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Retorno: relações, tensões e expectativas

No documento Camila Collpy Gonzalez Fernandez (páginas 165-182)

CAPÍTULO I – UM PAÍS CHAMADO BOLÍVIA: E/IMIGRAÇÃO ENTRE MEDOS

CAPÍTULO 2 – UM DESTINO CHAMADO SÃO PAULO: ANGÚSTIAS

2.3 IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO: PROCESSOS EM CONSTRUÇÃO

2.3.1 Retorno: relações, tensões e expectativas

Ser boliviano é uma grande responsabilidade. Porque qualquer coisa que você faça, cometa uma falha na rua, não é o Amadeo que fez, e sim o boliviano. Um trabalho malfeito, não é o Amadeo, é o boliviano. Tudo o que eu faço primeiro penso na Bolívia. Eles gostam de mim pela forma como eu sou, e eu me orgulho disso, eu sou boliviano. Gostam do meu trabalho e eu digo “Eu sou boliviano”. Mostro minha cultura e eles gostam, vão aprendendo sobre a Bolívia.418

415 Depoimento de Santiago Tordoya, em entrevista concedida à autora em 08/11/2012. 416 Depoimento de Franz Ever Quety Rada, em entrevista concedida à autora em 12/05/2012.

417 O estereótipo é uma forma de representar o meio ambiente por categorias. Com a finalidade de

simplificar, atribuem-se características generalizadas positivas ou negativas a grupos de pessoas. O estereótipo negativo é usado de forma pejorativa, modificando e deturpando a verdade. Possui origem nas tradições culturais de cada comunidade social. Tajfel, 1982, p.147. Apud: HUAYHUA, Gladys Llajaruna. Primeira e segunda geração de jovens imigrantes argentinos, bolivianos e

peruanos em São Paulo: um estudo psicossocial da identidade e aculturação. Tese (Doutorado em

Psicologia Social), São Paulo, PUC- SP, 2007, p.33. O estereótipo do e/imigrante boliviano dado pela sociedade local é de indígena, pobre e que vem procurar emprego em oficinas de costura até como escravo de coreanos e outros bolivianos.

As relações de vizinhança foram estabelecidas de modo singular no cotidiano de cada um dos sujeitos históricos. “Sempre fui muito bem recebido. Não, nunca sofri preconceito. Eu respeito meus vizinhos, não faço barulho, tento não incomodar, e aí posso cobrar respeito”419, diz o mesmo depoente citado

anteriormente. Porém, as tensões/relações de vizinhança identificadas em pesquisa evidenciam as diversas opiniões sobre os e/imigrantes estudados. Por exemplo, durante uma ação do Ministério do Trabalho na Avenida Rudge, alguns vizinhos se mostraram contrários à presença de bolivianos no bairro, o que permite notar um clima “pouco amistoso” no Bom Retiro. A chegada de coreanos e de bolivianos transformou o território em um polo da indústria de produção. Francisco Ceará, dono de pequena oficina, reclama do preço dos aluguéis: “Alugava esta casa aqui por R$ 600. Agora, pago R$ 1.500.” Sobre os bolivianos, diz não ter preconceito e os

identifica como trabalhadores quietos. Diz que trabalham feito condenados e comenta: mais gente, mais dinheiro.420

Segundo a Unidade Básica de Saúde (UBS) do Bom Retiro, à época da consulta encontravam-se cadastrados como paciente cerca de 4.000 latinos – somavam-se peruanos e paraguaios, mas a maior parte era boliviana. Esses sujeitos procuram a UBS logo que chegam a São Paulo para se cadastrar e retirar o cartão do SUS, já que o trabalho e a moradia em oficinas de costura insalubres os deixam mais suscetíveis à tuberculose, além das queixas de dores musculares, associadas às longas horas de trabalho nas máquinas de costura: “[...] adoecem de tuberculose. Geralmente [...] eles se queixam de tosse e dores nas costas [...].”421 A profissional

comenta que, mesmo sabendo da gravidade da doença, os bolivianos têm dificuldade de sair da oficina para tomar medicação no posto. Então, os agentes de saúde vão até lá para conscientizar o dono do estabelecimento e os costureiros da necessidade do tratamento.

