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Retórica: considerações sobre a definição do campo e a amplificação

Como vimos, o Cristianismo alcançou colocar a seu serviço tanto a retórica quanto a filosofia. Explorar os limites entre essas duas disciplinas, considerando também a dialética, pode ajudar-nos a esclarecer ainda mais o papel que a retórica teve na difusão e defesa do catolicismo através da eloqüência sagrada.

A inclusão da dialética aqui, embora seja algo arriscado, parece-nos necessária. Arriscado porque se trata de um conceito bastante complexo e objeto de muitas alterações ao longo da história da filosofia ocidental. Entretanto, como acreditamos que abordá-lo, ainda que ligeiramente e apenas como objeto de comparação, possa nos ajudar a esclarecer alguns pontos relativos à retórica eclesiástica, arriscamo-nos a fazê-lo.

A origem do termo “dialética” está ligada à arte do diálogo, o que supõe o conceito grego de logos como “razão” e “discurso” e a existência de duas razões ou posições numa disputa dialógica. Convém lembrar aqui que, para Aristóteles, a dialética contrasta com a demonstração, constituindo, por esse motivo, uma “aparência de filosofia”412. Mencionamos anteriormente que a dialética, durante a Idade Média,

compunha, ao lado da gramática e da retórica, o trivium das artes liberais, sendo assim, “era uma das artes sermocinais, isto é, uma das artes que se referem ao método e não à realidade.”413 São Tomás de Aquino “admitiu a definição de Aristóteles, mas ao mesmo tempo considerou a dialética uma parte justificada da lógica.”414 Nesse sentido, podemos concluir que São Tomás recolocou a dialética no âmbito da filosofia. Para Isidoro de Sevilha, que parece revalorizá-las, “a dialética e a retórica são partes da lógica, ou disciplina racional. A dialética permite distinguir o verdadeiro do falso.”415 Entre os séculos XVI e XVII, houve uma oscilação no uso dos termos “lógica” e “dialética”. Para o nosso contexto de pesquisa, é importante mencionar que Frei Luís de Granada considerava que os alunos de Évora, aos quais endereçou os seis livros de sua Retorica Eclesiastica, mais aprenderiam a arte de bem falar se estivessem imbuídos das ciências dialéticas e filosóficas. Além disso, afirmou que tratou pouco da inventio, uma das partes da retórica, porque o conhecimento dessa parte pertencia aos dialéticos.416

Em relação às três disciplinas enunciadas acima, alguns autores mencionam um ponto em comum: o exercício da argumentação, cujo fim é provocar ou aumentar a adesão de um auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento.417 Mas, no caso de alguns discursos, a argumentação não tem por finalidade única a adesão puramente intelectual. Nesse sentido, o que parece distinguir a retórica é sua propensão a priorizar a condução à ação.

Chaim Perelman faz uma distinção entre persuasão e convencimento que talvez seja interessante retomar aqui.418 A persuasão partiria de fundamentos subjetivos e o convencimento, de fundamentos objetivos. As provas objetivas seriam usadas para

413 MORA. Dicionário de filosofia, p. 720. 414 MORA. Dicionário de filosofia, p. 720. 415 MORA. Dicionário de filosofia, p. 720.

416 GRANADA. Los seis libros de la retorica eclesiastica, p .489. 417 Ver, por exemplo, PLEBE e EMANUELE. Manual de retórica, p. 11.

418 Cf. PERELMAN. O império retórico, p. 54. O autor segue em suas considerações o pensamento de Kant.

convencer intelectualmente, enquanto as afetivas serviriam para persuadir emocionalmente. As últimas seriam divididas em éticas, as que solicitam simpatia com graus suaves de afetos, e patéticas, as que abalam com graus violentos de afeto.419

Frei Luís de Granada considera que, ao dialético que pretenda provar uma coisa duvidosa, basta-lhe que ensine. Mas como o orador também deve mover os ouvintes a fazer alguma coisa, além de provar com argumentos, deve com a beleza do estilo e variedade das matérias deleitá-los, comovendo-os com afetos e impelindo-os a obrar.420 Assim se distingue a ação de um filósofo, ou de um dialético, da de um orador: impelir a obrar. Disso pode-se concluir que a filosofia produziria um conhecimento e a retórica produziria uma ação.

É interessante retomar, ainda, uma outra distinção feita por Aristóteles e recuperada por Perelman, desta vez entre os raciocínios analíticos e os raciocínios dialéticos. Os primeiros são demonstrativos e impessoais. Os últimos “partem do que é aceite, sendo o seu fim o de fazer admitir outras teses que são ou podem ser controversas: têm, pois, o propósito de persuadir ou de convencer”421. Os raciocínios dialéticos não são puramente formais, ao contrário, são pessoais e incidem sobre a opinião. Embora originalmente esse tipo de raciocínio estivesse ligado à retórica, alguns estudiosos o consideram terreno comum também à dialética e à filosofia, pois as três fariam uso dos raciocínios dialéticos para propor temas de caráter geral, sustentá-los através de uma tese, discutir para demonstrar sua validade.422 No contexto que nos interessa, entretanto, acreditamos que a filosofia mantinha-se distinta da retórica. Isso se daria dessa maneira, porque o domínio da argumentação é aquele em que intervêm os valores. Perelman retoma o conceito de valor de Louis Lavelle, demonstrando que

419 Cf. LAUSBERG. Elementos de retórica literária, p. 92-93. 420 GRANADA. Los seis libros de la retorica eclesiastica, p. 506. 421 PERELMAN. O império retórico, p. 22.

o termo valor se aplica sempre que tenhamos de proceder a “uma ruptura da indiferença ou da igualdade entre as coisas, sempre que uma delas deva ser posta antes ou acima da outra, sempre que ela é julgada superior e lhe mereça ser preferida”.423

Podemos pensar que a argumentação, por se basear em valores, define juízos que exprimem uma preferência ou uma hierarquia. Os juízos de valor são controversos, ao contrário dos juízos de realidade, base dos raciocínios analíticos, que poderiam obter o acordo de todos graças à experiência e verificação. Sob esse aspecto, os juízos de valor, objeto do discurso retórico e dos argumentos dialéticos, só serviriam de núcleo de coesão a grupos particulares. 424

O uso dos raciocínios dialéticos e a preocupação com a persuasão trazem para a retórica imediatamente a preocupação com o ouvinte. Além disso, deve-se considerar que um discurso não é nunca um acontecimento isolado e o orador nunca está sozinho. Nesse ponto, algumas diferenças devem ser consideradas entre a retórica, a dialética e a filosofia. Frei Luís de Granada lembra, a esse propósito, que o dialético disputa com os doutos nas escolas, enquanto o pregador fala para “o povo, que melhor se ganha com exemplos e afetos, que com razões filosóficas”425. Isso explicaria, segundo Granada, a representação do estilo da retórica como mão aberta, ou seja, mais difuso e estendido, enquanto o estilo dos dialéticos seria representado pela mão fechada, com a idéia de estilo mais breve e seco. Ou, dito de outro modo, o modo dialético somente une os nervos e ossos do corpo e os coloca em seus próprios lugares; enquanto o modo retórico, com a elegância e fluência da oração, como que acrescenta sangue, carne, pele, cor, formosura e ornato. Ou ainda, a função dos dialéticos corresponderia ao trabalho dos pintores quando primeiro delineiam todos os membros de uma imagem; já

423 PERELMAN. O império retórico, p. 45. 424 Cf. PERELMAN. O império retórico, p. 46.

a dos oradores corresponderia ao trabalho posterior, o de acrescentar várias cores e adornos, e o mais que se requer para uma perfeita e acabada pintura.426

Ainda no que se refere ao estilo retórico, caberia dizer que ele visa a determinar um tema, apresentá-lo em seu peso cultural e humano, propor uma solução para ele, como um estilo de “visão de longe”. A filosofia, embora visando ao universal, aspira a dar ao tema um tratamento analítico, através de um estilo de “visão de perto”.427 Mais uma diferença seria interessante lembrar aqui. Quintiliano estabelece uma distinção entre os retóricos e os historiadores: “enquanto é tarefa do historiador limitar- se a narrar, é oportuno que ‘nós, retóricos, estejamos sempre em pé de guerra’”.428 Trata-se, portanto, de um gênero combativo. Se a dialética supõe uma colaboração, a retórica supõe uma competição.429 O critério de êxito é fundamental para a retórica.

