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4.3 PROCESSOS AVALIATIVOS : O “ SER ESPECIAL ” ESTÁ NO PAPEL

4.3.2 A resposta dos laudos

O laudo psicológico, de acordo com Salazar (1996), é um “produto derivado de ações que se constituem das relações formalizadas entre o psicólogo e a escola” (p. 12), no qual, registra-se a suposta queixa da criança, para que este “a dirija” para o lugar mais adequado. Essa direção, no entanto, é na maioria das vezes conduzida pelo psicólogo que na maioria dos casos não está inserido no ambiente escolar, ou seja, traz consigo uma visão de fora e fortemente (em grande parte) patologizante, o que não foge muito da sua formação essencialmente clínica.

A atuação de um profissional da saúde no espaço escolar inevitavelmente acarreta a patologização desse espaço. Sua formação é calcada exclusivamente no modelo clínico, preferencialmente individual, biológico... De modo geral, esses profissionais, assim como o médico, tendem a utilizar o modelo clinico indiscriminadamente, frente a qualquer problema, inclusive frente às questões sociais. Tornam-se, assim, eficientes (porque inconscientes) agentes de um processo de ocultação dos determinantes sociais dos conflitos; tendem a biologizar, a patologizar qualquer problema que devam enfrentar. Tentam encontrar a doença, o distúrbio, o desvio que explique e justifique o problema. 'Doença' preferencialmente biológica, mas sempre localizada no indivíduo, isentando de responsabilidades o sistema educacional (COLLARES; MOYSÉS, 1992, p. 27).

O processo de diagnóstico tem os testes como os principais instrumentos de avaliação nos laudos, o que significa que os seus resultados sãos os focos propulsores para o encaminhamento e atestação àqueles que não se enquadram aos padrões esperados socialmente impostos e educativamente cobrados. Sass (1994) aponta esse movimento de diagnosticar e/ou oferecer tratamento, como raiz de nossa “sociedade laudatória”, a qual busca um ideal homogêneo, através da legitimação dos diagnósticos, aparatos técnicos e dos laudos.

Os laudos, por sua vez, prescrevem teoricamente uma resposta para “saciar” o que já é ideologicamente construído, e, portanto, afirmar a anormalidade de outrem em detrimento da normalidade posta, na qual provavelmente se inclua o avaliador (psicólogo) e toda a sua construção academicista.

Ainda segundo Sass (1994), em relação à importância dos psicólogos responderem criticamente a “essa sociedade”, o autor, impõe o fato de “evitar a redução da complexa dinâmica social a fenômenos psicológicos implica superar a organização atual da própria sociedade” (p. 16). Em outras palavras, o “diagnosticar, encaminhar e avaliar” no processo de ensino vai muito além de uma simples preocupação com o indivíduo, mas abarca uma reflexão muito maior de um ideal social, que busca um entendimento por meio da elaboração de laudos e, deste modo, uma prática que evite a estereotipia daqueles que não agem conforme o esperado (DIAS, 2008).

Assim, há uma sociedade que, através dos laudos, busca um enquadre para explicar o indivíduo e o que se passa com ele. Todavia, esse enquadre é buscado no sentido contrário, ou seja, pelo “erro”, pela “deficiência”, e não pelo que o indivíduo realmente sabe fazer. Nesse sentido, como aponta Collares e Moysés (1997) é considerado aquilo que falta (e que é imaginariamente “melhor”), desconsiderando o que de efetivo se tem, e, portanto, corroborando com a discriminação e com o estigma.

Ainda conforme as mesmas autoras:

As críticas feitas referem-se a que o psicólogo, ao realizar suas avaliações e produzir um laudo psicológico em que deverá atestar se a criança "está apta ou não" para ser encaminhada para a classe especial, acaba por comprometer esse trabalho ao aceitar, reforçar e endossar de forma acrítica, a posição da escola que localiza no aluno o problema ou a dificuldade que ele apresenta para aprender. Ao fazer isso, o psicólogo muitas vezes não conhece os problemas intra e extra-escolares que se tem na vida do aluno e nos bastidores das classes especiais. Outras críticas apontadas se referem ao fato de o psicólogo utilizar instrumentos e técnicas tradicionais da psicologia pouco adequados à realidade da criança. Assim, esses psicólogos muitas vezes se preocupam apenas em avaliar, classificar, rotular e por fim apresentar o veredicto sob a forma de um laudo. Desse modo, o profissional objetiva a crença da "criança doente" - já cristalizada antes na escola - em detrimento das suas reais potencialidades, cronificando a patologização numa pseudodeficiência mental (COLLARES; MOYSÉS, 1997, p. 24). Desse modo, o psicólogo acaba contribuindo para a segregação e a discriminação de crianças - a pretexto de problemas ou dificuldades de aprendizagem - através da realização de laudos e o seu consequente encaminhamento. Collares e Moysés (1997) também apontam outro fator que contribui para esse processo de patologização do aluno, que é o fato da transformação dos professores “responsáveis por analisar e resolver os problemas educacionais” em “triadores de alunos” para encaminhá-los aos especialistas da saúde.

