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4 DESVENDANDO “DESVENDANDO MORO” OU OS OPERADORES EM

4.3 RESPONDENDO, MORO

Segundo Bakhtin (2003, p. 272), “Cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados”, e é justamente tomando como referência essa afirmação do pensador russo que se pretende propor uma breve análise do enunciado a seguir, de autoria do próprio juiz Sérgio Moro, que se coloca, de modo evidente, como uma

resposta ao artigo analisado anteriormente e àqueles que eventualmente tenham concordado com seu conteúdo, ou mesmo, quem sabe, aos que de modo algum poderiam aderir à mensagem do artigo de Rogério Cesar de Cerqueira Leite, como os tucanos, por exemplo. De todo modo, é inevitável (mesmo com o risco de ser bastante repetitivo), não recorrer novamente a Bakhtin, que diz:

Reiteremos: o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva e não pode ser separado dos elos precedentes que o determinam tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas (BAKHTIN, 2003, p. 300).

A seguir, tem-se a resposta do juiz: Quadro 6 – Texto “Lava jato”

Lamentável que um respeitado jornal como a Folha conceda espaço para a publicação de artigo como o "Desvendando Moro", e mais ainda surpreendente que o autor do artigo seja membro do Conselho Editorial da publicação. Sem qualquer base empírica, o autor desfila estereótipos e rancor contra os trabalhos judiciais na assim denominada Operação Lava Jato, realizando equiparações inapropriadas com fanático religioso e chegando a sugerir atos de violência contra o ora magistrado. A essa altura, salvo por cegueira ideológica, parece claro que o objeto dos processos em curso consiste em crimes de corrupção e não de opinião. Embora críticas a qualquer autoridade pública sejam bem-vindas e ainda que seja importante manter um ambiente pluralista, a publicação de opiniões panfletárias-partidárias e que veiculam somente preconceito e rancor, sem qualquer base factual, deveriam ser evitadas, ainda mais por jornais com a tradição e a história da Folha.

Fonte: Moro, 2016.

Logo em suas primeiras linhas, a resposta do magistrado do Paraná já emprega um tipo especial de operador, trata-se da expressão “mais ainda”, que em seu contexto de ocorrência tem a função de introduzir um argumento de maior força ou simplesmente de maior contundência em relação à assertiva inicial, que tematiza especificamente o descontentamento do locutor em razão de o jornal Folha de S. Paulo ter publicado um artigo como aquele escrito por Rogério Cezar Leite. Interessante observar ainda que a forma “lamentável”, ao indicar uma certa impessoalidade, parece sugerir um viés neutro e distante por parte do enunciador. Pode-se perguntar, neste caso, por que o juiz não empregou simplesmente uma forma verbal de primeira pessoa, como por exemplo, “lamento”. Como se trata de uma resposta a um texto que discutia a conduta dele, juiz Sérgio Moro, não seria inadequada ou descabida uma construção de formato mais pessoal. Evidentemente, nenhuma

escolha é neutra, sempre revela uma intenção e nesse sentido podem-se aventar algumas hipóteses explicativas para o caso em destaque, mas provavelmente, entre todas, a que parece mais plausível se relaciona a um suposto desejo de manter um certo tom (ou estilo) “institucional” que atravessa, inclusive, toda a composição responsiva do magistrado. Talvez as palavras do professor Sírio Possenti, transcritas abaixo, possam, de alguma maneira explicar a opção do juiz pelo termo “lamentável”, considerando que, de acordo com o eminente linguista:

É pela “exploração de certas características da língua que a discursividade se materializa [e para usar os termos de Kress (1985:29), “o discurso emerge no e através do texto”]. Ou seja, o discurso se constitui pelo trabalho com e

sobre os recursos de expressão, que produzem determinados efeitos de

sentido em correlação com posições e condições de produção específicas (POSSENTI, 2009, p. 16).

