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DO SERTÃO A SALVADOR: O RECRUTAMENTO NA BAHIA DURANTE A GUERRA CISPLATINA

2.6 Resultados/consequências do recrutamento

A primeira das conseqüências do recrutamento que destacamos fora o elevado número de deserções. Difícil esperar algo diferente, dado o péssimo perfil dos recrutados. Pura ilusão das autoridades a crença de que a disciplina militar daria jeito em criminosos e vadios de todas as estirpes. Ainda mais sendo a vida nas casernas como era: deplorável. Assim, tendo muitos (criminosos e “vagabundos”, acostumados com a itinerância ou trabalho esporádico) recrutados para suas fileiras, era natural esperar que, para fugir da rígida disciplina e péssima condição de vida, tais pessoas incorressem em mais um crime, qual seja a deserção.

Ademais, o próprio Governo Imperial trazia de outros países mercenários, boa parte deles composta por desertores de outras forças armadas. Aqui servindo, repetiam a experiência, como por diversas vezes fora registrado na Guerra Cisplatina, principalmente com a maruja inglesa. Como esperar fidelidade de tais pessoas? Como anotara Lemos, se o Governo de D. Pedro I tivesse conseguido trazer todos os mercenários que desejava (o que não o fez por falta de condições financeiras), o Brasil teria se transformado na “lata de lixo da Europa”97.

Constam na documentação diversos episódios de fuga e deserção. Em todas as etapas do recrutamento elas ocorriam. Primeiramente, no próprio ato de recrutar, pelas

recrutados tentavam escapar do triste destino inventando toda sorte de desculpas. Afirmavam serem casados, cativos, doentes, e tudo mais o que pensassem poder livrá-los. Pouco adiantava. Aos doentes, por exemplo, era necessário provar sua impossibilidade frente a uma junta médica, que quase sempre acabava por considerá-los aptos, a não ser que tivessem deficiências visíveis (e mesmo assim, como no caso de alguns cegos e surdos, poderiam ser obrigados a assentar praça). Dispensa por moléstias internas ou dores na coluna, nem pensar!

Nas cadeias do interior, aguardando escolta que os remetesse à Capital, podiam ser soltos pelos seus cúmplices criminosos, ou mesmo por protetores bem situados socialmente. No caminho para Salvador, igualmente poderiam ser soltos pelos conhecidos, as vezes tendo como resultado morrerem nas refregas entre a escolta e os agressores. Ou mesmo fugir por si mesmo, não obstante as cordas e correntes que os agrilhoavam. Caso de Manuel Fernandes, que sendo desertor, conseguiu novamente escapar das raias do odiado serviço militar98. Para tentar impedir fugas como essa no percurso, empregava-se além da escolta armada, tais correntes, sendo contudo, seu uso expressamente proibido pelo artigo XV das Instruções de 1822.

Mesmo após chegarem na Capital, podiam os recrutas (ou praças) encontrar um jeito de escapar. Um deles era via Hospital Militar, onde a segurança era mais frouxa. Fora o que fez o Cadete Antonio Joaquim Correa de Araújo, do 7° Corpo de Artilharia, que indo doente para o dito hospital “se evadira serrando hum dos balacurtres do armazém da cochia pondo-se em fuga”99.

Até nas fortalezas poder-se-ia tentar a fuga, inclusive da Fortaleza do Mar (atual Forte de São Marcelo). Vejamos a estratégia adotada a 11 de junho de 1827, por Jose Roiz Gil, na narração feita pelo Tenente Comandante da citada fortaleza:

dezertou desta Fortaleza o Cadete do Batalhão n° 13, addido ao Batahão n° 14 da 1ª Linha, José Roiz Gil, levando consigo dous recrutas Jose Raimundo de Abreu, e Christovão Lazaro, do numero dos que se achão prezos nesta; tendo esta franqueza por ser o commandante da guarda; pois que sendo de seo dever feixar a todos os recrutas em hum callabuço as sette horas da tarde, o fez, deixando ficar de fora aquelles dous; e, na occasião de feixar o portão entregou-me as chaves na forma do costume;

98 APEB. Seção Colonial e Provincial. Militares – Desertores. Maço 3749. 99 APEB. Seção Colonial e Provincial. Militares – Desertores. Maço 3749.

esta de huma para duas horas da madrugada, e, tendo mudado o quarto de huma hora, postou na sentinella da coroa do portão, hum soldado recruta Antonio Jeronimo do Batalhão n° 14, que me tinha sido remettido pelo seu respectivo Commandante, para serviço desta Guarnição, sendo aquelle posto hum dos de maior responsabilidade, e, nesta occazião, hum soldado do mesmo Batalhão Feliz da Silva, pedindo ao referido Cadete para trocar com aquelle recruta a sentinella, lho não permitio. Passos estes que claramente mostrão o premeditado plano de sua realizada dezerção; mostrando igualmente ter franqueado a fugida dos supracitados recrutas100.

As deserções, não obstante o desejo de se verem livres do serviço, poderiam ter causas “nobres”. Parece ter sido o caso do filho de Maria Francisca de Santo Antonio, que implorara a D. Pedro II “os socorros da Primeira Divindade na Terra que sendo infelis de proteção como aleijada e tendo um filho único o qual por infância recorreo a sentar praça na força naval e tendo conhecimento do que sua mae esmolava nem deixando o pão por varias vezes dizertava”101.

Mesmo sendo posterior ao nosso período, esta súplica pedindo que soltassem o dito filho, preso a bordo do Brigue União, vale como exemplo de que a vida de quem prestava serviço militar poderia ser insustentável, tendo que desertar para não deixar a própria mãe passando necessidade.

