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RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FATO DA COISA NA HIPÓTESE DE FURTO OU ROUBO DE VEÍCULO

3 ASPECTOS PRÁTICOS DA TEORIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FATO DA COISA

3.1 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FATO DA COISA NA HIPÓTESE DE FURTO OU ROUBO DE VEÍCULO

No atual contexto social vivenciado no Brasil, não raros são os casos de furto ou roubo a veículos. Não obstante, também não é raro que ocorra de o veículo furtado ou roubado, enquanto dirigido pelo autor do ato delituoso, provoque danos a outrem.

Em casos tais, é natural surgir o questionamento de quem é o responsável pelo dano causado.

Ab initio, faz-se mister perquirir se há o preenchimento dos requisitos usuais da responsabilidade civil, considerando-se, em uma primeira análise, a conduta do motorista do veículo, segundo a regra ordinária da responsabilidade

subjetiva, preconizada pelo art. 18672 em conjugação ao art. 927, caput73, ambos do Código Civil. Deve-se comprovar, pois, o ato ilícito praticado pelo condutor, mediante dolo ou culpa, o dano perpetrado e o nexo de causalidade entre ambos.

Se, porventura, houver a ausência de algum dos aludidos requisitos ou a presença de alguma causa excludente de responsabilidade – como, verbi gratia, o fato exclusivo da vítima, o fato de terceiro, o caso fortuito ou razão de força maior –, descaracterizada estará a responsabilidade do condutor e, por via reflexa, qualquer indagação acerca da do proprietário do veículo furtado ou roubado.

Doutro lado, preenchidos os requisitos da responsabilidade civil subjetiva no tocante ao condutor do veículo, é evidente que o mesmo é responsável civilmente pelo dano causado, podendo a ação condenatória ao ressarcimento do dano ser em face de si proposta.

A polêmica surge no momento em que se questiona a possibilidade de o proprietário do veículo que fora furtado ou roubado também ser responsabilizado pelo dano causado por seu automóvel.

Consoante explicitado no capítulo anterior, o responsável pelo fato da coisa é o guardião, sendo o mesmo o possuidor direto do bem, isto é, aquele que efetivamente detém os poderes de direção e controle sobre o mesmo no momento da ocorrência do dano.

No caso de furto ou roubo de veículo, é consabido que os poderes de direção e controle sobre o mesmo, na prática, passam a ser exercidos pelo autor do ilícito penal. Ele torna-se, com efeito, o possuidor direto do automóvel. Por evidente, com fulcro no art. 1.200 do Código Civil74, sua posse consubstancia-se como injusta, porquanto obtida mediante clandestinidade ou violência, conforme se trate, respectivamente, de furto ou roubo. Ademais, também é inegável a ciência do vício intrínseco à sua posse, o que a caracteriza como de má-fé, nos termos do art. 1.201, caput, do Código Civil75.

72 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e

causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

73 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-

lo.

74 Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária.

75 Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a

Ainda que a posse direta do autor do crime seja injusta e de má-fé, é incontroverso que ele a detém. De tal feita, é o guardião da coisa, ou seja, o responsável pelos danos oriundos da mesma.

O proprietário, no momento da ocorrência do dano, não mais detém qualquer poder de direção ou comando sobre a coisa, porque, com efeito, deixou de ser o possuidor direto, permanecendo apenas com a posse indireta do bem, a partir da qual não há mais o dever de guardião.

Assim, não sendo o proprietário o guardião da coisa inanimada quando da ocorrência do evento danoso, tem-se que, em regra geral, não responderá pelo dano causado.

Neste norte, Sergio Cavalieri Filho doutrina:

Não é correto dizer, data vênia, que o ladrão é mero detentor da res furtiva. O furto – bem como o roubo – consuma-se quando a coisa é retirada da esfera de vigilância do proprietário e submetida ao poder de fato do ladrão; quando este consegue romper a posse do primitivo possuidor e estabelecer a sua própria posse sobre a coisa. Em suma, o furto e o roubo consumam- se com o esbulho. O ladrão, portanto, não é mero detentor, mas possuidor. Tem uma posse viciada pela precariedade, pela clandestinidade ou mesmo pela violência, como no caso do roubo; mas posse. Posse de má-fé, é verdade; mas posse.

