dos direitos das vítimas em relação à realidade vivida pelas mesmas, é neste sentido que a APAV se apresenta como organização ativa na prevenção e na intervenção de tais casos.

Os meios de emergência existentes ou de suporte são poucos e insuficientes. Não há um protocolo de suporte com meios de ajuda abrangentes para toda a população, ou para todos os casos que surjam, apenas para casos de emergência e, mesmo assim/que existam, apenas dispõem dessa mesma ajuda por um curto período de tempo. A própria APAV, como associação que dispõe de meios informativos e de reencaminhamento de vítimas e meios de resposta para vítimas em casos extremos. Contudo, não tem, por vezes, os meios de resposta perante os muitos casos que aparecem, ou porque estão lotados, por tempo indeterminado, ou porque são mesmo inexistentes. Uma das entidades essenciais com que a APAV trabalha é a Segurança Social e, mesmo que seja um dos recursos fundamentais e essenciais para a comunidade, não tem meios para todos os casos. Resta‑nos concluir que, mais uma vez, as muitas problemáticas seriam resolvidas se houvesse recursos financeiros: “Pois… falta de respostas em situações de emergência… Mas isso não é um problema da APAV é problema social.” (E. 3) “Falta de respostas sociais, efetivas e imediatas, as coisas têm melhorado, têm melhorado, mas continua a faltar. . . . A lei tem ido adequando algumas medidas de prevenção e de respostas às situações de crime, tem ido, mas muito devagar e então continua a haver falta de resposta presente.” (E. 7)

O grande problema reside em casos em que seja necessária a ajuda efetiva, todos os recursos atualmente disponíveis levam tempo a ser analisados e assinalados como necessários: “As pessoas precisavam desses apoios imediatos, e muitas das vezes passa pelo apoio financeiro, falha. Depois vem o subsídio, mas não é o suficiente, de maneira nenhuma cobre os encargos e as responsabilidades daquele agregado familiar. . . . A nível social, continuamos com o mesmo problema não há respostas sociais para ninguém quanto mais para estas situações de pessoas como especial prioridade, estão frágeis a todos os níveis e precisavam de todos os apoios e mais alguns, mas não há respostas. A Segurança Social está quase na bancarrota não há dinheiro para nada e eles só, cortam, cortam, cortam. . . . Eu entendo, é única instituição que tem verbas e é subsidiária para isso, agora tudo dá, cada vez há mais pessoas a pedir ajuda, aumentou… aumentaram os pedidos. As pessoas estão em situação de crise não há resposta, não há dinheiro.” (E. 7).

87 Posto isto, há muitas vítimas que dado à insuficiência de meios, à inexistência de uma rede familiar ou recursos financeiros, resignam‑se e aceitam a violência doméstica como parte das suas vidas e retornam para junto do seu agressor, sendo esta a última hipótese considerada.