Retornando à discussão do operador “mais ainda”, um questionamento que se pode fazer é sobre qual a razão de seu emprego e por que introduziria um argumento de maior peso. Primeiramente, é preciso destacar que o espaço em que o artigo “Desvendando Moro” foi publicado é reservado à discussão de temas polêmicos (tal espaço, inclusive, é designado de Tendências e Debates) e quase sempre participam de sua composição autoridades ou especialistas das mais diversas áreas do conhecimento, ou seja, que não se encontram vinculados ao jornal. E o raciocínio do juiz é o de que causa estranhamento o periódico não impor “um filtro” que impeça a publicação de conteúdos radicais e panfletários, como é o caso, na visão dele, do artigo “Desvendando Moro”. E o ponto mais grave ainda, também na ótica do magistrado, é que o autor do referido artigo faz parte do conselho editorial do jornal, daí a razão do emprego do operador “mais ainda”, daí, finalmente, a explicação de ele introduzir um argumento de maior força.

Na terceira linha de sua resposta, o juiz emprega o operador “sem” no trecho “sem qualquer base empírica”. Pode-se dizer que se trata, ao que parece, de um tipo de argumento marcado por um certo viés autoritário, uma vez que fala de uma “ausência” no discurso do outro, sem necessariamente comprová-la. Ademais, o autor da resposta também não apresenta uma base empírica que explicasse de forma minimamente satisfatória o vazio apontado no discurso contra o qual se ergue.

Na sexta linha, identifica-se a presença do operador “salvo”, participando da constituição da frase: “A essa altura, salvo por cegueira ideológica, parece claro que o objeto dos processos em curso consiste em crimes de corrupção e não de opinião.”, que materializa a

posição dos responsáveis pela condução da Operação Lava a Jato, isto é, a de que ela investiga especificamente condutas criminosas, sem nenhuma coloração ideológica ou partidária, sugerindo adicionalmente que não há como contestar esse fato, e os que a ele se opõem agem por “cegueira ideológica”. De forma que o operador “salvo”, introduz a visão dos que são contrários (como é o caso das opiniões contidas no artigo “Desvendando Moro”) às investigações da Lava Jato, ou a acusam de parcialidade, do que decorre que um discurso remete necessariamente a outro, ou, como assevera Bakhtin (2003, p. 298), “O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas”.

Na oitava e nona linhas aparecem dois operadores de tipo concessivo, trata-se dos itens “embora” e “ainda que”, que têm a função de esclarecer que o locutor da carta não adota uma postura contrária a críticas ou tampouco que seja avesso à pluralidade de opiniões e ideias. Ou seja, sua crítica se dirige única e exclusivamente contra opiniões panfletárias ou sem base factual, sugerindo que um meio de imprensa respeitado como a Folha de S. Paulo deveria evitar de, também, publicá-las. Contudo, a questão que o magistrado deixa em aberto é acerca do modo como diferenciar, então, uma opinião panfletária daquelas que não o são, isto é, como ser um juiz imparcial nessa questão.

Do que se expôs anteriormente, a conclusão que se tira é que nos usos da língua não há como não ecoar a voz do outro e os pontos de vistas contrários acerca das posições assumidas, de forma que para a demarcação desses múltiplos discursos na rede textual quase sempre o emprego de operadores argumentativos se coloca como necessário ou indispensável, ou seja, direta ou indiretamente, eles contribuem para confirmar a ideia de que os enunciados são sempre mutuamente alusivos uns aos outros, ou, ainda segundo Bakhtin (2003, p. 297): “Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmo; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros”.

Enfim, considerando que dificilmente se pode contestar a afirmação de Bakhtin (2003, p. 298), de que “toda informação semelhante dirige-se a alguém, é suscitada por alguma coisa, tem algum objetivo, ou seja, é um elo real na cadeia da comunicação discursiva em determinado campo da atividade humana ou da vida.”, não se poderia encerrar essa discussão sem fazer uma menção a um outro discurso que também versa sobre a controvérsia Cerqueira Leite/Moro, trata-se do parágrafo final de um artigo de autoria de Elio Gaspari, publicado no jornal Folha de S. Paulo, na data de 16 de outubro de 2016, em que se lê: “O artigo de Cerqueira Leite foi mais uma opinião no grande debate aberto pela Operação Lava Jato. A contrariedade de Moro produziu uma surpresa: há algo de Savonarola no seu sistema.”