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Um dos pontos de destaque que chama atenção nos materiais analisados diz respeito às artes, pois muitos dos personagens negros retratados são do meio artístico, em especial aqueles mais conhecidos nas mídias. Os negros têm um espaço significativo quando o tema é música, mas uma questão importante neste caso é a ausência da cor, exceto, quando o próprio artista – negro, se identifica desta forma. Os artistas negros que aparecem com certa regularidade nas páginas da Veja no período pesquisado são Milton Nascimento, Gilberto Gil, Cartola, Luis Miranda, Martinho da Villa, Candeia.

A revista vai, ao longo dos anos, mostrando as diversas faces de Gilberto Gil, seja no campo artístico seja no político. Gil cede duas entrevistas para a revista, uma em 10 de janeiro de 1979 e outra em 20 de janeiro de 1988. Esses dados são importantes, pois as entrevistas de pessoas negras são bem esporádicas. Nestas duas entrevistas percebemos personalidades diferentes do mesmo Gil. Na primeira, ele aparece como artista e pouco fala de suas origens, só como a África Central influência nas suas composições, da sua carreira internacional e do disco que recém tinha lançado nos EUA. Na segunda entrevista, no entanto, aparece de outra forma, são nove anos de diferença e ele é consultado sobre as comemorações do centenário da abolição da escravatura e a entrevista é também para que ele fale da sua candidatura à prefeitura de Salvador.

A primeira pergunta feita ao Gil nessa entrevista é se ele gostaria de ser branco, conformando a pergunta, por si só, um grande problema a ser debatido. A resposta dada pelo cantor é sintomático:

Não tenho nenhuma necessidade de ser branco. A vida acabou me encontrando caminhos de redenção social. Hoje sou bem realizado intelectualmente, materialmente e conceitualmente. Tenho orgulho da minha humanidade. Além do mais não sou racista. Ou seja, não tenho mais esse problema de ser negro ou branco. E, nesse sentido, até posso desejar ser branco. Tenho todo o direito de desejar ser branco, amarelo, até por curiosidade. Mas pelo lado de compensar uma deficiência, uma inferioridade

introjetada, assumir o branco como um fator de legitimação, aí não. Disso eu não preciso. (VEJA, 20/01/1988, p. 5).

Um dos principais pontos, mesmo que ele quisesse ser racista seria impossível, pois ele nasceu negro e sendo o racismo uma forma de poder, seria improvável que um homem negro fosse racista. Dito em outras palavras, para que um homem negro seja racista seria necessário voltar ao tempo e ao invés dos europeus escravizarem africanos os africanos escravizariam os europeus em seguida confirmaram cientificamente que os brancos seriam inferiores e todas as bases sociais e hierárquicas de destaque seriam ocupadas por homens negros, enquanto os branco seriam os subalternos tidos como inferiores todo o temp. somente depois disso acontecer poderíamos afirmar de forma categórica que o negro é racista. Outra questão é: ele não gostaria de ser branco, por ser realizado intelectual, material e conceitualmente. A pergunta remete, possivelmente, a tensões e lutas negras que talvez sugerissem que alguém gostaria de ser branco para deixar de passar por sofrimentos e provações tão comuns a homens e mulheres negras. No entanto, para Gil, em resposta convicta, remete à ideia de que não precisa ser branco para poder vivenciar sua cultura, sua intelectualidade e genialidade. Ele poderia ser o que quisesse, se o quisesse.

A próxima pergunta indaga ao cantor se para o negro ser aceito no Brasil, precisa ser rico e famoso. Gil responde que não e justifica dizendo que o rolo compressor da cultura e a carnavalização quebrou as resistências com relação ao negro na sociedade brasileira. “Hoje negro é lindo”. Para o cantor, por mais que a população negra ainda sofra com salários menores e muitas vezes não são tratados com a dignidade que todas as pessoas merecem, suas vidas e culturas não podem ser reduzidos apenas a isso. De certa forma Gil tem razão, porém, como negro e futuro candidato a prefeito que tem um espaço privilegiado na imprensa, não seria o caso de questionar essa situação? De pensar na dificuldade de ser negro num país como o Brasil e até numa cidade como Salvador?

Gil faz nesta entrevista também uma comparação entre os negros brasileiros e os estadunidenses. Para ele, por mais que exista racismo no Brasil, a aceitação é muito maior. Fala também de situações em que foi vítima de racismo.