Outro componente que acabava por incentivar as deserções era o perdão a quem incorria em tal crime. Não obstante as penas que no papel se aplicavam aos desertores e a quem os acoitava, o grande número dos perdões durante o Primeiro Reinado fazia com que os desertores tivessem a quase certeza da impunidade. Foram diversos os decretos que perdoavam as deserções, alguns chegando a perdoar até a 3ª deserção! Os decretos poderiam abranger grupos pequenos ou mesmo todo o Exército, ou a Marinha (geralmente perdoava-se um e logo após outro).

O primeiro (do Brasil independente) a que tivemos notícia, fora o de 12 de outubro de 1822. Este perdoava até a 3ª deserção, porém a maioria o fazia até a segunda. Temos como exemplos: o decreto de 15 de junho de 1824, que perdoava até a segunda deserção aos militares do Exército e garantia-lhes que caso regressassem aos respectivos Corpos,

100 APEB. Seção Colonial e Provincial. Fortalezas. Maço 3700.

(30 de janeiro de 1826) geral a todos os desertores da Província da Bahia, quando da visita de D. Pedro I a Salvador e o de 14 de novembro de 1826, que perdoava a todos os desertores do Exército do Sul (durante a Cisplatina).

Havia diversas ocasiões para se conceder perdões, como o da visita de D. Pedro I à Bahia; até quando do casamento do Imperador com a Princesa Amélia de Leuchtenber e Eischtdet, receberam, extensivamente, todos os militares, o seu perdão (18 de outubro de 1829).

Desta feita, o perdão, que tinha como objetivo o retorno dos desertores, e o conseqüente aumento do efetivo, levava muitos a abandonarem suas bandeiras, levando por vezes consigo seu armamento. Esse, ou era vendido, ou utilizado para a prática de toda sorte de delitos.

Fora o que ocorrera em Caetité, em março de 1828. Dois soldados do destacamento de 1ª Linha que por lá estavam para conter os “facinorozos” Mucunãs desertaram, trazendo consigo “huma arma faltando-lhe o cão, e igualmente hum masso de cartuchos embalados que os ditos levarão”103.

Impossível ter uma quantia exata dos custos advindos do recrutamento durante o Primeiro Reinado, ou mesmo somente durante a Guerra Cisplatina (1825-1828). Podemos, entretanto, ter a certeza que fora um custo muito maior do que as finanças do Império podiam arcar. É conhecido o fato de que o conflito no Prata foi um dos motivos para a penúria em que se encontrava o erário nacional por aqueles tempos, gerando críticas no Parlamento e na imprensa.

Podemos apenas fazer referência a alguns gastos gerados pela necessidade do recrutamento. Primeiramente, havia os custos do sustento aos presos nas vilas do interior, da mesma forma que se gastava com a remessa dos mesmos à Capital provincial. Há evidências de que parte destes custos era arcado pelas Câmaras das próprias vilas. Contra isso reclamava a Câmara de Abadia, fato relatado pelo Capitão-mor Francisco Álvares da Silva em 8 de agosto de 1828. Dizia ele então: “fico na diligencia de aprontar os que faltão para a conta que V. Ex. me ordena, que com brevidade há de ser dificultozo sem se

102 APEB. Seção Colonial e Provincial. Avisos Ministeriais-1824. Maço 754-1. 103APEB. Seção Colonial e Provincial. Militares – Desertores. Maço 3749.

por não haver dinheiro para suprimento delles, que offciando eu aos Juizes Ordinários, como prezidentes da Câmera, que mandarem dâr dinheiro para sustento, e remeça desta recruta, prottestão jamais darem suprimento de dinheiros para a remeça das recrutas,” sendo que, “no tempo dos meos antecessores, que quando por estes hera pedido dinheiro para sustento, e remessa das recrutas, nunca houve falta”104.

Lembramos que além do suprimento, tanto as escoltas, como os próprios recrutas, recebiam individualmente 80 e 60 reis diários respectivamente, enquanto durasse a viagem, como mandavam as Instruções.

Ademais, havia a despesa com o fardamento e a ração dos recrutas apinhados nas fortalezas de Salvador. Veremos como era pesada a manutenção destes no próximo capítulo.

Difícil também é termos uma idéia do que se perdia em vidas e trabalho produtivo. Havia os que morriam pelo caminho até a Capital, ou mesmo nesta. Muitos também foram os braços arrancados das lavouras e demais atividades produtivas, causando óbvios prejuízos para o abastecimento. Principalmente no interior, onde a seca devastava algumas regiões, como deixa claro o relato das autoridades de Água Fria anteriormente descrito.

Distúrbios e revoltas contra o expediente do recrutamento também ocorreram, causando destruições nas vilas, bem como assolando os recrutadores e as escoltas, (ou mesmo os recrutas) donde certamente ferimentos ou mortes inutilizavam vidas.

Porém, o que mais marcara a história do recrutamento no Primeiro Reinado não foram tais distúrbios, o dinheiro gasto ou mesmo as mortes dele resultantes. O que ficaria marcado por todo o Império e inícios da República fora o ódio a tal procedimento, tributo de sangue e lágrimas. Foi esse um dos argumentos que o Marechal Hermes da Fonseca, Ministro da Guerra, em seu relatório de maio de 1907, usou para defender a instituição do Serviço Militar Obrigatório no Brasil, posto que, “nesse assunto, ainda chafurdávamos no velho regime português do voluntariado imprestável e do ignóbil recrutamento forçado”105.

104 APEB. Seção Colonial e Provincial. Recrutamento. Maço 3488. 105 LEMOS, Mercenários do imperador..., p. 120

CAPÍTULO III