Logo, é forçoso concluir que o proprietário perde o poder de direção ou de comando sobre a coisa em razão do furto ou do roubo, ficando, assim, privado de sua guarda, que passa para o ladrão. E, se o proprietário fica privado de exercer qualquer ato de vigilância sobre a coisa, não mais pode também por ela responder. Ninguém pode ser considerado guardião se lhe foi arrebatado o poder de direção e controle sobre a coisa. Juridicamente, é impossível fazer o proprietário responder pela coisa durante todo o tempo em que a mesma estiver na posse do ladrão, mormente se considerarmos que essa situação pode perdurar por dias, meses, anos, e até tornar-se irreversível, pelo fato de não mais ser a coisa recuperada.

É preciso apurar, conforme já assinalado, quem tinha o comando de fato da coisa, o efetivo poder de direção, para se saber quem é o responsável, porquanto a guarda, mais do que um direito ou prerrogativa, é um dever e um fato. E é justamente por se tratar de um fato que o proprietário pode perdê-la, não só em razão de um ato jurídico como, também, de um ato ilícito de outrem.76

Carlos Roberto Gonçalves explana a mesma lição, ao afirmar que o “guardião da coisa é, ordinariamente, o seu proprietário. Ficando privado da guarda por furto e perdendo, pois, o seu controle, desaparece a sua responsabilidade”77.

Excepcionalmente, todavia, tanto a jurisprudência quanto a doutrina admitem que o proprietário responda pelo dano causado por seu automóvel mesmo quando sob a posse direta do autor do furto ou roubo. Para tanto, é necessário que se vislumbre o instituto jurídico da causalidade concorrente no evento danoso, isto é, que a causa adequada para a ocorrência do dano não tenha sido, tão somente, a conduta culposa do motorista do veículo, mas também uma pretérita ação ou omissão gravemente culposa ou dolosa por parte do proprietário que tenha propiciado grande contribuição para a ocorrência do furto ou roubo, sem a qual, por conseguinte, não teria ocorrido o dano.

GONÇALVES explica como tal pode ocorrer, bem como exemplifica algumas hipóteses concretas:

Entretanto, se a perda da posse decorreu de culpa sua (proprietário), a ser provada pela vítima (como quando deixa as chaves do veículo em local em que possam ser apanhadas com facilidade por terceiros), responde, então, por negligência ou imprudência, com base no art. 186 do Código Civil. Assim, em se tratando de veículo roubado ou furtado que tenha ocasionado dano a terceiros, uma primeira indagação faz-se necessária: se o dono contribuiu ou não com alguma parcela de culpa para que a subtração ocorresse.

Responde pelo dano causado a terceiros pelo ladrão que esteja na posse do veículo o proprietário que não mantém sobre ele a adequada vigilância e o deixa, por exemplo, em local ermo em hora avançada da noite; ou em local de escassa iluminação e sem movimento; ou, mesmo durante o dia, em via pública, sem trancar as portas à chave, ou, ainda, com as chaves no contato. Nesses casos, incorre ele nas sanções do art. 186 do diploma civil, que obriga a reparar o dano todo aquele que o causa por ação ou omissão voluntária, com imprudência ou negligência.78

No mesmo sentido caminha CAVALIERI FILHO, o qual, outrossim, colaciona importante precedente jurisprudencial:

77 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. 4: Responsabilidade Civil. 8ª ed. São

Paulo: Saraiva, 2013. p. 194.

78 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. 4: Responsabilidade Civil. 8ª ed. São

Tem a jurisprudência admitido – e, a nosso juízo, corretamente – a responsabilidade do proprietário somente quando a perda da condição de guarda resulta de ato imprudente ou negligente de sua parte: “O proprietário de veículo furtado é responsável pelos danos causados pelo gatuno quando demonstrado que negligenciou no dever de guarda e vigilância do automóvel” (TARS, Ap. Cível 18.188).

O automóvel não pode ser deixado na via pública em condições que propiciem seu furto – como, por exemplo, com as portas abertas, com a chave na ignição –, nem entregue a mãos inexperientes ou imprudentes – casos em que o proprietário deverá responder por sua falta de vigilância.79

O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de recurso especial envolvendo a matéria ora explanada80, decidiu que, no caso de dano causado por

condutor de veículo furtado, o proprietário ou quem exercia a guarda somente é responsável na hipótese de ter agido com culpa grave ou dolo quando da ocorrência do furto.

No aludido caso, o proprietário do veículo, chamado Hércules, deixou-o sob a guarda de seu amigo Juracy, a fim de que este o guardasse na garagem de sua residência, como realmente foi efetuado. As chaves do mesmo, por sua vez, foram guardadas no interior da casa de Juracy.