O espaço de moradia se mistura com o de costura, os afazeres domésticos se somam às longas jornadas de trabalho. Dentro das residências as salas principais, arejadas e iluminadas, concentram as máquinas e são destinadas à produção – o descanso e a alimentação não são considerados prioridades por parte

419 Depoimento de Clemente Amadeo Loyaza, em entrevista concedida à autora em 24/11/2012. 420 BRUNING, Felipe Vanini. Fiscais ligam Zara a trabalho degradante. Folha de São Paulo. São

Paulo, 18 de agosto de 2011.

de oficineiros e costureiros, até adoecerem. Como as condições de limpeza e higiene são precárias, as doenças não ou mal curadas logo se espalham. Percebe- se no uso como moradia e nas práticas cotidianas a origem dos problemas de salubridade das oficinas.

Moro aqui há uns 6 ou 7 anos e nunca tive problema, talvez porque eu sou reservado, não sou fechado, sou reservado. Agora tem um vizinho bom aqui, meu amigo, brinco, respeito. As pessoas cumprimentam. Passam e “Oi”, “Oi”, “Oi”. Que é isso de “Oi”, “Oi”, “Oi”? Eu falo “Boa tarde!”, “Boa noite!”, e eles falam “Boa tarde”. A gente ensina, e eles aprenderam (risos).422

A vizinhança os vê sob a influência do estereótipo negativo, evitando aproximação. Num primeiro momento, o grupo muitas vezes reafirma uma baixa autoestima, recolhendo-se em suas casas e se escondendo. Mas, com o passar do tempo e mais estabelecidos na comunidade receptora, iniciam o processo de enfrentamento aos preconceitos.

Ahhh, assim, é normal... Eu cumprimento as pessoas, elas me cumprimentam. É lógico, os menos instruídos têm mais preconceito. Quando eu cheguei ali tinha preconceito, mas agora eles foram me conhecendo, viram que eu estudo, que eu trabalho e agora me respeitam pra caramba.423

Observa-se que grande parte dos bolivianos justifica sua estada no Brasil citando os estudos, pois acreditam que falar sobre suas dificuldades para trabalhar e sobreviver no país de origem traria mais obstáculos ao relacionamento com a comunidade.424

422 Depoimento de Santiago Tordoya, em entrevista concedida à autora em 08/11/2012. 423 Depoimento de Franz Ever Quety Rada, em entrevista concedida à autora em 12/05/2012.

424 Pesquisas realizadas com 200 bolivianos no Bom Retiro confirmam a busca por trabalho como

principal motivo da saída da Bolívia, com 71%, seguido de 12% para estudar e 10% para reencontrar familiares. SILVA, Claudio Ferreira. Perfil: Maioria dos imigrantes bolivianos tem entre 20 e 24 anos.

Folha de São Paulo. São Paulo, 09/12/2007. Disponível em: <http://feeds.folha.uol.com.br/fsp/

[...] mantêm a crença de que se alguém se apresenta como uma pessoa que quer estudar, isso resulta em uma imagem positiva, contrariamente ao que acontece com os migrantes econômicos, os quais são vistos de forma negativa. Migrantes econômicos são associados a pobreza e problemas.425

Quanto ao preconceito ao e/imigrante no processo de deslocamento, o sentimento de exclusão pode se expressar de três formas: pela endofobia, quando há rejeição às pessoas do grupo a que pertence, revelando um desejo de integração à sociedade receptora e indicando uma estratégia de fuga da discriminação; pela exofobia, que é uma reação de rejeição ao estrangeiro em relação aos membros da comunidade que o recebe; e pela xenofobia, que é expressa pela rejeição ao estranho, ao estrangeiro, por motivos relacionados a insegurança e mudanças sociais e econômicas.426

Os residentes mais antigos (brasileiros) dos bairros frequentados por bolivianos identificam nos e/imigrantes uma ameaça, pois os veem enquanto concorrentes ao mercado de trabalho e os culpam por aumentar as filas nos serviços de saúde e educação. Relatos mencionam o agravo da violência devido a brigas entre paraguaios e bolivianos e um aumento da sensação de insegurança.427

Bom esse bairro tem a cara dos judeus. Eu acredito que eles foram os primeiros habitantes estrangeiros que vieram para esse bairro, assim, construindo o bairro com suas confecções, suas fábricas e depois disso vieram os coreanos e agora os bolivianos, é... então está mesclado, vamos dizer assim, o bairro do Bom Retiro, pode-se dizer que tem essa mescla de estrangeiros.428

425 SIMAI, Szilvia; BAENINGER, Rosana. Racismo e negação: O caso dos imigrantes bolivianos em

São Paulo. Travessia - Revista do Migrante. São Paulo, Ano XXIV, nº. 68, CEM - Centro de Estudos Migratórios, jan./jun. 2011, p.59.

426 MÁRMORA, Lelio. Migraciones: prejuicio y antiprejuicio. Mimeo, 1995. Disponível em:

<http://news.daia.org.ar/img/migraciones_prejuicio%20y%20antiprejuicio.pdf>. Acesso em: 24/06/2012.

