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1.2. Representações sobre a maternidade

1.2.2. Representações maternas e interação mãe-bebê

As formulações de Stern (1992, 1997) a respeito de como são construídas as representações ao longo do desenvolvimento do bebê permitem compreendê-las como uma parte necessária e normal do desenvolvimento e da experiência com os outros. Ao abordar a situação clínica nas psicoterapias pais-bebê de orientação psicodinâmica, o autor considerou o mundo representacional dos pais como o primeiro elemento a ser examinado, devido à sua importância na determinação da natureza do relacionamento com o bebê. Para o autor, este mundo representacional refere-se a como os pais experenciam e interpretam subjetivamente os eventos objetivamente disponíveis na interação com o bebê, incluindo os seus comportamentos e também os comportamentos dele. Dessa forma, as representações parentais incluem não apenas as interações atuais, mas também as lembranças infantis, fantasias, medos e expectativas em relação ao bebê, as quais se formam e se organizam na experiência interativa, principalmente na experiência subjetiva de estar-com outra pessoa, a qual pode ser tanto uma experiência interativa real como fantasiada. No que se refere particularmente às representações maternas, Stern salientou que, com o nascimento de um bebê, a mãe se vê diante de uma reelaboração de esquemas. Conforme o autor, esses esquemas referem-se ao bebê, a si mesma, ao companheiro e às famílias de origem.

Os esquemas maternos sobre o bebê dizem respeito aos vários bebês que se sobrepõem na mente da mãe: o bebê como pessoa, como seu filho, como filho de seu marido, como irmão de seus outros filhos e como neto de seus pais (Stern, 1997). Para o autor, cada um desses bebês é um bebê diferente para a mãe, e a representação acerca de cada um deles será construída a partir das interações vividas. Como exemplo, Stern destaca que uma representação de cumplicidade entre mãe e bebê pode ocorrer em um momento em que estão rindo juntos. Da mesma forma, uma representação daquele bebê como seu filho pode ocorrer quando alguém comenta o quanto são parecidos fisicamente ou em termos de temperamento.

As representações acerca do bebê começam a ser construídas antes mesmo da sua concepção. Para Stern (1997) elas têm início nas brincadeiras e fantasias da mulher, ainda criança ou adolescente, a respeito da possibilidade de ter um filho. Este bebê que desde muito cedo existe na mente da futura mãe foi inicialmente denominado por Lebovici (1987) como bebê imaginário. Em relação a isso, o autor propôs que três bebês poderiam ser identificados na mente materna: o primeiro deles seria o bebê da fantasia, aquele resultante da conflitiva edípica da mãe e que, portanto, acompanharia o desejo infantil de

ter tido um filho com o pai. Já o segundo seria o bebê imaginário, aquele construído durante a gestação, nos sonhos e nas expectativas, como resultado do desejo da maternidade. O terceiro seria o bebê propriamente dito, aquele que é real e que a mulher conhece no dia do nascimento.

As representações que a mãe constrói a respeito do feto não ocorrem paralelamente ao seu desenvolvimento no útero. Para Stern (1997), estas são intensificadas por volta do quarto mês de gestação e atingem o seu auge por volta do sétimo mês. De acordo com o autor, além da contribuição da ecografia para esse processo de intensificação, é também relevante o fato de que em torno do quarto mês a mãe começa a sentir os movimentos fetais, o que faz com que o futuro bebê torne-se mais palpável para ela. Por outro lado, no final da gestação ocorreria uma considerável diminuição nas representações maternas, provavelmente em virtude da necessidade da mãe de preservar a si mesma e ao bebê das discordâncias entre o bebê real e aquele imaginado.

A concepção de que o bebê imaginado permite à mãe começar o relacionamento com o seu filho mesmo antes dele nascer é também defendida por Brazelton e Cramer (1992). Para os autores, durante a gestação a mãe personifica o feto a fim de que, após o nascimento, não se depare com um ser totalmente estranho. Essa personificação pode ser observada já na escolha do nome, das roupas, bem como nas mudanças relacionadas à casa, com o objetivo de preparar um espaço para o bebê. Além disso, os autores consideraram que os movimentos do feto já possibilitam aos pais uma atribuição de temperamento ao bebê, o que denominaram de apego primordial. Com o nascimento, as representações sobre quem o bebê é e quem ele irá se tornar passam a ser reconstruídas pela mãe, mas agora conforme os dados oferecidos pelo bebê real, como, por exemplo, aqueles que se referem ao seu temperamento, ou seja: a mãe permite-se um reajustamento em seu mundo representacional a fim de abrir um espaço para a construção de novas representações (Stern, 1997).

No que se refere aos esquemas sobre si mesma, Stern (1997) acredita que com o nascimento do bebê o status e a identidade básica da mãe sofrem uma importante modificação. Nesse sentido, afirma que o cotidiano com o bebê desencadeia um processo radical de reorganização das representações do self como mulher, mãe, esposa, profissional, amiga, filha e neta. De acordo com o autor, o bebê ajuda a mãe nessa reorganização do seu mundo representacional da mesma forma em que ela o ajuda na regulação de seus ciclos de sono e de fome.

Porém, dentre todas essas mudanças, Stern (1997) considera que a transformação na identidade de filha para a mãe merece uma atenção especial. Para o autor, isso se deve ao fato de que, mesmo para uma mulher autônoma em relação aos pais, a identidade de filha-de-sua-mãe, que representava uma espécie de centro de gravidade histórico, precisa mudar para mãe-de-sua-filha. Conforme Stern, “num único golpe, parte do mundo representacional fixo mudou-se irreversivelmente” (p. 29). Em relação a isso, é interessante analisar que o autor considera que essa mudança na identidade pode estar relacionada a um profundo sentimento de perda, o qual pode contribuir para um estado de depressão após o parto.

Uma outra rede de esquemas representacionais construídos pela mãe com a perspectiva da maternidade refere-se aquela sobre o companheiro (Stern, 1997). Nesse sentido, o autor postula que a mudança de um casal para uma tríade impõe alterações nas representações prévias do casal, a fim de que o bebê seja incluído em suas vidas. Associado a isso, ele considera que muitas representações da mãe em relação ao bebê implicam em uma representação complementar a respeito do companheiro. Como exemplo, cita a representação do bebê como aquele que irá unir definitivamente o casal ou, ao contrário, aquele que ameaçará a sua sobrevivência. De qualquer forma, concebe que, em famílias com estruturas tradicionais (formadas por pai, mãe e filhos), as representações maternas em relação ao companheiro caracterizam-se principalmente pela busca um apoio que facilite o papel primário de mãe.

A chegada de um filho também permite à mãe uma reavaliação consciente ou inconsciente de esquemas relacionados à sua própria mãe (Stern, 1997). De acordo com o autor, esses esquemas referem-se às representações a respeito de sua própria mãe como esposa, como mulher, como avó do seu bebê e como mãe para ela quando criança. Para Stern, a representação que a mãe tem a respeito da sua própria mãe (como mãe para ela na infância) será fundamental para a representação materna que ela construirá de si mesma (como mãe para o seu bebê). Sendo assim, o autor afirma que o futuro comportamento da mãe com o seu bebê não está associado necessariamente com o que de fato aconteceu no passado no seu relacionamento com sua mãe, mas, sim, nas representações que desenvolveu a partir desse relacionamento.

As representações da mãe a respeito do seu relacionamento com o próprio pai também sofrem uma reavaliação com o nascimento do bebê, ainda que esta não seja tão intensa como costuma ocorrer em relação à figura materna (Stern, 1997). Para o autor, essa reavaliação assume uma relevância clínica ao se considerar que as representações

sobre o pai podem ter um lugar central no modelo de pai que a mãe quer ou não quer para o seu bebê. Contudo, o autor aponta para a importância de se investigar como se dá essa reavaliação quando o pai da mãe representa a figura de apego mais estável em sua vida.

Por fim, Stern (1997) chama a atenção para o fato de que as representações da família de origem também desempenham um papel fundamental, no sentido de que podem influenciar a maneira como a mãe ou o pai agem com o bebê. Conforme o autor, as interações familiares podem ser reorganizadas em termos de mitos, lendas e segredos, os quais seguem um determinado script familiar.

A toda essa modificação e reorganização de esquemas experimentados pela mãe após o nascimento do bebê, Stern (1997) denominou constelação da maternidade. Conforme o autor, esta constelação refere-se a uma nova organização psíquica que determinará uma série de ações, sensibilidades, medos, fantasias e desejos da mãe, tornando-se o eixo organizador dominante de sua vida psíquica e empurrando para o lado as organizações ou complexos nucleares anteriores, como o Complexo de Édipo. A constelação da maternidade refere-se a três preocupações e discursos diferentes, mas relacionados: o discurso da mãe com a própria mãe; seu discurso consigo mesma; e seu discurso com o bebê (Stern, 1997). De acordo com o autor, ao fazer uma reelaboração mental em torno dessa trilogia, quatro temas se fazem presentes: o tema da vida-crescimento; o tema do relacionar-se primário; o tema da matriz de apoio; e o tema da

reorganização da identidade.