Juracy recentemente havia contratado uma nova empregada doméstica. Em determinado dia, de madrugada, o esposo desta, denominado José, furtou o referido automóvel e, enquanto o dirigia, abalroou o carro de Marilene.

Ato contínuo, Marilene propôs ação condenatória a fim de obter o ressarcimento dos danos sofridos. No polo passivo da lide, figuraram Hércules, proprietário do veículo que causou o dano, e Juracy, que guardava o mesmo na garagem de sua residência. José, causador direto e imediato do dano, não foi incluído como réu, segundo a autora porque, após o evento danoso, fugiu e não mais foi encontrado.

A sentença, proferida em primeiro grau de jurisdição, julgou procedente o pedido condenatório à indenização, condenando ambos os réus, solidariamente, a ressarcir os danos suportados pela vítima e autora da ação.

79 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. p.

231.

Interposta apelação pelos réus, a mesma foi desprovida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, o qual manteve incólume a sentença apelada.

O referido Tribunal de Justiça entendeu, em síntese, que houve culpa in vigilando de Juracy, responsável por guardar o veículo na garagem de sua casa, porquanto não teria adotado as medidas de segurança necessárias para evitar o furto.

Fundamentou o acórdão que não estava comprovado nos autos que o veículo tinha algum dispositivo de alarme, tampouco que o portão da garagem possuía alguma trava. Não obstante, também se afirmou que a ocorrência do furto não poderia ser interpretada como caso fortuito, mormente porque havia uma nova empregada doméstica na casa, recém-contratada. Além disso, também foi levado em consideração o fato de o veículo ter sido furtado de madrugada, quando Juracy e sua esposa estavam em casa e deveriam ter ouvido o acionar do motor.

Outrossim, o Tribunal de Justiça também entendeu que estava devidamente caracterizada a culpa in eligendo do proprietário, haja vista a má escolha da pessoa para guardar seu veículo. Por tal razão, também foi responsabilizado.

Os réus/apelantes interpuseram, então, recurso especial. O Superior Tribunal de Justiça, acertadamente, reformou o acórdão recorrido, a fim de julgar improcedente o pedido indenizatório, utilizando-se fundamentação cuja transcrição parcial é relevante:

Evidentemente, aquele que se cerca de mais cuidados tem menor possibilidade de causar danos a outrem. Ao contrário, o indivíduo que ignora os padrões mínimos de cautela está mais suscetível a causar danos. Há uma linha que separa a falta de cuidados do excesso de cuidados. É justamente essa linha divisora, correspondente à cautela média, que pode, razoavelmente, ser exigida de alguém acusado de causar danos a outrem.

Nessa linha de entendimento, vejo como excessivas as exigências de comportamento expostas no acórdão recorrido. Não é de se esperar que aquele que recebe um veículo para guardar por uns dias, verdadeiramente prestando um favor a um amigo, nele instale um sistema de alarme ou reforce a segurança de sua casa, tudo para evitar uma possibilidade, ainda que mínima, de furto.

Na verdade, a presunção mais lógica e coerente é a de que todo furto é um fato imprevisível. Ninguém, em sã consciência, que imaginasse a mínima

possibilidade de que seu automóvel pudesse ser furtado, deixaria de tomar as providências necessárias para evitar o fato.

Somente diante dessa previsibilidade e da omissão em evitar ou minorar as chances de ocorrência do furto é que responderia o proprietário ou guardião do veículo.

Nenhum dos fatos delineados no acórdão recorrido aponta essa previsibilidade do furto. Ao contrário, tudo o que ali foi dito reforça a convicção de que o réu Juracy, responsável pela guarda do veículo, agiu dentro do padrão médio e razoável de comportamento: guardou o bem em sua casa, na mesma garagem onde mantinha o próprio automóvel; não deixou as chaves na ignição, depositando-as em local apropriado no interior de sua residência.

Nem se considere o fato de ter uma empregada recém-contratada em casa para justificar possível omissão na guarda do automóvel. Isso porque a própria contratação de uma pessoa para fazer os trabalhos domésticos já é sinal de alguma confiança do contratante. Se havia essa confiança, não era razoável presumir que a empregada poderia, potencialmente, subtrair as chaves e o veículo.

Além disso, em ponto algum do acórdão recorrido constou que a referida empregada tenha participado, consciente e decisivamente, para a ocorrência do furto. Por isso, sua presença na casa não poderia aumentar a previsibilidade do furto.