427 Percepções obtidas durante conversas informais em estabelecimentos comerciais, unidades

básicas de saúde e praças públicas dos bairros do Bom retiro, Canindé e Pari.

428 Depoimento de profissional da saúde da UBS do Bom Retiro. Cf.: MOTA, André; MARINHO, Maria

Gabriela S. M. C.; SILVEIRA, Cássio (Orgs.). Saúde e história de migrantes e imigrantes. Direitos, instituições e circularidades. São Paulo: USP, Faculdade de Medicina UFABC, Universidade Federal do ABC, CD.G Casa de Soluções e Editora, 2014, p.134.

Outro prestador de serviços de saúde da UBS do bairro comenta sobre o grande número de estrangeiros e a respeito da imagem do Bom Retiro: “[...] é um bairro de bolivianos, judeus, coreanos [...] vi que eles estão muito presentes. O tempo inteiro, ao caminhar, você só vê essa imagem.”429

Observam-se tensões também nas falas de outros sujeitos históricos dos bairros estudados: “Sou rabino no Bom Retiro. Aquilo já foi bairro típico de judeu, mas agora mistura judeus, italianos, coreanos e bolivianos.” Sobre a interação entre

esses grupos, respondeu: “Não há.” Perguntado se gostaria que houvesse, a resposta foi: “Não. Sou ultraortodoxo. Não havendo atrito já está bom.”430 Por outro

lado, alguns depoentes comentam o acolhimento da sociedade local:

As pessoas ficavam admiradas com nossa música. Gostavam muito. Gostavam da dança. Nos acolheram muito bem. Em São Paulo não tinham grupos bolivianos, nós éramos os primeiros. Então as pessoas achavam grandioso nosso trabalho, choravam com a nossa música. Tinham muitas lembranças. Tinham músicas alegres, tristes, perguntavam de onde éramos, que instrumentos eram aqueles. Nós tocávamos todos os dias na São Bento, em bares, em restaurantes, em festas, em colégios.431

Essa dualidade de sentimentos e percepções também se revelava em outros momentos do cotidiano, como na vida estudantil. A depoente relata sua experiência na escola pública como aluna e agora como responsável por um estudante e observa a mudança no tratamento dado aos e/imigrantes:

Eu fui de uma época em que, na escola pública, meus professores se preocupavam, me ajudaram a aprender a escrever o português e passar da terceira para quarta série no meio do semestre para que eu não ficasse atrasada. E hoje em

429 Cf.: MOTA, André; MARINHO, Maria Gabriela S. M. C.; SILVEIRA, Cássio (Orgs.). Saúde e

história de migrantes e imigrantes. Direitos, instituições e circularidades. São Paulo: USP,

Faculdade de Medicina UFABC, Universidade Federal do ABC, CD.G Casa de Soluções e Editora, 2014, p.134.

430 Depoimento de Paulo Roberto Blinder, 47 anos, rabino. Cf.: SENRA, Ricardo. Humanomania.

Sãopaulo. São Paulo, Folha de São Paulo, 06 a 12 de abril de 2014, p.26.

431 Depoimento de Clemente Amadeo Loyaza (músico), em entrevista concedida à autora em

dia a realidade das escolas públicas é bem diferente. Nas reuniões dos meus sobrinhos, no Colégio Padre Anchieta, eu soube até de morte de crianças bolivianas, cobrança de pedágio de imigrantes para entrar na escola. E que a diretora estava pensando em fazer as reuniões de pais separadas (pais bolivianos de pais brasileiros). Eu penso não é o Brasil, não é o mesmo país, a violência aumentou muito. Então ser boliviano hoje é entender que você vai precisar de muita coragem, esforço redobrado para conseguir se integrar. Acho que ser boliviano hoje é isso. Porque se você não tiver isso, então será muito difícil.432

Observaram-se ações preconceituosas não só por parte dos alunos, mas também por parte da direção da escola, que não sabia como tratar as diferenças estabelecidas entre os estudantes. Rememoram-se reuniões de pais brasileiros e bolivianos separadas, fato esse que não auxiliava no processo de integração do e/imigrante, e sim ampliava sua exclusão.

Quanto mais as pessoas permanecerem num ambiente uniforme – na companhia de outras “como elas”, com as quais podem “socializar-se” de modo superficial e prosaico sem o risco de serem mal compreendidas nem a irritante necessidade de tradução entre diferentes universos de significações –, mais tornam-se propensas a “desaprender” a arte de negociar um

modus covivendi e significados compartilhados.433

As diversas ações propostas pelas associações de apoio aos e/imigrantes se fazem necessárias como tentativas de intervenção nos comportamentos que constantemente expressam mixofobia em relação ao estranho. Ações como eventos em áreas urbanas, incentivo à utilização do espaço público aberto e convidativo e projetos que promovam a inserção do e/imigrante no mercado de trabalho formal auxiliam na quebra do estereótipo negativo já enraizado na comunidade receptora.

432 Depoimento de Verônica Quispe Yujara, em entrevista concedida à autora em 20/06/2013.

433 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade das relações humanas. Rio de Janeiro:

Se houvesse a integração, não haveria necessidade do projeto. Eu falo da democratização da informação pelo projeto, porque as pessoas olham para minha cara e falam do anúncio “Precisa-se de garçom, treina-se no trabalho”. E eles falam: “Eu posso?” Isso para mim, é claro, não há integração. Nós percebemos nas políticas públicas também, não só para imigrantes, mas para acolher e para valorizar a diversidade cultural. Que iniciativas tem nas escolas? Eu acho de uma violência tão grande saber que 80% das crianças do Padre Anchieta são de culturas de língua hispânica e, mesmo assim, jogá-los numa sala de aula sem suporte nenhum de português. É uma violência muito grande.434

Aponta-se como positiva a inserção do e/imigrante nos bancos universitários, pois assim amplia seu leque de relacionamentos e se insere em outros contextos sociais, galgando novas oportunidades de trabalho e reconstruindo não só a sua imagem, mas a imagem de novos fluxos emigratórios.

Também, mas agora não mais, tenho amigos. O pessoal alopra, mas eu não deixo quieto não. Aí eles vêm que o conhecimento é tudo e que não tem diferença. Não tenho problemas na escola e nem no trabalho.435

Percebe-se a falta de preparo dos jovens para enfrentar situações constrangedoras embasadas nas diferenças étnicas e a busca constante de identificação entre seus pares, por isso o abandono dos estudos e o casamento prematuro.

Aí, quando eu fui atender no posto da Cachoeirinha foi que eu vi que tinha um monte de jovens de 14, 15 anos casando e só trabalhando. Acompanhei casos e descobri que um dos motivos do abandono dos estudos era o bullying sofrido nas escolas.436

434 Depoimento de Verônica Quispe Yujara, em entrevista concedida à autora em 20/06/2013. 435 Depoimento de Franz Ever Quety Rada, em entrevista concedida à autora em 12/05/2012. 436 Depoimento de Verônica Quispe Yujara, em entrevista concedida à autora em 20/06/2013.

A adolescência é a fase preparatória para a vida adulta, na qual o jovem estabelece suas relações sociais, bem como os vínculos ou as rupturas que farão parte de sua identidade adulta, sendo cruciais para a formação da identidade do jovem, seja ele e/imigrante, filho de e/imigrantes ou não. Esse é o momento de afirmação enquanto indivíduo, o desejo de se posicionar se faz presente no tempo e no espaço. Por isso a prática do bullying é tão prejudicial e perigosa, o adolescente “diferente” não sabe como lidar com o preconceito latente. Em determinados momentos se escondem, em outros enfrentam as perseguições.

Relatos de espancamentos, cobrança de pedágio e exposições vexatórias foram constantes. Brigas e pais revoltados com as situações conflituosas nas escolas também apareceram em conversas informais no domingo na Praça.437

Hoje ser boliviano no Brasil, aqui em São Paulo, é bem difícil. Ser boliviano e pobre é pior. A questão da cor também é um impeditivo, tem alguns que são miscigenados com espanhóis, aí nem parecem bolivianos, são mais brancos. O idioma é um marco, se eles começam a se comunicar melhor, a situação pode melhorar. Porque, além de ser boliviano, pobre, ter a cor escura, não saber falar português é o último grau da vulnerabilidade.438

Os jovens bolivianos identificados em pesquisa se fecham em suas comunidades bolivianas, nos bairros do Brás, Mooca, Belém, Bom Retiro e Vila Maria, que concentram as oficinas de costura. Aos finais de semana se encontram com outros jovens em festas para latinos e na Kantuta. Os universitários pertencentes à segunda geração, também aos finais de semana, participam de atividades em associações formadas pelos próprios pais para manter a cultura boliviana em São Paulo. Nos relatos percebe-se que tanto os jovens da primeira geração como os da segunda geração já sofreram discriminação por parte de

437 HUAYHUA, Gladys Llajaruna. Primeira e segunda geração de jovens imigrantes argentinos,

bolivianos e peruanos em São Paulo: um estudo psicossocial da identidade e aculturação. Tese

(Doutorado em Psicologia Social), PUC-SP, São Paulo, 2007. OLIVEIRA, Lis Regia Pontedeiro.