Em relação ao tema vida-crescimento, a questão central para a mãe logo após o nascimento do bebê é se terá condições de mantê-lo vivo e se poderá promover o seu desenvolvimento físico (Stern, 1997). Para o autor, isso explicaria o medo que não raras vezes as mulheres sentem de que o bebê pare de respirar, não se alimente adequadamente ou caia, sendo possível que se sinta inadequada nessa tarefa de cuidados. Segundo Stern, esse tema de vida refere-se à sobrevivência da espécie e é único no ciclo vital, no sentido de que provavelmente em nenhum outro momento foi ou será enfrentado dessa maneira pela mãe.

O tema do relacionar-se primário diz respeito ao envolvimento socio-emocional da mãe com o bebê e se caracteriza pela sua preocupação em poder “ler” o bebê, ou seja, relacionar-se com ele de um modo não-verbal (Stern, 1997). Conforme o autor, essa forma de relacionamento inclui o estabelecimento dos laços de apego, segurança e afeição que assegurarão o desenvolvimento psíquico que a mãe quer para o bebê. Nesse sentido, as questões centrais referem-se à preocupação em relação à capacidade de amar o

bebê, em sentir que o bebê a ama e que pode desenvolver uma sensibilidade que seja suficiente para atender às necessidades do bebê.

Este dois temas da constelação da maternidade remetem àquilo que Winnicott (1967) conceituou como preocupação materna primária. Esta preocupação refere-se à capacidade da mãe para identificar as necessidades do seu bebê recém-nascido, fazendo o que é adequado para o seu bebê naquele momento. Para o autor, um desenvolvimento adequado do bebê estará estreitamente associado aos cuidados de uma mãe “suficientemente boa” que, por estar em sintonia com o seu bebê, consegue apoiá-lo.

O tema da matriz de apoio refere-se à necessidade da mãe de criar, permitir, aceitar e regular uma rede apoio protetora para que possa manter o bebê vivo e promover seu desenvolvimento psíquico-afetivo (Stern, 1997). Para o autor, a matriz de apoio tem duas funções principais: proteger fisicamente a mãe para que ela possa dedicar-se ao bebê e apoiá-la em termos psicológicos e educativos. Em relação a isso, Stern chama a atenção para o fato de que, tradicionalmente, o apoio do marido restringia-se a tarefa de manutenção física da mulher, enquanto que cabia a uma figura feminina à tarefa de apoiá-la e instruí-apoiá-la em reapoiá-lação ao desempenho da função materna. Porém, com o reapoiá-lativo desaparecimento da família ampliada, observa-se a necessidade de ampliação das funções atribuídas ao pai. Ainda assim, Stern considera que o principal envolvimento psicológico da mãe após o nascimento do bebê dá-se com as figuras maternas de sua vida.

As preocupações referentes ao tema da matriz de apoio incluem as representações da mãe a respeito do quanto o marido a protege fisicamente e a apóia psicologicamente, bem como sobre conseguir ou não pedir a sua ajuda e poder mantê-la. Ainda em relação ao apoio do companheiro, é possível que surjam medos, como, por exemplo, o medo de que o marido passe a competir como pai e também pela sua atenção, tornando-se muito “pai” para ela, o que poderia ocasionar uma desorganização na relação de casal. Este tema inclui também as representações da mãe sobre como as pessoas que a ajudam a vêem como mãe e sobre sentir-se ameaçada de perder o amor do bebê para essa matriz de apoio.

Finalmente, o tema da reorganização da identidade refere-se às preocupações da mãe com o fato de ser ou não capaz de transformar sua auto-identidade para permitir e facilitar as funções maternas (Stern, 1997). Sendo assim, inclui as representações sobre a mudança de status de filha para mãe, de esposa para progenitora e de profissional para mãe de família, assim como sobre os seus modelos de parentagem e cuidados que teve da própria mãe. Como foi dito anteriormente, a reavaliação que a mulher realiza a respeito

da própria identidade frente ao nascimento de um filho pode ser acompanhada de um sentimento de perda subjacente ao sentimento de ganhos com a maternidade, o qual pode estar relacionado à presença de sintomas depressivos.

Em consonância com esta concepção, a literatura tem ressaltado o caráter conflituoso da experiência da maternidade como um fator de risco para a ocorrência de distúrbios mentais após o nascimento de um bebê. Assim, a seguir serão examinados alguns estudos que avaliaram as representações sobre a maternidade no contexto da depressão da mãe.