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3.5 O conhecimento de embarque

3.5.3 Reservas e cartas de garantia

Como dito anteriormente, o conhecimento de embarque é o instrumento que evidencia as mercadorias recebidas pelo transportador, no porto de origem, as quais deverão ser entregues, no porto de destino, ao seu portador ou ao consignatário nele indicado.

Quando da entrega das mercadorias, o carregador deverá fornecer ao trans- portador uma declaração dos produtos a serem transportados. No entanto, pode ocor- rer que o carregador ao relacionar as mercadorias não o tenha feito com exatidão, de forma que não haja equivalência entre a descrição das mercadorias feitas pelo carre- gador e aquelas efetivamente embarcadas, seja por diferenças relativas à quantidade, à qualidade ou, ainda, quanto à descrição das embalagens das mesmas.

O transportador, na figura do capitão, constatando esta discrepância, deve- rá se resguardar contra reclamações futuras, que poderão ser promovidas pelo consignatário ou pelo portador do conhecimento quando do desembarque da mer- cadoria no porto de destino. Nesse sentido, se o transportador entender que a mercadoria não se encontra fielmente espelhada, havendo, por exemplo, sido cons- tatadas falhas mediante o confronto da mercadoria embarcada e aquela declarada pelo carregador, poderá protestar contra a declaração apresentada pelo carrega- dor, emitindo o conhecimento com “reservas”.

Costeira da Rocha define as reservas como sendo as

“Ressalvas formuladas pelo transportador quanto à caracterização da mercadoria feita pelo carregador (nomeadamente sobre a natu- reza, quantidade e qualidade da mercadoria, o número de volumes ou as respectivas marcas de identificação), seja por constatar avari- as ou faltas que não provocou, seja por não ser possível a verifica- ção, contagem, pesagem ou medição.”193

193 Francisco Costeira da Rocha, O contrato de transporte de mercadorias. Contributo para o

estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte de mercadorias. Coimbra: Almedina, 2000, p. 130.

Embora não previstas pelo direito pátrio, mas reguladas pela legislação estran- geira194 e pelas convenções internacionais,195 as reservas são uma realidade nos

portos nacionais e são opostas quando da emissão do conhecimento em solo pátrio. Com efeito, se o transportador não opuser as reservas quando os costumes indicam que ele poderia fazê-lo, será a primeira (e talvez a única) vítima de sua negligência ou de sua grande confiança no embarcador. A prova de seu descuido será o próprio conhecimento, que registrará uma declaração falsa da quantidade e qualidade de mer- cadorias embarcadas e que deverão ser entregues no porto de destino.

Consubstanciadas nas fórmulas said to contain e shipper’s load and count,196

as reservas deverão ser opostas de forma clara, precisa e motivada. Não serão

194 Em direito comparado, encontramos vários ordenamentos que dispõem sobre as reservas,

estipulando, inclusive, as regras que as mesmas devem seguir. Dispõem sobre o tema, dentre outros, a legislação francesa, artigo 36 do Decreto 66-1078, de 31/12/1966, o artigo 462 do código de navegação italiano, e o artigo 25 do Decreto-lei português n. 352/86. Aliás, à exceção do código peruano (artigo 719 e ss.), as legislações sul-americanas desconhe- cem o sistema de reservas por não adotar as normas da Convenção de Bruxelas e não enunciam os casos em que são ou não permitidas. É o que ensina René Rodière, Traité general de droit maritime. Affrètements & transports. Paris: Librairie Dalloz, 1967, t. II, p. 88.

195 O artigo 16, 1, das Regras de Hamburgo prevê a possibilidade de se opor reservas a um

conhecimento de embarque, nos seguintes termos: “Article 16. Bills of lading: reservations and evidentiary effect. 1. If the bill of lading contains particulars concerning the general nature, leading marks, number of packages or pieces, weight or quantity of the goods which the carrier or other person issuing the bill of lading on his behalf knows or has reasonable grounds to suspect do not accurately represent the goods actually taken over or, where a ‘shipped’ bill of lading is issued, loaded, or if he had no reasonable means of checking such particulars, the carrier or such other person must insert in the bill of lading a reservation specifying these inaccuracies, grounds of suspicion or the absence of reasonable means of checking”. No entanto, determina o artigo 3º, 3, da Convenção de Bruxelas: “Depois de receber e carregar as mercadorias, o armador, o capitão ou o agente do arma- dor deverá, a pedido do carregador, entregar a este um conhecimento (...) Porém, ne- nhum armador, capitão ou agente de armador será obrigado a declarar ou mencionar no conhecimento, marcas, números, quantidade ou peso que, por motivos sérios, suspeite não representarem exatamente as mercadorias por ele recebidas, ou que por meios sufi- cientes não pôde verificar”. (tradução livre)

196 O Dicionário Comercial Marítimo assim traduz as expressões de reserva: “Said to contain

– dito conter, expressão inserida num Conhecimento de Embarque significando que o navio desconhece o conteúdo da embalagem dos volumes recebidos a bordo”. “Shipper’s load and count – carga e contagem do embarcador, expressão usada quando o armador

aceitas quando opostas pelo simples fato de o transportador não ter condições de declarar com exatidão as mercadorias embarcadas por não ter sido diligente quan- do do acompanhamento da operação de embarque. Mas serão válidas nos casos em que o transportador suspeitar ou que por meios suficientes não puder verificar que as mercadorias por ele recebidas não representam, exatamente, aquelas embarcadas.197

