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As resistências surdas: a língua de sinais como diferença e os deslocamentos de sentidos

DIFERENÇAS, ACONTECIMENTOS, RESISTÊNCIAS: POR PLURALIDADES CULTURAIS E LINGÜÍSTICAS

2.1 As resistências surdas: a língua de sinais como diferença e os deslocamentos de sentidos

Não haveria hospitalidade25 – nem atenção, nem acolhida, nem rosto, nem palavra, nem relação – se o outro é uma temática, se o outro é feito uma temática, se o outro se nos aparece como temática (SKLIAR, 2005, p. 31).

A citação inicial de Skliar (2005), colocada em epígrafe, ilumina o acolhimento da diferença e a relação com o outro, que para mim têm muito a dialogar com a questão da resistência do outro, como resposta às hostis marcas deixadas, ou anunciadas, sobre seu corpo, sua condição de existência. O autor faz uma ressalva à necessária destematização do outro; do outro efeito de temática, de investigação, tomado pelo objetivismo científico.

Dialogando com o capítulo I, a acolhida do outro como uma oferta hospitaleira de escuta só se efetiva na medida em que o outro não é colocado como objeto de reconhecimento, de investigação, de normalização. Nesse ponto, Foucault (2001) oferece aporte teórico suficientemente interessante para pensar a própria lógica social que padroniza e cria sujeitos em tempos e espaços, e com interesses concretos em dado contexto histórico. Nessa linha, pode-se pensar em sair da nosografia de um sujeito inventado anormal, rumo à escuta franqueadora da diferença; uma investida e tanto numa sociedade que tem sido marcada pelo ideal e pela norma.

Mantendo as questões da criação dos dispositivos de construção das “anormalidades”, em Foucault (2001), penso ser possível convocar para o diálogo Jacques Derrida (2002, 2003, 2004) em pelo menos dois momentos: para falar primeiro da

diferença e depois da hospitalidade da e na diferença – tanto para a discussão sobre a

inclusão universitária do surdo com intérprete de língua de sinais, quanto sobre a diferença

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A questão da hospitalidade, como hospitalidade hostil é um tema que vem me mobilizando a pensar a diferença e a inclusão. Derrida (2003) propõe a hospitalidade incondicional, inquietante e instigante. Autores como Skliar (2005) retomam essa questão, mas a hospitalidade nunca se apresenta como totalmente acolhedora (alegoria que trago a inclusão). Nesta nota anuncio meu interesse pela relação “hospitalidade hostilidade” como dois lados de uma mesma moeda, uma pista para entender a relação paradoxal na inclusão, e a relação paradoxal da função do ILSE, e que pretendo desenvolver em outra pesquisa.

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surda que põe em diálogo a língua de sinais, as subjetividades surdas, os processos e marcadores culturais correlatos.

Jacques Derrida (2004), dialogando com Elisabeth Roudinesco, fala da formação de uma política da diferença e de suas implicações sociais. Para argumentar sobre uma diferença irredutível, Derrida (2004) estabelece dois conceitos, différence e

différance26 – a troca da letra e pela letra a, mantendo inalterada a pronúncia no francês – portanto, uma marca muda – desconstrói o legado platônico (logocêntrico) de primazia da

phoné sobre a escritura. Isso ocorre uma vez que a dupla articulação das palavras différance

e différence só pode ser vista na escrita francesa e não em sua pronúncia. É dessa maneira que o autor abre a possibilidade de mostrar a irredutibilidade da diferença e o incalculável do ser e dos acontecimentos.

Ao ser nomeada différance, a diferença derridiana denuncia uma constante, e sempre presente, diferenciação do sujeito. O inescapável da maquinaria da vida no acontecimento. Ou seja, a différance elimina a possibilidade de pensar o “um” único sujeito humano e a “uma” única experiência. Para Derrida (2004), o outro não se diferencia apenas em homem e mulher, negro e branco, surdo e ouvinte, etc, mas permanece uma eterna e sempre presente diferença, intraduzível, que escapa a todo e qualquer binarismo. A

différance marca o inescapável, o incalculável da própria relação de qualquer um com o

outro, e essa irredutibilidade e sua eterna diferenciação permanecem além de “qualquer espécie de limites: quer se trate de limites culturais, nacionais lingüísticos, ou mesmo humanos” (DERRIDA & ROUDINESCO, 2004, p. 33).