Granada recomenda que o pregador não siga sempre a formalidade dos dialéticos, pois a argumentação popular requer outro hábito e figura de falar. Exatamente por sua finalidade, a retórica sagrada não deveria se reduzir à dialética, não devia apenas instruir o intelecto, mas estimular a vontade e satisfazer os afetos.430 A filosofia é para poucos; a retórica é para todos.

Nesse contexto, é compreensível que Frei Luís de Granada tenha dedicado o livro terceiro da sua obra sobre a retórica eclesiástica à amplificação. Consiste a amplificação num

aumento gradual, por meios artísticos, do que é dado, por natureza, aumento esse aplicado no interesse da utilitas causae. A amplificatio é, portanto, um meio da parcialidade, e isto tanto no domínio intelectual, como no domínio afetivo.431

426 Cf. GRANADA. Los seis libros de la retorica eclesiastica, p. 507. 427 Cf. PLEBE e EMANUELE. Manual de retórica, p. 29-30. 428 PLEBE e EMANUELE. Manual de retórica, p. 31. 429 Cf.PLEBE e EMANUELE. Manual de retórica, p. 30-31.

430 Cf. GRANADA. Los seis libros de la retorica eclesiastica, p. 517. 431 LAUSBERG. Elementos de retórica literária, p. 106.

De fato, para o pregador cristão, a amplificação é um artifício fundamental, pois, através dela, é possível mover as paixões, persuadir, dissuadir, elogiar ou vituperar. Granada distingue o raciocínio da amplificação do raciocínio da argumentação, dizendo que aquele é mais semelhante à exposição e enumeração. Segundo o autor, é próprio da amplificação não só convencer ao entendimento, mas induzir também à vontade do amor, ao ódio ou a outro afeto qualquer. 432

Granada indica que os lugares de onde se sacam os argumentos são os mesmos usados para a amplificação, mas assinala os que lhe parecem próprios para amplificar: aqueles que manifestam o muito que há em uma ou outra coisa, como são os lugares que se tomam das partes, das causas, dos efeitos e os contíguos a esses, as circunstâncias, os antecedentes e os conseqüentes, os quais devem ser aumentados com exemplos, símiles e testemunhos das Escrituras ou Santos Padres.433 Os afetos se concitam parte com a grandeza das coisas e parte com colocá-las diante dos olhos, pois mesmo a grandeza pode ser efeito da amplificação.434

Do que fica exposto, podemos concluir a relevância que a retórica assumiu no quadro da América Portuguesa. A investigação dos limites entre retórica, dialética e filosofia, ainda que sem a profundidade com que poderia (ou deveria) ser tratada, permite dizer que esses campos de saberes ou técnicas se aproximaram e se confundiram, caracterizando um tipo de conhecimento que tinha por base meios e finalidades persuasivas, mas que se apresentava como verdade filosófica, provada racionalmente. Além disso, o uso de provas afetivas, éticas e patéticas, permitiu atingir os ouvintes e leitores também pela emoção, o que poderia aumentar a eficácia do discurso persuasivo.

432 Cf. GRANADA. Los seis libros de la retorica eclesiastica, p. 530. 433 Cf. GRANADA. Los seis libros de la retorica eclesiastica, p. 530. 434 Cf. GRANADA. Los seis libros de la retorica eclesiastica, p. 547

Na sociedade hierarquizada do Antigo Regime, que caracterizou a América Portuguesa, os raciocínios dialéticos veicularam valores e postularam posições hierárquicas que interessavam a pequenos grupos de interesse local, mas que ganharam, nos discursos institucionalizados, dimensão social. Opondo-se à visão de perto, ao exame minucioso e crítico dos problemas daquela sociedade, o discurso da Igreja, que era a base também da educação, assumiu um estilo de visão de longe, que inseria todos os eventos na Providência divina, no tempo longo da história da salvação humana. A retórica foi usada pela Igreja como uma técnica que procurava garantir a vitória desse discurso contra todo e qualquer outro que pudesse se contrapor a ele. Como gênero de combate, o discurso retórico era flexível o suficiente para adaptar-se a diferentes públicos e situações, de maneira a tirar o máximo proveito da arma de que dispunha: a palavra. O uso dos argumentos de autoridade retirados da Bíblia e da Patrística coroava o êxito desse discurso, que se apresentava como Verdade e que procurava reduzir o outro ao silêncio e ao assentimento.