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2.3 DEFINIÇÕES

2.3.2 Representações de variedades linguísticas e socioleto

abstenho-me de me ater às definições puramente linguísticas e sociolinguísticas, para preferir aquelas desenvolvidas ou usadas dentro

do âmbito da teoria da tradução dialetal e dos Estudos da Tradução como um todo.

É importante lembrar que o objeto de estudo desta pesquisa não é a variação linguística vernácula propriamente dita, mas suas representações na literatura, e suas eventuais traduções. Há um termo específico para tais representações:

O conceito de socioleto literário é interpretado aqui como a representação textual de tipos de fala não-padrão que manifestam tanto as forças socioculturais que moldaram a competência linguística do falante quanto os vários grupos socioculturais aos quais o falante pertence ou pertenceu.10 (LANE-MERCIER, 1997, p. 45) Tal definição é próxima à de Sumner Ives, que foi o primeiro a tratar das representações textuais da variação linguística, definindo-as como “dialeto literário”. Para ele, “[...] é uma tentativa de um autor representar na escrita uma fala que é restrita de forma regional, social ou ambas” (1950, p. 137).

Rosa contrapõe o termo Variedades Literárias11 à língua autêntica, e afirma que:

[...] uma distinção deve ser feita entre o discurso autêntico e sua recriação na ficção. Muitos filtros estão envolvidos entre a variação linguística autêntica e variedades literárias, ou pseudo- dialetos e sotaques recriados na literatura e no cinema.12 (ROSA, 2012, p. 82)

Segundo a autora, o motivador para que a variação linguística apresente complexidades para a tradução é o seu entendimento como correlação de sotaques e dialetos, e elementos contextuais como “tempo,

10 “The concept of literary sociolect is construed here as the textual representation of ‘non- standard’ speech patterns that manifest both the socio-cultural forces which have shaped the speaker’s linguistic competence and the various socio-cultural groups to which the speaker belongs or has belonged.”

11 “Literary Varieties”

12 “a line must be drawn between authentic discourse and its recreation in fiction. Many filters apply between authentic linguistic variation and literary varieties, or pseudo dialects and accents recreated in literature and film.”

espaço, grupos socioculturais, situação e usuário individual”13 (ROSA, 2012, p. 77).

Como já foi dito aqui, alguns usos têm mais prestígio em um dado polissistema linguístico, enquanto outros não o tem ou são estigmatizados. Os usuários proficientes e inseridos nesse polissistema localizarão outros usuários em uma escala de prestígio sociocultural, e também em uma “rede de relações de poder”14 (ROSA, 2012, p. 80).

A construção e o uso de representações literárias de variedades linguísticas seguem a mesma lógica. Estereótipos sociolinguísticos são organizados em categorias de valor sócio-semiótico e sentido, correlacionados a cada extrato sociolinguístico. Rosa nota que tais elementos são geralmente constituídos de um repertório de marcadores ficcionais previamente usados e reconhecidos. Contudo, tal recriação é limitada pela “necessidade de legibilidade, o grau de consciência de variação linguística em uma determinada comunidade linguística, o meio, a complexidade do enredo e outros”15 (ROSA, 2012, p. 82).

Gostaria de exemplificar o uso de tais marcadores e elementos usados na caracterização ficcional de variedades linguísticas autênticas

com um trecho de Bound For Glory (1943), romance autobiográfico do autor e músico norte-americano Woody Guthrie. O livro ilustra o uso de representações de variedades linguísticas na literatura norte-americana do século XX, e Guthrie chegou a ser criticado por sua “reprodução cuidadosa demais da fala iletrada”16 (LABORIE, 2005). Gostaria de lembrar que meu projeto de pesquisa inicial incluía traduzir Bound For

Glory, que até a presente data ainda não foi publicado no Brasil.

"We would hafta git th' only goddam flat wheeler on th' whole dam train!" A heavy-set boy wih a big-city accent was rocking along beside me and fishing through his overhauls for his tobacco sack. "Beats walkin'!" I was setting down beside him. "Bother you fer my guitar handle ta stick up here in yer face?"

"Naw. Just long as yuh keep up th' music. Kinda songs ya sing? Juke-box stuff?” (GUTHRIE, 1943, p. 19, grifos meus.)

13 “time, space, socio-cultural group, situation, and individual user.” 14 “network of power relations.”

15 “the need for readability, the degree of consciousness of linguistic variation in a given linguistic community, the medium, the complexity of plot, among others.”

16

No trecho acima, os elementos em negrito podem ser descritos como “marcadores linguísticos formais usados para recriar discurso de menos prestígio e sub-padrão”17 (ROSA, 2012, p. 85). Da mesma forma, a tradutora brasileira Ana Ban usou elementos próprios da cultura de chegada, a brasileira, para recriar a oralidade estigmatizada dos personagens de Of Mice And Men (1937), de John Steinbeck, como se pode perceber no fragmento:

- Esses sujeito chegaro agorinha memo – disse Slim, fazendo a apresentação.

- Prazê em conhece oceis – disse o gordo. – Eu me chamo Carlson.

- Eu sô o George Milton. Esse aqui é o Lennie Small.

- Prazê em conhecê oceis – Carlson disse de novo. – Ele num é muito pequeno. – Riu baixinho com a piada que fez. – Num é pequeno memo – repetiu. – Eu queria te perguntá, Slim...Cadê a tua cadela? Ela num tava embaxo da tua carroça hoje de manhã. (BAN, 2005, p. 55, grifos meus.)

Em sua tese, Hanes (2015) usa o termo “representação textual de discurso oral”, que é interessante por evidenciar o caráter oral das variedades linguísticas recriadas na ficção.

Adoto nesta dissertação o termo mais genérico “variedades linguísticas”, ou a mais distinta “representação textual / literária de variedades linguísticas / de discurso oral”.

As representações textuais de variedades linguísticas, de dialetos e dos vernáculos refletem a estratificação da língua de um país. Tal heterogeneidade linguística será tratada a seguir.