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A resposta dos militares à versão da esquerda: o Projeto Orvil versus o Projeto Brasil Nunca Mais

4 “OS DERROTADOS TROCARAM AS ARMAS PELAS PALAVRAS”: A GUERRILHA DO ARAGUAIA EM ORVIL E A VERDADE SUFOCADA

4.1 A resposta dos militares à versão da esquerda: o Projeto Orvil versus o Projeto Brasil Nunca Mais

Em 1985, após a publicação do livro Brasil: nunca mais345, o general Leônidas Pires

Gonçalves, à época Ministro do Exército, incumbiu ao Centro de Inteligência do Exército (CIE) a tarefa de preparar um livro que viesse a responder as críticas e afirmações contidas na

obra da Arquidiocese de São Paulo. De acordo com o jornalista Lucas Figueiredo346, o

escolhido para coordenar o projeto foi o general Agnaldo Del Nero Augusto347, homem ligado

ao setor de inteligência do Exército e também ferrenho anticomunista. O projeto de escritura do livro dos militares, assim como o Projeto Brasil: nunca mais, foi mantido em segredo. Por esse motivo, o código utilizado por seus participantes constituía na palavra LIVRO, escrita ao contrário (ORVIL), originando, posteriormente, o nome da obra. Assim, no próprio título do livro já se vislumbra a guerra estabelecida através da escrita, ou seja, dos livros. Representa o conflito construído pelas diferentes memórias acerca dos acontecimentos relativos ao período

345 O Projeto Brasil: nunca mais teve início em 1979 através de um grupo de religiosos ligados ao Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e uma equipe do escritório de advocacia de Sobral Pinto. O objetivo era obter junto ao Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília, informações e/ou evidências que comprovassem a prática de violações aos direitos humanos, praticadas por agentes do Estado durante o regime de exceção no Brasil. Os documentos foram microfilmados e enviados para o exterior. Em 1985, foi lançado o livro de igual nome, no qual constam, nas suas 900 páginas, a prática da violência cometida durante a ditadura civil-militar brasileira. Em junho de 2011, esse acervo ganhou uma versão digital na internet, visando, dentre outros objetivos, facilitar o acesso de pesquisadores e demais interessados no assunto. Sobre a versão digital ver: http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/o-que-e-o-bnm.Acesso em: 28 fev. 2016.

346 Utilizei como referência para a discussão acerca da obra Orvil as informações constantes no livro do jornalista Lucas Figueiredo, Olho por olho: os livros secretos da ditadura, devido ao fato de o mesmo abordar a história de como essa obra foi pensada e produzida. Embora Orvil esteja, atualmente, ainda disponível para download no site do Grupo Ternuma (“Terrorismo Nunca Mais”), o mesmo não narra a sua história, ou seja, como foi planejado e escrito. Por esse motivo, optei pelas informações apresentadas por Lucas Figueiredo. 347 Agnaldo Del Nero Augusto nasceu em Pirassununga (SP). Na época do golpe de 1964 havia sido promovido a capitão e servia como instrutor na Escola de Sargentos das Armas (EsSA), em Três Corações (MG). De acordo com Lucas Figueiredo, em 1971 ele ocupava o posto de adjunto da 2ª Seção, ou seja, do setor de informações do II Exército, com sede em São Paulo. Já em 1972 foi transferido para Brasília atuando na Agência Central do SNI, onde trabalhou como adjunto da Seção de Planejamento. De 1974 a 1977 atuou na Eceme, uma das academias de grande prestígio nas Forças Armadas. Nos anos de 1979 a 1980 foi assessor da Missão Brasileira de Instrução no Paraguai, e, em 1981, adjunto da Seção de Planejamento do II Exército. Nos anos de 1982 e 1983 atuou como comandante do 2º Regimento de Carros de Combate, em Pirassununga (SP). Era um anticomunista e publicou, nesse sentido, algumas obras, tais como: Novembro de 1935, O jovem e a subversão e A nação que salvou a si mesma. Além dessas obras também escreveu outros dois livros: A grande mentira (2001) e Médici: a verdadeira história (2011). Faleceu em 2009. (FIGUEIREDO, 2009, p. 74-75).

da ditadura civil-militar no Brasil. São versões opostas, e, portanto, conflitantes, construídas pelos vários grupos envolvidos nessa fase da história contemporânea do nosso país.