Essa transformação transfere os deveres desses professores para um profissional extraescola, o qual diagnostica o aluno a partir dele mesmo, isto é, sem levar em conta toda a sua construção sociocultural e educacional, legitimando os problemas escolares sobre a base de aspectos psicológicos e não pedagógicos.

Esse ponto expõe o fato do deslocamento do eixo de preocupações, do coletivo para o particular, culpabilizando o aluno pelo insucesso escolar e isentando a escola de suas responsabilidades.

Dessa maneira, a escola se exime de suas reais funções e se encarrega de “produzir” meios para transferir o fracasso institucional para o “fracasso da própria criança” os quais denominam como “‟distúrbios‟, „disfunção‟, „problemas‟, „dificuldades‟, „carência‟, „desnutrição‟, „família desestruturada‟, entre outras, que se situam num âmbito bem mais próximo da doença e de razões sociais do que de situações escolares reais” (SALAZAR, 1996, p. 18) as quais se afirmam e se concretizam por meio dos laudos.

Em relação aos laudos Salazar (1996) expõe:

Entendemos que o modo como vêm sendo elaborados esses documentos hoje, é decorrente em grande parte da própria matriz teórica em que os laudos elaborados pelos psicólogos estão assentados. Tal forma de proceder traz em si condições limitadas e limitadoras próprias de um determinado momento do pensamento psicológico, em que se acreditava que o desenvolvimento do ser humano decorria mais da influência das características biológicas que ele apresentava do que das interações sociais que ele mantinha. Esta concepção, fortalecida pelos "sistemas teóricos de inspiração biológica e fisicalista que, de uma forma ou de outra, imprimiram à psicologia o rumo da ciência positivista" (PATTO, 1984, p. 90), ainda se mantém forte e viva em nosso meio, associada a uma postura liberal na qual se fundou o sistema educacional do nosso país e que ainda persiste na escola. Tal concepção não permite que esses laudos ofereçam alternativas e aberturas suficientes sobre a forma de coletar os seus dados e de emitir as suas informações, de modo que possam ser mais condizentes com a realidade e com as condições de vida nas quais a criança está inserida (SALAZAR, 1996, p. 20).

Tais concepções dão sustentação aos laudos psicológicos, contribuindo assim na influência da forma e no modo como são compostos, bem como, na justificativa da “produção do fracasso escolar” e consequentemente na exclusão dessas crianças da escola. Exclusão que Machado (1994) demonstra em sua pesquisa com classes especiais para deficiente mental, a nocividade e as repercussões gravíssimas que os resultados de uma avaliação, contida em um laudo provocam na vida escolar de uma criança encaminhada para a classe especial.

Esse marco educacional que o laudo faz na vida de um aluno, também tem resquícios da sua constituição desvinculada de uma análise crítica e profunda das condições de vida e do cotidiano escolar da criança (SALAZAR, 1996), além de não oferecer informações ou orientações efetivas aos professores, “a estereotipia da linguagem utilizada, a mesmice das frases, conclusões e recomendações trazem-nos à mente a imagem de um carimbo – os laudos falam de uma criança abstrata, sempre a mesma” (PATTO, 1997, p. 22).

Sass (1994) fomenta essa discussão sobre os laudos:

(...) é curioso refletir sobre os entendimentos paradoxais suscitados pelo laudo psicológico, tanto entre os próprios psicólogos quanto em outros segmentos sociais. A par da cega aceitação do laudo psicológico, há uma rejeição igualmente cega à elaboração de documento técnico sobre a intimidade do sujeito. Psicólogos recusam os instrumentos historicamente construídos, sob variados pretextos, enquanto leigos reivindicam a utilização de tais instrumentos para justificar a condição subjetiva da pessoa (p. 16). Assim, o laudo psicológico apodera-se do processo da estabilização e da cronificação, enquanto instrumento “educativo” investido de poder e, sobretudo, de transformação, uma vez que, naturaliza o discurso médico na escola deslocando os sentidos para aquilo que Salazar (1996, p. 11), chama de “uma leitura patologizada e autorizada da educação”. Esta leitura, por sua vez, constrói e fortalece o erro, a deficiência e a dificuldade como parâmetros “anormais” no ambiente escolar, sujeitos a discussões, reflexões e políticas que os justifiquem e os respaldem legalmente.