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3. Análise de questões de tradução

3.2. Algumas especificidades da tradução espanhol-português

3.2.3. Representação escrita de aspetos fonéticos

Ao longo da obra Verano en diciembre, existem diversos momentos nos quais as personagens prolongam a duração de certos sons, correspondendo a representação escrita à repetição de determinadas letras. O exemplo (76) ilustra um caso em que se preservou o alongamento de um som específico através da repetição de uma letra diferente da que constava no texto original.

(76)

(LP) ALICIA.- Me sabe más rico con la mano, ¡no le va a pasar nada al pan porque lo corte con la mano! ¿qué más da, no? Uyyy pero si es pan francés. PALOMA.- ¿Por qué dices que es francés?

ALICIA.- Porque es de antiayegggg. (VeD, p.42)

(LC) ALICIA.- Sabe-me melhor à mão. Não vai acontecer nada ao pão se o cortar à mão! Tanto faz, não? Uuui, mas é pão francês.

PALOMA.- Porque é que dizes que é francês? ALICIA.- Porrrrque já está rrrrrijo. (VeD, p.21)

Nesta passagem, verifica-se a repetição da letra <g> no texto original. Na língua espanhola, quando a consoante <g> é seguida das vogais <e> ou <i> (em palavras como: “genio” ou “gigante”), é produzida como [

x

], som próximo da vibrante uvular

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Fonte da Infopédia para o adjetivo “embarazada” com os dois sentidos: https://www.infopedia.pt/dicionarios/espanhol-portugues/embarazada

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[R] do português e do francês. Deste modo, foi possível perceber que a pronúncia prolongada deste som por parte de Alicia tem como objetivo estabelecer uma comparação com o som [R], da língua francesa, que corresponde na escrita a <r>, jogando-se com o facto de o pão ser francês e obtendo-se, assim, um efeito humorístico. Portanto, a tradução literal da palavra “anteayer” por “anteontem” resultaria numa perda do sentido cómico pretendido, uma vez que não é possível reproduzir o som [R] através desta última palavra. Por conseguinte, optou-se pela palavra “rijo”, tendo em conta que, por um lado, permite manter a ideia de que o pão foi feito há alguns dias e, por outro lado, é possível prolongar a pronúncia do som [R]. De modo a tornar mais percetível esta associação à fonética francesa, também se optou pela repetição da letra <r> na palavra “porque”, embora tal não se verifique no original, com o intuito de se tornar mais claro o efeito humorístico.

Procedeu-se, ainda, a adaptações fonéticas noutros contextos, também para preservar o efeito humorístico. Considere-se o exemplo (77):

(77)

(LP) CARMEN.- Perdona, que estaba mandando un WhatsApp. Bien, solo tenía unas décimas.

MADRE.- Ay el guasa de las narices. Alcanza el agua que es lo único que falta. ¡Carmen! El agua, trae una jarra con agua. (A PALOMA). ¿Y tu hermana? (VeD, p.41)

(LC) CARMEN.- Desculpa, é que estava a mandar um WhatsApp. Bem, ela tinha pouca febre.

MÃE.- Ai, a ASAP2 das picardias. Traz a água, que é a única coisa que falta. Carmen! A água, traz um jarro com água. (Para PALOMA). E a tua irmã? (VeD, p.20)

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Acrónimo que significa “As Soon As Possible”, utilizado quando se quer que uma pessoa dê a sua resposta o mais depressa possível.

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Neste exemplo, verifica-se uma situação cómica relacionada com a pronúncia do nome “WhatsApp”. Quando a mãe das irmãs tenta dizer o nome da aplicação num tom reprovador, pronuncia-a incorretamente como “guasa”, de algum modo foneticamente próxima da forma correta. Ora, “guasa” significa brincadeira ou gracejo. Na versão traduzida, poder-se-ia optar pela palavra “graça”, que apresenta significados semelhantes. No entanto, as palavras “graça” e “WhatsApp” não são suficientemente próximas do ponto de vista fonético, pelo que o público dificilmente conseguiria entender que se tratava de uma tentativa fracassada de pronunciar o nome da aplicação. Portanto, optou-se pelo acrónimo “ASAP” (explicitando-se o significado do mesmo através de uma nota de tradutor), cuja pronúncia é semelhante ao nome “WhatsApp” e que, tal como a palavra do texto original, surge descontextualizado da conversa em questão, mantendo-se o elemento cómico.

Na obra Verano en diciembre, encontram-se também diversos excertos nos quais se verifica a repetição de letras para representar graficamente a maior duração das interjeições, cuja tradução exigiu, de igual modo, um trabalho de adaptação (cf. secção 3.1.1.2.).

(78)

(LP) ABUELA.- ¡Madre!, ¡madre!, ayyyyy ¡mira a mi madre!, está muy, muy seria, pero en cuánto me ve, ¡se le pone una sonrisa! (Hablándole al espejo). ¿Cómo está, madre? ¿Ehhh?… ¡Nada!… no dice nada la mujer… ¡No sé qué dice!… (VeD, pp.98-99)

(LC) AVÓ.- Mãe! Mãe! Aaaaai, olha a minha mãe! Está muito, muito séria, mas quando me vê, fica com um sorriso! (Falando-lhe ao espelho). Como está, mãe?

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No caso da interjeição “ay”, verifica-se que o texto de partida marca graficamente a maior duração da interjeição através da repetição da semivogal [j]. No texto de chegada, optou-se pela repetição da vogal [a], uma vez que, conforme refere Duarte (2000: 385), “(…) a produção da vogal dura mais tempo do que a produção da semivogal (…)”.

Relativamente à interjeição “eh”, o Collins Spanish Dictionary indica que pode ser utilizada para chamar a atenção ou em casos em que não se entendeu algo. Em português, utiliza-se frequentemente a interjeição “hã” com o mesmo objetivo comunicativo. Tal como no exemplo anterior, verifica-se uma marcação gráfica da duração da interjeição. Neste caso, em ambas as línguas, a interjeição corresponde a um único segmento vocálico, que é, no entanto, distinto (em espanhol, [ɛ]; em português, [ɐ̃]). Na escrita, o original marca o alongamento através da repetição da consoante <h>; a tradução fá-lo através da repetição da vogal, aproximando a representação escrita o mais possível da produção oral.