Para a escrita da obra Orvil os autores utilizaram, enquanto fonte, vários documentos; entre eles, processos de presos políticos, depoimentos destes à Justiça Militar, inquéritos, reportagens em jornais e revistas. Além desses, também utilizaram depoimentos de policiais e oficiais militares que atuaram na repressão naquela época. Dentro da perspectiva de se construir uma narrativa “verdadeira”, os autores fazem uso das fontes para a escrita do Orvil partindo da concepção de que o documento é o “real”. Ele constitui a “prova” para a forma violenta e truculenta (a luta armada) utilizada pela esquerda para tentar implementar, no Brasil, o regime comunista. Não há, assim, uma crítica documental, ou melhor, uma análise mais detalhada do mesmo, e, sim, o seu uso para justificar e sustentar a narrativa dos autores. Dispondo na maioria das vezes de uma documentação que apenas eles tinham acesso na época, constroem uma versão para a história da luta armada no Brasil para combater, ou melhor, guerrear a narrativa presente no livro Brasil nunca mais. A forma narrativa presente em boa parte da obra é memorialista, visão esta centrada na ideia de que os militares “evitaram” um “mal maior para o país”: o comunismo.

No que concerne à reflexão acerca dos usos dos documentos pelos historiadores, é pertinente a análise do historiador Jacques Le Goff nesse sentido. Assim, ao considerar o documento enquanto “monumento”, este historiador o toma enquanto produto da sociedade que o fabricou a partir das relações de forças daqueles que estão no poder. Portanto, o documento não é “neutro” e nem o detentor da “verdade absoluta”. É, sim, uma construção do passado a partir de um determinado olhar e cabível de questionamento por parte do historiador. Dessa forma, afirma:

O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá- lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa.348

Durante a fase em que a obra ficou no ostracismo, três militares ficaram encarregados de guardar as cópias do livro: os generais Agnaldo Del Nero Augusto, Sérgio Augusto

Avellar Coutinho e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.349 Nesse período anterior à

348 LE GOFF, 1994, p. 545.

349

Sérgio Augusto Avellar Coutinho, durante o governo Médici, exercia a função de uma espécie de “guarda- costas” informal do presidente. Em solenidades públicas, ele cuidava para que os jornalistas não “incomodassem” o presidente. Após o fim do período de exceção, Sérgio Augusto Avellar Coutinho tornara-se

publicação da obra Orvil, algumas obras foram escritas, de certa forma, com a contribuição das informações contidas no projeto e publicadas pelos militares. Assim, pode-se destacar o livro Brasil sempre, de Marco Pollo Giordani, publicado em 1986, Rompendo o silêncio (1987) e A verdade sufocada (2006), de Carlos Alberto Brilhante Ustra. Essas obras, assim como aquelas analisadas no Capítulo 2 da tese, são produto de iniciativas pessoais, não uma

publicação oficial da instituição à qual os seus autores pertencem, o Exército Brasileiro.350

Elas têm em comum o fato de se oporem à versão construída pelas esquerdas, de forma geral, e pelo livro Brasil: nunca mais, em específico. Dessa forma, enfatizam uma

versão crítica a esta obra, em especial, a figura de Dom Paulo Evaristo Arns351, tido enquanto

um “bispo comunista”. Assim, até a publicação do livro Orvil, essas obras vão construir as memórias dos militares acerca da “Revolução de 1964”, das ações praticadas pelas esquerdas durante os governos militares, isto é, da luta armada, e, sobretudo, do papel desempenhado pelas Forças Armadas na defesa da “democracia” e no combate ao comunismo no país.

Nessa sua fase de ostracismo, de acordo com o jornalista Lucas Figueiredo, uma cópia do livro teria ficado com alguns militares que participaram de sua escrita, com o objetivo de preservar e proteger o material nele contido. A intenção, inicialmente, portanto, não era de um “especialista” na obra do pensador marxista italiano Antônio Gramsci. Sua leitura desse autor vai influenciar na visão do general acerca da chamada “quarta tentativa de tomada do poder pelos comunistas”, defendida no Orvil. Foi ainda diretor do Clube Militar do Rio de Janeiro. Suas obras principais foram: A revolução gramscista no ocidente: a concepção revolucionária de Antônio Gramsci em Cadernos do Cárcere (2002) e Cadernos da liberdade (2003). (FIGUEIREDO, 2009, p. 124).