No contexto deste trabalho, também a diferença surda é irredutível, porque mesmo entre os surdos não há igualdade de escolha, de opinião: há divergências altamente criadoras. Utilizo a palavra igualdade marcando as singularidades de cada surdo e de cada

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Différence, palavra em francês traduzida para o português como diferença, discrepância, divergência, é utilizada por Derrida (2004) para falar da questão do outro, das diferenças irredutíveis. Brinca com a palavra, criando em Francês outro termo différance (com a troca da letra e pelo a) que soa igual. No Brasil alguns autores traduzem-na por diferença e diferência, entre outras formas, todavia, não surte o mesmo efeito que o Francês – a marca muda e deixa de ser muda. Optei por manter o termo original criado por Derrida (2004).

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um, mesmo nos contextos em que supostamente os direitos devem ser os mesmos e as opiniões devem ser pelo menos ouvidas (numa democracia): o uso da língua de sinais, o direito a intérpretes, a opção pela oralização, o não querer intérpretes, entre outros. Mesmo considerando a questão da igualdade de direitos do cidadão (moradia, escola, saúde), essa “igualdade” não se mostra tão igual assim! Assim como a différance, também a diferença surda rompe com a lógica logofonocêntrica, ao inscrever-se fora da primazia sonora. A língua de sinais permanece como diferença tanto lingüística (de uma língua para outra, no uso de cada sujeito) quando de modalidade (espaço-gesto-visual).

Explorando mais ainda a questão da irredutibilidade da diferença, seguimos também o caminho aberto por Gilles Deleuze e Félix Guattari (1977; 1995; 1997). Embora tenham suas particularidades e fronteiras entre suas produções de sentido, penso poder dialogar bem com o conceito de différance derridiano. Seus conceitos de literatura e

filosofia maior e menor, e de ciência e produção de conhecimentos tomados como maiores e menores também oferecem, na filosofia da diferença, bases para pensar a maioridade e

minoridade das comunidades surdas e suas produções singulares, mostrando os deslocamentos da questão da “anormalidade” para a diferença surda.

Para Deleuze e Guattari (1997) há uma duplicação do conhecimento: a produção de conhecimentos “oficiais”, mantidos pelo Estado nas suas produções de verdades dogmáticas e transmissíveis, e a produção de conhecimentos “marginais” que não se fixam na maquinaria do Estado, mas extrapolam, fendendo a própria máquina social e suas proposições. Retomados por Gallo (2007), esses conhecimentos apresentam-se como segue:

[...] ao primeiro chamam de ciência régia (ou ciência maior); ao segundo, de ciência nômade (ou ciência menor). A ciência régia funciona de acordo com os mecanismos da máquina do Estado; já a ciência nômade opera com máquina de guerra, no registro dos povos nômades, que não possuem Estado (GALLO, 2007, p.25).

[...] ciência maior e ciência menor convivem, uma não substituindo a outra. Há processos de captura da ciência menor no âmbito da maioridade e ela sofre então uma operação de institucionalização, passando a jogar segundo as regras da maioridade. Mas existem também resistência e fuga da ciência menor, mantendo- se na independência da marginalidade (GALLO, 2007, p. 27).

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De certa forma, a marginalidade dos discursos tomados como falas menores afeta a ciência maior ao mesmo tempo em que engendra ciências menores, que coexistem com a primeira, mas sem com ela se fundir. Tem-se, assim, a minoridade na literatura, na arte, nos movimentos de resistências (DELEUZE & GUATTARI, 1977, 1997). Tal tensão sempre presente – entre o que seja maior e menor é altamente importante para abalar o Estado e suas certezas; a minoridade trazida como potência criadora alça novas formas e vozes que fazem valer a multiplicidade não redutível ao uno, mas rizomática, em seus mil caminhos possíveis, lançados e entrelaçados nos discursos e afetando significativamente o corpo do sujeito, que vive seus desejos em agenciamentos.

Neste ponto, aproximo-me das questões lingüísticas, da língua de sinais, e focalizo a diferença surda, o texto-continente-rizoma de Deleuze e Guattari (1995), “Mil platôs” (1923) – Postulados da lingüística – pode adensar a discussão. Nessa obra, os autores defendem quatro postulados sobre a língua e a linguagem, desconstruindo outros postulados da lingüística clássica e evidenciando o caráter político que existe no uso da linguagem: