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A resistência do campesinato no assentamento Eldorado dos Carajás frente à hegemonia do agronegócio dependente

ELDORADO DOS CARAJÁS

3.1 A resistência do campesinato no assentamento Eldorado dos Carajás frente à hegemonia do agronegócio dependente

Estampa a capa do jornal “O Interessante” de abril de 2011 a manchete “MST: a defesa contínua pela dignidade humana – trabalhadores ligados ao movimento afirmam que o trabalho é a base da consciência social e política”. Ironicamente, ao lado da chamada está outra notícia: “Agricultura de Precisão: tecnologia que usa recursos científicos, como fotografias feitas por satélites, reduz os custos de produção e diminui impactos ao meio ambiente”. Este exemplo nos ajuda a compreender melhor o antagonismo entre os Paradigmas da Questão Agrária - PQA e o Paradigma do Capitalismo Agrário – PCA (FERNANDES, 2007), que atravessa a realidade da região e mais especificamente de Unaí.

Para quem está andando pela região onde se localiza o assentamento Eldorado dos Carajás, é fácil se impressionar com a boa localização e vasta extensão das fazendas que o circundam. Percorre-se quilômetros às margens da rodovia MG 121 tendo como horizonte o verde homogêneo das plantações de commodities, tanto faz se de feijão, milho, ou soja, café, não importa qual for a mercadoria – afinal, não são alimentos, e sim mercadorias – produzida de acordo com o interesse do mercado internacional. Outro aspecto que merece atenção é a alta inversão de capital nestas lavouras, que pode ser evidenciada pela utilização de pivôs de irrigação e a pulverização de agrotóxico feita por aviões, exemplo da referida agricultura de precisão à qual se refere a capa do jornal.

É ali, em meio a um vale, que se encontra o assentamento, um dos últimos refúgios da fauna daquela localidade – pode-se dizer que o é inclusive do ser humano, afinal, no Paradigma do Capitalismo Agrário (PCA) a presença humana é esporádica, ocorrendo apenas quando da exploração da força de trabalho para plantio ou colheita. De modo geral, na região do Entorno estes vales tornaram-se

105 redutos de camponeses, quilombolas e pequenos agricultores. Devido às características do terreno, essas são regiões que não possibilitam a tecnificação desejada pelo PCA.

Este processo de “encurralamento” dos pequenos camponeses e de destruição de seu modo de vida vem se intensificando nos últimos anos na região, conforme aponta Porto-Gonçalves:

É o que vem sucedendo também nos últimos 30 anos no Planalto Central brasileiro, onde vastas áreas planas das chapadas cobertas por cerrados vêm sendo capturadas pelas grandes latifúndios empresariais do agronegócio, áreas essas historicamente usadas pelos camponeses como campos gerais, isto é, campos que pertencem a todos (são gerais). Ali, os camponeses usam os fundos dos vales para a agricultura, onde cada família tem seu próprio lote, e as chapadas como área comum (gerais). A reprodução camponesa se vê, assim, impossibilitada na medida que lhe são amputadas suas terras comuns num processo muito semelhante àquele analisado por Tomas Morus e por Karl Marx sobre o cercamento dos campos na Inglaterra (PORTO-GONÇALVES, 2006: 169)

Essas terras, as quais o capital ainda não havia conseguido explorar, vêm sendo ameaçadas através da instalação de PCH's (Pequenas Centrais Hidroelétricas) em toda a região do nordeste goiano e do noroeste mineiro, expulsando as populações que vivem ali e destruindo seus territórios. Exemplos claros são as usinas em processo de instalação em Cavalcante/GO - no território quilombola Kalunga - e nas proximidades do Assentamento Eldorado em Unaí/MG, onde pelas informações obtidas as 100 famílias assentadas desde 1998 no Assentamento São Miguel serão atingidas pela PCH São Miguel.

