5. REGULAÇÃO E AUTONOMIA NO CURRÍCULO
5.2 RESPONSABILIZAÇÃO E A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE
Mesmo que a análise do processo de produção dos Currículos Mínimos de Ciências e Biologia demonstre a falta de representatividade docente, o documento do Currículo Mínimo afirma que conta com a participação dos professores para:
Com a firme intenção de assegurar a implantação bem-sucedida da concepção educacional do Currículo Mínimo, com base na apropriação plena pelos professores, por se constituírem colaboradores de fato e permanentes, coautores da proposta, o processo de construção se amplia considerando futuras reformulações (RIO DE JANEIRO, 2012a, p. 04)
Ao considerar os professores como coautores legítimos da proposta e colaboradores permanentes para futuras alterações o Currículo Mínimo delega também a responsabilidade sobre o conteúdo dessa proposta a todos os professores da rede estadual. Esse processo, característico da cultura da performatividade, busca distribuir o sucesso ou o fracasso dos resultados obtidos pelas instituições com os seus trabalhadores. Na rede estadual, esse processo funciona em conjunto com avaliação, representada aqui pelas Matrizes de Referência, que reforçam esse processo através da criação de rankings de qualidade escolar.
O Currículo Mínimo, no entanto, afirma que as liberdades de fazer escolhas adequadas às diversidades locais da escola estão garantidas, pois:
estabelecer esse tipo de currículo básico para todas as escolas da rede estadual do Rio de Janeiro não significa homogeneização cultural; ao contrário, por ser mínimo, possibilita ao professor fazer escolhas mais adequadas à diversidade cultural dos alunos e à realidade de cada escola, já
que terá espaço em seu plano de ensino para inserir os temas que considerar necessários para aprofundá-lo ou ampliá-lo, considerando a particularização por região ou mesmo a individualização por turma. (RIO DE JANEIRO, 2012a, p. 03)
No entanto, é questionável a afirmação de que o professor terá espaço no seu plano de ensino para considerar o que achar necessário, ainda mais se analisarmos a organização que Currículo Mínimo e Matriz de Referência estabelecem em conjunto. Por mais que o Currículo Mínimo de Ciências e Biologia afirme que houve uma redução dos tópicos obrigatórios, o estabelecimento das Matrizes de Referência introduzem tópicos mais detalhados a serem trabalhados, como pode ser observado nos quadros 2, 3 e 4.
Quadro 2. Habilidades e Competências do Currículo Mínimo e das Matrizes de Referência do 1º Bimestre do 1º ano do Ensino Médio
1º Ano do Ensino Médio Currículo
Mínimo Foco Habilidades e Competências
1º
Bimestre Origem da Vida
Reconhecer a existência de diferentes explicações para a origem do universo, da Terra e da vida, bem como relacioná-las a concepções religiosas, mitológicas e
científicas de épocas distintas.
Relacionar os processos referentes à origem da vida a conceitos da Biologia e de outras ciências, como a
Química e a Física.
Reconhecer a célula como unidade morfofisiológica de todas as formas de vida.
Matriz de
Referência Domínio Habilidades
1º Bimestre
Matéria e Energia
Identificar a transformação de energia luminosa em química através da fotossíntese.
Identificar diferentes fontes de produção de energia: hidráulica, eólica, solar, nuclear, geotérmica, de biomassa
e fóssil.
Terra e universo
Identificar diferentes explicações sobre as transformações do ambiente terrestre que possibilitaram a origem dos
seres vivos.
Identificar concepções sobre a origem da vida. Interpretar experiências e argumentos utilizados por cientistas como Redi e Pasteur para derrubar a teoria da
geração espontânea.
Reconhecer a história da vida na Terra com base em escala temporal: o surgimento da vida, das plantas, dos animais e
do homem.
Identificar o efeito estufa como condição necessária à existência da vida no planeta.
Associar a produção de oxigênio molecular com a formação da camada de ozônio, indispensáveis para a
existência e evolução da vida na Terra.
Vida e Ambiente Reconhecer a teoria científica que explicita a origem e evolução das células.
Quadro 3. Habilidades e Competências do Currículo Mínimo e das Matrizes de Referência do 1º Bimestre do 2º ano do Ensino Médio
2º Ano do Ensino Médio Currículo
Mínimo Foco Habilidades e Competências
1º Bimestre
Transformação Essenciais à Vida
Analisar os processos de obtenção de energia dos seres vivos, relacionando-os aos ambientes em que vivem.
Reconhecer respiração aeróbia, anaeróbia, fermentação, fotossíntese e quimiossíntese como processos do
metabolismo celular energético.
Identificar a ocorrência de transformações de energia no metabolismo celular.
Matriz de
Referência Domínio Habilidades
1º Bimestre
Matéria e Energia
Identificar os seres vivos autótrofos como responsáveis pela transformação da energia solar em energia química. Reconhecer, em diversas formas de linguagem, os grupos
de alimentos classificados como energéticos. Identificar os reagentes, os produtos e os processos fundamentais da fotossíntese, fermentação, quimiossíntese
e respiração celular.
Explicar a inter-relação entre fotossíntese e respiração celular nos organismos fotossintetizantes.
Comparar os processos de respiração celular, fermentação e quimiossíntese, quanto à produção, consumo e saldo de
energia.
Terra e universo Identificar provas bioquímicas e embriológicas do processo de evolução.
Vida e Ambiente Interpretar fatores ambientais que interferem na fotossíntese e na respiração celular das plantas.
Quadro 4. Habilidades e Competências do Currículo Mínimo e das Matrizes de Referência do 1º Bimestre do 3º ano do Ensino Médio.
3º Ano do Ensino Médio Currículo
Mínimo Foco Habilidades e Competências
1º Bimestre Humanidade e Ambiente
Identificar critérios utilizados como indicadores sociais e de desenvolvimento humano e analisar de forma crítica as consequências do avanço tecnológico sobre o ambiente. Analisar perturbações ambientais, identificando agentes
causadores e seus efeitos em sistemas naturais, produtivos ou sociais.
Reconhecer a importância dos ciclos biogeoquímicos para a manutenção da vida, identificando alterações
decorrentes de ações antrópicas e suas consequências. Avaliar métodos, processos ou procedimentos utilizados no
diagnóstico e/ou solução de problemas de ordem ambiental decorrentes de atividades sociais e econômicas. Matriz de
Referência Domínio Habilidades
1º Bimestre
Matéria e Energia Avaliar impactos do uso de diferentes fontes de energia na economia e no ambiente.
Terra e universo Reconhecer as causas e consequências do aquecimento global.
Vida e Ambiente
Interpretar em diferentes formas de linguagem os ciclos do nitrogênio, do carbono, do oxigênio e da água, reconhecendo a
sua importância para a vida no planeta.
Reconhecer as causas e consequências das alterações antrópicas dos ciclos biogeoquímicos.
Ser Humano e Saúde
Interpretar tabelas e gráficos que relacionam os aspectos biológicos da pobreza e do desenvolvimento humano. Relacionar o saneamento básico com a saúde humana nas
diversas regiões brasileiras.
Identificar situações ambientais que colocam em risco a qualidade de vida.
Tecnologia e Sociedade
Relacionar os padrões de produção e consumo com a devastação ambiental, a redução dos recursos e a extinção de
espécies, apontando as contradições entre conservação ambiental, uso econômico da biodiversidade, expansão das
fronteiras agrícolas e extrativismo.
Interpretar efeitos da poluição na atmosfera, como a produção de chuva ácida, intensificação do efeito estufa e destruição da
É possível notar que nos três quadros apresentados, a quantidade de habilidades listadas na Matriz de Referência, ou seja, que serão cobradas na prova do Saerjinho, é sempre superior a quantidade de habilidades listadas no Currículo Mínimo. E uma análise de seu conteúdo, por sua vez, nos mostra que essas habilidades podem ser consideradas detalhamentos das competências e habilidades listadas no Currículo Mínimo. Por exemplo, no 1º ano do Ensino Médio, podemos facilmente notar que habilidades como “Identificar concepções sobre a origem da vida”, “Identificar diferentes explicações sobre as transformações do ambiente terrestre que possibilitaram a origem dos seres vivos” e “Reconhecer a história da vida na Terra com base em escala temporal: o surgimento da vida, das plantas, dos animais e do homem” são detalhamentos da competência “Reconhecer a existência de diferentes explicações para a origem do universo, da Terra e da vida, bem como relacioná-las a concepções religiosas, mitológicas e científicas de épocas distintas”, listada no Currículo Mínimo. Esse padrão de um maior número de habilidades cobradas na avaliação do que listadas como tópicos essenciais do currículo se repete, tanto no currículo de Ciências quanto no de Biologia, por todos os anos e bimestres.
Como seria possível, por exemplo, a um professor de Biologia da rede estadual do Rio de Janeiro, que possui apenas dois tempos de aula semanais, ou mesmo um professor de Ciências que possui quatro tempos de aula, ampliar o seu planejamento para além do estabelecido no Currículo Mínimo, como exposto no documento “terá espaço em seu plano de ensino para inserir os temas que considerar necessários para aprofundá-lo ou ampliá-lo”? Sem o tempo adequado para esse tipo de alterações, reduz-se o professor à função de instrutor de conhecimentos do currículo e da Matriz de Referência.
A regulação da autonomia docente também sobressai quando o documento afirma que “por ser mínimo, possibilita ao professor fazer escolhas mais adequadas à diversidade cultural dos alunos e à realidade de cada escola”. Ora, se as competências e habilidades do currículo são utilizadas como guia para a educação das escolas estaduais, caberia apenas ao professor fazer inserções quando achar necessário e se existir tempo. Defendemos que existe uma precarização do trabalho do professor que, nesse contexto, passa a ser apenas um instrutor de conteúdos curriculares e da Matriz de Referência, ao mesmo tempo em que precisa prestar contas através dos resultados da avaliação. Avaliação esta, orientada pelas matrizes, que é obrigado a utilizar para compor a nota bimestral do seu aluno.