350

Até a presente data não houve um posicionamento oficial das Forças Armadas sobre a questão, nem em relação à abertura de arquivos do período do regime civil-militar, nem acerca da proibição de seus membros publicarem algo sobre esse período. O que é perceptível na postura dessa instituição ao longo dos anos é a prática da negação da “existência de documentos”. Entretanto, apesar da insistência nessa tese, nota-se pelos documentos até então publicados que tal afirmação pode ser refutável. Em relação à postura de alguns militares que passaram a publicar suas versões acerca do combate à luta armada, o historiador e jornalista Hugo Studart defende a ideia de “código de silêncio” entre esses personagens. Assim afirmou o historiador na parte referente à construção de sua pesquisa de mestrado: “Nas questões mais delicadas, que envolviam a morte dos guerrilheiros, alguns não queriam sequer que eu revelasse seus codinomes. Por quê? Ora, me explicaram, porque os próprios companheiros saberiam que estavam quebrando o código de silêncio, havia muito tempo pactuado” (STUDART, 2006, p. 36).

351 Paulo Evaristo Arns nasceu em Criciúma (SC), em 14 de dezembro de 1921, filho de Gabriel Arns e de Helena Steiner Arns. Nessa cidade fez o curso primário e, em seguida, mudou-se para o Paraná, onde deu continuidade aos seus estudos. Entrou para a Ordem dos Franciscanos e estudou entre 1934 e 1940 no seminário dessa ordem. Em 1944, ingressou na Faculdade de Teologia de Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro. Em novembro de 1945, foi ordenado sacerdote. Após a conclusão de seus estudos teológicos em 1947, foi para Paris, onde se licenciou em Letras pela Universidade de Paris (Sorbonne). Lá ainda doutorou-se pela Academia de Paris com a tese A técnica do livro em São Jerônimo. De volta ao Brasil, em 1953, lecionou no Seminário Menor de Agudos, em São Paulo. Entre os anos de 1955 a 1965, trabalhou em Petrópolis como professor de teologia no seminário dos franciscanos. Ainda nessa cidade, também trabalhou no bairro operário de Itamarati. Em 1966, foi nomeado pelo papa Paulo VI vigário episcopal para a Arquidiocese de São Paulo. Nessa arquidiocese estimulou a formação dos leigos e contribuiu para a criação das Comunidades Eclesiais de Bases (CEB’s). Em 1970, foi nomeado arcebispo metropolitano de São Paulo. À frente da Arquidiocese de São Paulo, D. Paulo atuou, sobretudo, na defesa dos direitos humanos e na denúncia às prisões arbitrárias e às torturas praticadas pelos militares aos opositores do regime. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete- biografico/arns-paulo-evaristo. Acesso em: 02 jun. 2018.

publicá-lo ou divulgá-lo na imprensa. As informações presentes na obra passaram a circular

num círculo pequeno, formado por militares e civis de extrema-direita.352 Ainda segundo

Lucas Figueiredo, a partir de 1998, com a criação do grupo “Terrorismo Nunca Mais”

(TERNUMA)353 e, em seguida, do seu site, os militares guardiões do Orvil, passaram a

publicar de forma camuflada informações contidas nesse livro secreto. Em 2000,

aproximadamente 40 páginas da obra teriam sido publicadas no site.354

Em 2005, um exemplar do livro Orvil teria sido encadernado em dois volumes em capa preta com o título O livro negro do terrorismo no Brasil, mas sem autoria. De acordo com o jornalista Lucas Figueiredo o editor dessa versão da obra teria sido o general Sergio Augusto de Avellar Coutinho. Entretanto, a sua circulação continuou sendo restrita entre

alguns militares e civis que, de certa forma, apoiavam as ideias lá contidas355 (Ver figura 13).

Assim sendo, até a efetivação de sua publicação em primeira mão através da internet e, em seguida, em forma de livro, os militares publicaram algumas obras baseadas nas informações constantes nesse projeto secreto. São livros que considero “precursores” do Orvil, cuja análise encontra-se a seguir.

Figura 13 - Capa O livro negro do terrorismo no Brasil.

O primeiro nome dado ao livro Orvil antes de sua publicação. Vol. 1 e 2.

Fonte: FIGUEIREDO, 2009.

352

FIGUEIREDO, 2009, p. 123. 353

O grupo Terrorismo Nunca Mais (Ternuma) foi criado em 25 de julho de 1998 em oposição ao Projeto Brasil Nunca Mais. Um de seus objetivos, segundo os membros desse grupo, “é resgatar a verdadeira história da Revolução de 1964 e opor-se aos comunistas”. Sobre o grupo ver:http://www.ternuma.com.br/index.php/quem- somos. Acesso: 16 mar. 2016.

354 FIGUEIREDO, 2009, p. 131-132. 355 FIGUEIREDO, 2009, p. 136-138.

4.2 A construção das memórias acerca da Guerrilha do Araguaia em A verdade