Outro cantor negro que aparece com frequência nas páginas da Veja nesse período é Milton Nascimento. Neste caso específico, só sabemos que o Milton Nascimento é negro por conta das fotos e por conhecermos seu nome, pois através do conteúdo não

diríamos de forma alguma que ele o é. Nascimento cede uma entrevista que não ocupou as primeiras páginas como o Gilberto Gil, mas foi muito relevante, pois foram sete páginas. Nelas foi apresentada a trajetória do artista, sua infância, juventude, foi apresentado como um compositor genial que foi inclusive aclamado por Elis Regina. Umas das frases mais inquietantes dessa reportagem é quando o seu sucesso é atribuído ao fato dele ter seguido o sábio caminho do silêncio. Aqui precisamos pensar nas intencionalidades da revista, pois não se trata do Milton Nascimento negar ou afirmar a sua negritude trata-se sim de um posicionamento da revista de não falar da sua cor, até mesmo quando na reportagem eles falam que a polícia, nos EUA, invadiu a casa em que esse cantor estava e como o confundiram com um bandido que tinha as mesma características do Milton Nascimento. O caso não é tido em nenhum momento como racismo, a revista apresenta o caso como um incidente.

No trabalho de Amilcar Araujo Pereira (2010), ao fazer uma análise como alguns artistas negros brasileiros a partir da década de 1970 começaram a expressar diferentes formas de entendimento sobre a questão racial, Pereira inclui Milton Nascimento na lista desses artistas e faz uma análise da música cantada por ela na abertura do seu CD em 1976. A música é “Raça” e foi composta juntamente com Fernando Brant. Para Pereira o entendimento de raça

Desde a própria dúvida que se configura nas perguntas sobre “de onde vem essa coisa tão minha?”, passando pelo “sangue que já se levanta” e pelo aspecto positivo “que aquece e faz carinho” passando também pela ancestralidade “que vem de longe para nos fazer companhia” e chegando em aspectos culturais presentes, por exemplo, no “canto bonito” de Clementina de Jesus ou no “boné e cachimbo” de são Francisco. (PEREIRA, 2010, p. 67).

Pereira explica, em seguida, que a ideia de raça compartilhada por este e outros artistas está intrinsicamente ligada ao que a Hebe Mattos denomina como uma “apropriação da escravidão”. São, sem dúvidas, aspectos relevantes, mas a questão central aqui é: por mais que não apareçam esses traços nas entrevistas, eles aparecem nas letras das músicas.

Neste capítulo buscamos escrever sobre como os negros brasileiros são representados na revista Veja com foco para os artistas. Nossa escolha foi feita com base na quantidade de vezes que esses artistas apareceram na revista, mas o que norteou

as escolhas foram os conteúdos abordados pela revista. Mesmo as reportagens estando no campo das artes, os aspectos raciais e políticos não deixaram de estar presente e para percebermos foi necessário não levar em consideração somente a objetividade impressa em cada reportagem, mas, principalmente as subjetividades presentes nelas.

3 CAPÍTULO 2 - EM PAUTA O CENTENÁRIO DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA

O centenário da abolição da escravatura foi amplamente comemorado por diversos setores sociais brasileiros. Jornais, Poder Legislativo, escolas de samba, emissoras de TV, artistas, etc. Neste capítulo, pretendo analisar como o evento do Centenário da abolição da Escravatura foi noticiado pelas revistas Veja e Isto É. Para fazer essa análise utilizarei dois cadernos especiais feitos pelas revistas Veja e Isto É em comemoração a esse evento. A ideia é entender como estas revistas representaram, encararam e interpretaram o centenário da abolição da escravatura.

Estes cadernos especiais estão divididos em diferentes reportagens. A Veja apresenta: “o centenário de um mau século: o deprimente Brazil dos escravos de 1888 tem razão para inquietar o país hoje”, “A segunda classe”, “o branco selvagem”. A Isto

É: “Cem anos, sem quase nada”, “Inspiração na África”, “No rastro de Zumbi”, “Jorge

Amado se defende”.

As duas revistas começam as reportagens falando sobre a situação econômica em que os negros se encontravam em 1988. Ambas tentam mostrar a diferença na situação de trabalho entre negros e brancos e a consequência seria a situação financeira em que se encontravam. A revista Veja trouxe também para o debate a questão do amor inter-racial, apontando para o fato de isso acontecer, principalmente, em poemas e músicas, pois a realidade seria bastante diferente. A Isto É apresenta os representantes negros no cenário da política nacional, trazendo também o questionamento se as obras do Jorge Amado apresentavam ou não aspectos folclóricos em relação aos grupos populacionais negros, principalmente no tocante às mulheres denominadas constante, e exaustivamente como mulatas, numa quase alusão à sexualidade destas mulheres negras.

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