O relato de um dos assentados alerta ainda para outra dimensão desta disputa com o modelo do agronegócio:

cercados de vários latifundiários por ali, dos dois lados um que é o cafezal e outro é aquela área lá do João Coco. Então, a gente se sente assim acuado naquele meio, teve até um acontecimento que um fazendeiro lá de cima estava batendo o veneno e esse veneno estava prejudicando até o assentamento. (Entrevistado B)

106 O que se observa é que, assim como a população de forma geral, o assentamento é atingido diretamente pelo modelo de produção do agronegócio. Um dos principais efeitos é a contaminação por agrotóxicos. De acordo com o relatório da “Subcomissão Especial Sobre o uso de Agrotóxicos e suas Conseqüências à Saúde”, instalada na Câmara dos Deputados em 2011, verificou-se que o consumo de agrotóxicos no mundo aumentou quase 100% na última década e “no Brasil, a taxa de crescimento atingiu quase 200%” (2011). Apenas no ano de 2010 foram comercializadas mais de um milhão de toneladas de agrotóxicos em todo o território nacional, colocando o país em primeiro lugar no consumo mundial. A estimativa que se tem é de um consumo médio de 5,7 litros de agrotóxicos por habitante no Brasil.

O elevado consumo dos agrotóxicos é apenas mais uma face dos efeitos perversos do modelo do agronegócio. Ele traz severos impactos ao meio ambiente, e à população, além do que atrela diretamente a economia brasileira à produção de produtos primários, dependente hoje de cerca de 10 empresas multinacionais. O consumo de agrotóxicos evidentemente está ligado diretamente à privatização das sementes transgênicas, pois este elevado aumento ocorreu após a liberação do uso de tais sementes no país.

Mas que desenvolvimento é este? O desenvolvimento em que se combinam as últimas tecnologias – do ponto de vista do agronegócio – com a superexploração do trabalho no campo, causando a degradação da sociobiodiversidade? Convivem ali naquela realidade diferentes territórios na desleal disputa, onde de um lado existe o campo do negócio que consegue combinar muito bem o arcaico e o moderno na busca da maximização dos lucros, e de outro os que procuram reinventar a vida sob outra ótica. É necessário, portanto, entender o campo enquanto parte de uma totalidade, considerando que esta parte não se constitui como um espaço homogêneo, mas contraditório, e que a opção por determinado modelo de desenvolvimento vem demonstrando suas conseqüências.

107 Imagem 3.1 Os dois campos: a agri-CULTURA e o agro-NEGÓCIO25

Mesmo sendo evidentes tais diferenças, é essencial entendermos por que e como essas duas realidades (do campesinato e do agronegócio) produzem dois territórios distintos. Um ponto central é o objetivo final da produção, onde o agronegócio busca a produção de mercadorias e o campesinato procura se organizar para a produção de sua existência em primeiro lugar, procurando potencializar o desenvolvimento de diversas outras dimensões que não somente as econômicas. A tabela abaixo, organizada por FERNANDES e MOLINA (2004:85), nos ajudam a visualizar melhor estes dois territórios:

Campo do Agronegócio Campo da Agricultura Camponesa

Monocultura – Commodities Policultura – uso múltiplo dos recursos naturais

Paisagem homogênea e simplificada Paisagem heretogênea complexa Produção para a exportação

(preferencialmente) Produção para o mercado interno e para exportação Cultivo e criação onde predomina as espécies

exóticas Cultivo e criação onde predominam as as espécies nativas e da cultura local Erosão genética Conservação e enriquecimento da

diversidade biológica Tecnologia de exceção com elevados níveis

de insumos internos Tecnologia apropriada apoiada no saber local com base no uso da produtividade

25 Fonte: Jornal o Interessante. Ao fundo na paisagem não homogênea localiza-se a entrada do assentamento Eldorado.

108 biológica primária da natureza.

Competitividade e eliminação de empregos Trabalho familiar e geração de empregos Concentração de riquezas, aumento da

miséria e da injustiça social Democratização das riquezas desenvolvimento local – Êxodo rural e periferias urbanas inchadas Permanência, resistência na terra e

migração urbano-rural.

Campo com pouca gente Campo com muita gente, com casa, com escola

Campo do trabalho assalariado (em

decréscimo) Campo do trabalho familiar e da reciprocidade Paradigma da Educação Rural Paradigma da educação do campo Perda da diversidade cultural Riqueza cultural diversificada – festas,

danças, poesias – música – exemplo o Mato Grosso é o maior produtor brasileiro de milho e não comemora as festas juninas. Já no nordeste..

Agro- NEGÓCIO Agri-CULTURA

Imagem 3.2 Entrada do Assentamento Eldorado dos Carajás26

Estes aspectos ressaltados pelos autores ficam evidentes no cotidiano dos camponeses assentados conforme observamos, o que se caracteriza no antagonismo entre tais modelos e as conseqüências que o modelo hegemônico

109 impõe. Além destas questões, a disputa política também é presente na vida das famílias:

Tem vários fazendeiros como o Antero Mânica, ele é o maior latifundiário daqui, plantador de feijão. Então, é o cara que não gosta de sem terra de jeito nenhum, e nós mostrou para ele que nós do assentamento Eldorado nós ta lá lutando pelo nosso direito, porque se nós abrisse ali só para fazendeiro não existia o assentamento Eldorado. (entrevistado B)

A resposta da reforma agrária é expressa na resistência das famílias assentadas, através da produção de alimentos, de uma cultura, de elementos que simbolizam a vida. Conforme já observado no 2º capítulo deste trabalho, é este modo distinto da ocupação territorial que a reforma agrária coloca ao município, seja para o contingente populacional do campo, seja para a produção de alimentos.

se nós recuasse ali eles iam tomar de conta só que não que nós mostrou pra eles ali que mesmo nós mesmo que sejam 36 familias, um assentamento pequeno, mas, nós mostrou para eles que o assentamento se tornou grande porque agente segurou a área, tamo lá morando e produzindo (entrevistado B)

A experiência do assentamento Eldorado é aqui observada enquanto possibilidade de antítese à lógica que o capital vem impondo ao campo. Pode esta experiência, através da organização coletiva do trabalho, superar a dicotomia entre o trabalho manual e intelectual, construindo possíveis formas organizativas que apontem para além do capital? É possível que os trabalhadores e trabalhadoras assentados encontrem a dimensão formativa do trabalho em seu labor dadas as imposições do capital e devido à precarização das relações sociais?

Em que aspectos pode-se notar rupturas e continuidade com o status quo? Como a organização coletiva ainda embrionária, a forma como estão produzindo observada no assentamento pesquisado supera as contradições e aponta para novas?

A relação dialética entre a organização coletiva e a individualidade pode ser apontada como desafio constante para a superação de relações reificadoras do

110 processo de trabalho? Consideramos ainda que há uma tendência forte ao focarmos o estudo em uma realidade específica de procurarmos dentro dela mesmo as razões de suas dificuldades de suas contradições, entretanto é preciso ter presente de forma constante a dimensão da totalidade, pois quando analisamos o processo de trabalho coletivo no assentamento e as suas contradições entre o indivíduo e o coletivo, vale nos perguntar: tais contradições estão contidas no trabalho ou no capital?

Certamente tais questões não serão respondidas nesta pesquisa, tampouco em qualquer outra, pois é somente o processo histórico e a organização dos trabalhadores que demonstram a sua possibilidade; no entanto, elas nos servem de guia para a reflexão da realidade observada no assentamento Eldorado.

O que procuramos até aqui foi justamente identificar de forma geral a realidade à qual se insere o assentamento pesquisado, e os antagonismos presentes ali. É importante agora aprofundar a realidade do território do assentamento no qual verificamos a existência de elementos que contrapõem a lógica do capital na vida das pessoas no campo, dando um enfoque especial à reflexão sobre o campesinato, o trabalho e as contradições que atravessam este processo educativo.

3.2 A luta pela terra e o território do Assentamento: espaço da reinvenção do