Ressalte-se, por oportuno, que as reservas dizem respeito ao embarque e não à responsabilidade do transportador, que não é diminuída quando este rasura o documento, emitindo um conhecimento “sujo”.198 Com efeito, se o consignatário ou

portador do conhecimento provar que as mercadorias efetivamente foram embarcadas, o transportador não poderá se exonerar da obrigação de restituir as mesmas nem se isentar da responsabilidade que surgir por seu inadimplemento.199

Opostas as reservas, o conhecimento estará destituído de sua eficácia probatória, já que não mais atestará o direito firme de seu portador a obter do transportador as mercadorias nele consignadas. Ao portador ou consignatário do conhecimento incumbirá o ônus de provar que a mercadoria foi entregue conforme a declaração apresentada pelo carregador.200

Visando facilitar o comércio internacional e minorar os efeitos causados pelo conhecimento “sujo”, sobretudo nas operações bancárias de créditos docu- mentários, a prática comercial marítima imaginou um documento denominado “car- ta de garantia”.

recebe o container lacrado do embarcador, cujas informações sobre conteúdo, peso, etc. ficam por conta e responsabilidade deste último”. 4. ed. Paranaguá: ACM Publicações. Verbetes “said to contain” e “shipper’s load and count”, p. 71-76, respectivamente.

197 É esse o teor do artigo 3º, alínea 3ª, da Convenção de Bruxelas.

198 Na linguagem corrente, diz-se que um conhecimento é “sujo” quando emitido com reservas. 199 René Rodière, Traité general de droit maritime. Affrètements & transports. Paris: Librairie

Dalloz, 1967, t. II, p. 88.

200 A contraprova poderá ser feita pelos já mencionados certificados de peso e qualidade

À semelhança das reservas, a previsão legal das cartas de garantia também é encontrada em legislação estrangeira201 e convenções internacionais,202 mas

não no direito brasileiro, embora seja, todavia, prática corrente.

As cartas de garantia são acordos em que o carregador se compromete a indenizar o transportador pelos danos resultantes da emissão do conhecimento de embarque sem reservas, garantindo que arcará com todas as despesas que recaí- rem sobre o transportador, caso constatada eventual desconformidade entre as men- ções do conhecimento e as condições efetivas das mercadorias entregues.

A carta de garantia é válida na relação entre o transportador e o carregador, não sendo oponível a terceiros,203 designadamente ao destinatário e ao segurador,

que, todavia, podem se utilizar destes acordos contra o carregador. Assim, a carta de garantia não serve para afastar a responsabilidade do transportador, mas justa- mente ao contrário, torná-lo responsável quando da chegada do navio ao porto. Nesse sentido, também ensina René Rodière:

“A carta de garantia é para o destinatário res inter alios acta. O destinatário, portador de um conhecimento limpo, pode considerar as indicações do conhecimento como exprimindo a realidade e reclamar uma indenização do transportador logo que ele receba as mercadori- as e constate a falta de mercadorias ou ateste mercadorias de uma qualidade inferior àquela que está informada no conhecimento.”204

201 Em direito comparado, podemos indicar o artigo 26 do Decreto-lei n. 352/86, que expres-

samente prevê as cartas de garantia no direito lusitano.

202 Nas Regras de Hamburgo as cartas de garantia estão previstas no artigo 17, §§ 2°, 3° e 4°. 203 Nesse sentido, o teor do artigo 17, § 3°, das Regras de Hamburgo: “3. Such a letter of

guarantee or agreement is valid as against the shipper unless the carrier or the person acting on his behalf, by omitting the reservation referred to in paragraph 2 of this article, intends to defraud a third party, including a consignee, who acts in reliance on the description of the goods in the bill of lading. In the latter case, if the reservation omitted relates to particulars furnished by the shipper for insertion in the bill of lading, the carrier has no right of indemnity from the shipper pursuant to paragraph 1 of this article.”

204 Nesse sentido ensina René Rodière, Traité general de droit maritime. Affrètements &

Se, porventura, a carta de garantia destinar-se a evitar a formulação de reservas relativas a defeitos da mercadoria conhecidos do transportador, ou que este devia conhecer no momento da assinatura do conhecimento de carga, então o transportador não pode prevalecer-se de tais defeitos para exoneração ou limitação da sua responsabilidade.205

Em face do aumento do transporte de carga em contêineres, redobrada é a importância que deve ser dada às reservas, haja vista que em muitas vezes não é possível ao capitão verificar o conteúdo dos contentores e terá que aceitar a decla- ração de carga feita pelo carregador.

Por fim, sendo constatada diferença entre a mercadoria estipulada no co- nhecimento e aquela desembarcada, em um primeiro momento deve-se verificar se houve erro na execução do contrato de compra e venda ou se os danos foram decorrentes do contrato de transporte. Ou seja, se as mercadorias já foram entre- gues para transporte em desacordo com as especificações apresentadas pelo car- regador ou se no curso da viagem houve deterioração ou diminuição de sua quanti- dade. Apenas na segunda hipótese será o transportador responsabilizado.