Encontros e Confrontos na Escola: Um Estudo Sobre as Relações Sociais entre Alunos Brasileiros

e Bolivianos em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Educação: História, Política, Sociedade), PUC-SP, São Paulo, 2013.

brasileiros, em diferentes momentos do cotidiano: no mercado, na escola, no hospital, no trabalho e ao transitar pela rua.

Sabe trabalhei com pessoas em São Paulo que tinham esse preconceito latente comigo, mas eu... Aí eu falo o que tenho em mente: “Quem aqui é realmente brasileiro? O índio, vocês são de fora.”439

Eu já fui mal atendido no supermercado, na polícia federal, no hospital, as pessoas brigam com você, querem te bater, ficam te agredindo verbalmente. Porque não tenho ojos verdes, pele clara e nariz fino, as pessoas me olham diferente, me sinto excluído. Aí falam grosserias para você. Sentia muito mais antigamente. Ainda percebo no dia a dia, mas todos os dias eu contorno isso de uma forma diferente.440

Aqueles que se identificam como mestiços com espanhóis e brancos, que conseguem esconder os traços étnicos e falam bem o português se inserem com mais facilidade no mercado de trabalho e nos grupos sociais de brasileiros, pois burlam o estereótipo negativo da falta de hábitos de higiene, da pobreza e dos traços indígenas. Percebeu-se que não são aceitos pelos paulistanos e que suas práticas de lazer se resumem a atividades realizadas dentro do próprio grupo.

As lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de origem e dos sinais duradouros que lhes são correlativos, como o sotaque, são um caso particular das lutas das classificações e lutas pelo monopólio (caso) de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer os grupos.441

Os novos sujeitos históricos demandam serviços e expressam suas formas de viver e ver o mundo, fazem e pertencem à história dessas localidades, aspecto identificado na percepção acerca do atendimento público na área da saúde:

439 Depoimento de Franz Ever Quety Rada, em entrevista concedida à autora em 12/05/2012. 440 Depoimento de Franz Ever Quety Rada, em entrevista concedida à autora em 12/05/2012.

441 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico: memória e sociedade. Rio de Janeiro: Editora Bertrand

[...] dificilmente vou ao hospital, porque vejo como são maltratados os bolivianos, mas precisei. Então fui e, quando era minha vez, perguntei pro médico “Que remédio é esse?”, e ele nem me ouviu. Fui mal atendido, tipo um gado, e fui maltratado pela enfermeira. E eu perguntei pra ela “Me diga os compostos do remédio, vou ter reação ou não?”, coisas assim [...] e ela viu que eu tinha uma cara diferente, um sotaquinho. E estupidamente, foi grosseira comigo. Disse “Procura na internet”. E aí surgiu um desconforto. Ela falou “Da onde que você veio? Esse povo não tem o que fazer. Vem aqui, e são estrangeiros, utilizam nossos serviços...” e começo a falar mal [...]. Eu fiquei com tanta raiva!442

Sentem as mesmas necessidades que os brasileiros, passam pelas mesmas filas de espera e constrangimentos que o sistema de saúde pública oferece. Porém, observam-se agravantes decorrentes da condição de e/imigrante. O idioma, os traços étnicos e os costumes muitas vezes não são compreendidos pelos atendentes.

A falta de inserção na sociedade paulistana e as dificuldades de concretizar o sonho motivam o fechamento do ciclo emigratório, que se dá com o retorno. Aqueles e/imigrantes que se deslocaram para o Brasil com o intuito de prosperar financeiramente e conseguiram trabalho, enviam remessas para os familiares, encerram o processo emigratório e retornam. Aqueles que formaram família no Brasil deixam o sonho de retornar para a velhice ou o reduzem para os períodos de férias, quando viajam a seus departamentos de origem para visitar familiares.

Sempre tenho vontade de voltar para a Bolívia, mas, como tenho família aqui, vou ficando. Aqui tive oportunidades, na Bolívia também tem oportunidades, mas é mais difícil. Mas me aposento em breve e penso em voltar para minha cidade. Já fiz muito pelo Brasil e agora quero fazer um pouco pelo meu país.443

Mesmo que tardia, a decisão de voltar sempre faz parte do processo emigratório. Nota-se que o ato de retornar já está implícito no próprio ato de emigrar.

No documento Camila Collpy Gonzalez Fernandez (páginas 165-182)

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