Por fim, ressalto que a instalação de qualquer mecanismo de segurança em automóvel ou residência visa, unicamente, resguardar a integridade física e patrimonial do proprietário. Se não há uma previsibilidade razoável de furto, ninguém pode ser acusado de omissão pela falta de tais equipamentos. Caso contrário, a responsabilidade pela delinquência urbana fica invertida: deixa de ser do Estado, incapaz de oferecer segurança adequada à sociedade, e passa a ser dos próprios cidadãos, que, por opção ou falta de condições financeiras, deixam de instalar os modernos dispositivos de segurança.

Seria, ao fim e ao cabo, dizer que o culpado é a vítima, não o autor do furto. Raríssimas pessoas se cercam de mecanismos de segurança para evitar uma futura ação de indenização por culpa in vigilando. Quem instala tais aparelhos o faz por medo. Quem não o faz, é levado por opção – diante de um cálculo do risco que estará sofrendo – ou por falta de condição financeira. Em qualquer desses dois últimos casos, só deve responder civilmente se sua omissão for de tal forma grave que possa equiparar-se ao dolo. Não é a hipótese destes autos.

Dizer que não está seguro o veículo guardado em garagem com as respectivas chaves depositadas em outro cômodo da casa é agredir a realidade.

Afastada a culpa in vigilando, afasta-se também a culpa in eligendo, ante a evidente relação de dependência existente no caso concreto.

Dou provimento ao recurso especial para julgar improcedente a ação de indenização.

Entendeu o Superior Tribunal de Justiça, pois, que o caso relatado não apresentou, em nenhum momento, indicativo razoável de que o furto ocorreria, não sendo exigível, pela linha do homem médio, que a pessoa que guardava o automóvel providenciasse uma série de excessivas medidas de segurança, a não ser as já tomadas, quais sejam, guardar o veículo na garagem de sua residência – a mesma utilizada, inclusive, para seu próprio carro – e as respectivas chaves no interior da casa. Também não haveria que se falar que a presença na casa de

empregada doméstica recém-contratada deveria aumentar as cautelas com eventual risco de furto, até mesmo porque a contratação de profissional de tal categoria já pressupõe relativa confiança.

Com isso, inferiu-se que o furto ocorrido constituiu verdadeiro caso fortuito, haja vista que imprevisível em consonância à percepção do homem médio. Excluiu-se, por conseguinte, a responsabilidade de ambos os réus.

Ademais, assim consignou a ementa do acórdão, in litteris:

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. VEÍCULO FURTADO. DANOS CAUSADOS PELO CONDUTOR, AUTOR DO DELITO. RESPONSABILIDADE DO PROPRIETÁRIO E DO GUARDIÃO DO AUTOMÓVEL. NECESSIDADE QUE A OMISSÃO DO GUARDIÃO EQUIVALHA À CULPA GRAVE OU AO DOLO.

1. Não se pode exigir daquele que guarda automóvel, seu ou de outrem, mais cuidados do que se exigiria da média das pessoas.

2. Só responde por culpa in vigilando aquele cuja omissão na guarda do veículo equivalha à culpa grave ou dolo. Não age com culpa in vigilando quem guarda veículo na garagem de sua casa e coloca as respectivas chaves em outro cômodo, na parte íntima da residência.

3. Afastada a culpa in vigilando do guardião do automóvel, também se afasta a culpa in eligendo do proprietário.

4. Declarada pelo acórdão recorrido a circunstância de que o veículo causador do dano – guardado em garagem – fora furtado por terceiro, não há como cogitar-se em culpa in vigilando.

Assim, verifica-se que, neste importante precedente do Superior Tribunal de Justiça, restou estabelecido que, na ocorrência de furto de veículo – inclui-se na mesma sistemática o caso de roubo –, o proprietário ou guardião somente responderá pelos danos causados pela condução do automóvel sob a posse direta do autor do ilícito penal na hipótese de ter agido com culpa grave ou dolo quando da perda da posse direta. Nesse caso, terá ele concorrido para a ocorrência do dano, o que implica em responsabilidade solidária do motorista (autor do furto ou roubo) e do proprietário ou guardião, a teor do que preceitua o art. 942 do Código Civil, in verbis:

Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co- autores e as pessoas designadas no art. 932.

3.2 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FATO DA COISA NA HIPÓTESE DE