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CAPÍTULO I CONTEXTO/TRÂNSITO EM CONTEXTO/CONTEXTO EM

1. Territorialidade(s)

2.2. Retrospectiva I: Rede Sul-Americana de Dança (RSD)

Pensar em retrospectiva é se reportar a perguntas que em seu momento foram respondidas através de ações determinadas. Se entendermos o plano das respostas como algo móvel e em constante revisão, revisitar nossas ações implicaria um exercício constante de criação, de introdução de novos diálogos, dúvidas e certezas provisórias, como aquelas que foram plasmadas no plano do real. Ao repensar a experiência da RSD, é inevitável voltar a enfrentar uma série de questionamentos que atravessaram a esta conjunção de países e estratégias de colaboração.

A RSD nasceu no ano 2000 como uma iniciativa de intercâmbio entre atores da dança da Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Chile em resposta a uma série de carências detectadas no nível organizacional e artístico no campo internacional da produção em dança. A leitura crítica por parte de artistas provenientes destes países e que fundamentou a criação da rede se amparava, principalmente, no plano organizacional e de gestão deste campo em âmbito internacional.

Sobre o assunto e fazendo um exercício de memória, o Coletivo Cultura Senda (que criou a RSD) faz referência a como setores artísticos da América do Sul contavam, dentro de seus países, com estratégias organizacionais cujos alcances foram, em algum momento, significativos para a produção em artes cênicas, mas com o passar do tempo deixavam de dar respostas para as problemáticas contemporâneas. Citam-se, como casos concretos, as associações sem fins lucrativos, os grupos sindicais, fundações e organismos de cooperação, os quais, chegado um certo momento, alcançavam um limite em suas possibilidades, ao operar em marcos de gestão e associatividade restritos ao Estado-Nação. Do mesmo modo, os fundadores da Rede questionavam o acionar de organismos internacionais e/ou secretarias de cultura dos estados que apresentavam muita burocracia para dar resposta imediata a projetos artísticos que requeriam uma rápida e efetiva gestão de trabalhos de produção artística.

Outra dificuldade apresentada pelo coletivo em sua retrospectiva era a ausência de intercâmbios em escalas produtivas medianas e pequenas entre cidades e países. Ou seja, para além dos grandes festivais e produções artísticas internacionais que aconteciam na região, não existia um conhecimento cabal sobre as múltiplas possibilidades de produção em dança disponíveis em diversas cidades de um país. Pensar a produção artística regional era uma fórmula que se limitava em sua prática, na maioria dos casos, à produção de grandes capitais, invisibilizando uma rica rede de cidades, eventos, espaços de formação,

grupos de trabalho, festivais, manifestações populares existentes. Como aproximar estas vozes? Quais novas formas organizativas permitiriam a articulação para o trabalho conjunto e o desenvolvimento de novas potências no artístico?

Neste sentido, a Rede buscou ser um exercício de descentralização, juntamente com um diálogo de vozes múltiplas. A Rede preocupava-se em visualizar e ao mesmo tempo capacitar gestores, organizações, projetos, empreendimentos a partir de duas frentes combinadas: a de combinar novas formas de organização social com novas formas de desenvolvimentos artísticos. Isso implicava traçar um panorama de possibilidades que foram do campo de produção artística até a reengenharia da gestão em dança.

A preocupação de seus integrantes não estava voltada de maneira exclusiva em produzir para a cena, mas também nos próprios meios e práticas que efetivam a produção: como produzir e a partir de quais plataformas se comunicar para produzir.

Uma pergunta que, pode-se dizer, foi transversal a todo o processo da RSD, fazia referência para o próprio conceito de rede. Principalmente no início, seus colaboradores estavam preocupados em definir o plano das ações que caracterizavam este espaço, desejavam ter uma categoria exata a partir da qual entender o que se estava entretecendo em nível internacional.

É possível pensar e entrar em consenso sobre uma definição de quando o plano da construção é regional e multissetorial? A pergunta parecia ser a coluna vertebral das ações que iam sendo realizadas: a Rede é uma articulação ou uma organização? Entre concepções relaxadas que tocavam o limite do abstrato e dificultavam as sinergias, ou a ideia de uma organização hierárquica que despertava suspeitas, a Rede foi se tornando realidade em meio a estes ideários.

Muitas vezes sentimos a importância frente à intenção de transmitir e fazer tangível um conceito tão amplo e abstrato como é o de rede. Visualizando dois perigos em como a rede era percebida que, na verdade, são duas faces da mesma moeda: que a rede fosse entendida como instituição, com tudo o que no imaginário coletivo isso significa (estruturas, normas, hierarquias, verticalidade, pessoas que dão permissões) ou, pelo contrário, que fosse tão intangível e invisível que não fosse nem sequer percebida e valorizada: como uma malha que favorece para que muita gente se conecte e articule, mas que na hora que estes vínculos e projetos concretos retroalimentam o sistema, isso não sucede, porque não foi percebida como geradora de ditas condições de possibilidade (BENZAQUEN e GIANNETTI, 2009, p. 9). 23

O primeiro imaginário colocava como risco pensar a Rede como uma instituição financiadora e moderadora contrária à ideia de ser um espaço de construção coletivo que exigia distribuir responsabilidades. Já o segundo imaginário traçava a ideia de uma trama invisível, gerando dúvidas sobre as formas de intervenção que artistas e coletivos podiam ter de fato. Talvez seja por isso que retomar a pergunta sobre a Rede e sua criação, uma vez concluída a experiência, nos permite compreender com maior alcance o que antes se colocava como dúvida. O panorama esboçado não construiu definições fixas, mas sim móveis. E essa mobilidade nas formas de produção contagiou o campo artístico desenvolvido.

Um sinal que não se pode deixar de mencionar (e que resulta de notória importância dentro deste trabalho) é que a Rede teve como uma de suas principais linhas de ação a de apresentar as estratégias para superar as assimetrias nos níveis de produção em dança entre os países da América do Sul. Superar estas assimetrias exigia, por outro lado, criar estratégias de articulação e colaboração regional que envolvessem gestores, artistas e instituições em tarefas específicas: como a elaboração de mapeamentos de dança em distintas cidades e regiões; elaboração de acordos estratégicos para a cooperação internacional; a capacitação constante em matéria de gestão, trabalho em rede e uso de ferramentas virtuais ao pessoal do setor; realização de publicações que convidassem à reflexão coletiva de fazer dança na contemporaneidade; geração de espaços de convivência para a produção (residências artísticas, experiências de mobilidade), encontros anuais onde foram discutidas as atividades e linhas de ação da Rede; elaboração de plataformas virtuais de trabalho que conectassem projetos entre países; entre várias outras frentes. Do mesmo modo, as temáticas que atravessavam todas estas modalidades de ação iam do campo da composição estética até o trabalho com organizações sociais, as novas tecnologias ou a política cultural.

Os enlaces criados eram diversos porque os interesses eram diversos. A Rede conectou instituições de formação, companhias, espaços culturais, grupos de dança, meios culturais de comunicação. Permitiu, por sua vez, a circulação de múltiplas informações sobre bolsas, audições, espetáculos, concursos, festivais, assim como também de artigos, livros, agendas de discussão, proposta de projetos, elaboração de linhas de pesquisa.

Neste caso, pensar a dança na região exigia aos integrantes da Rede um exercício de problematização das identidades latino-americanas que permeavam o solo sobre o qual

se trabalhava. Sobre o assunto, num documento inédito, Sergio Del Piero24 nos diz que o erro comum na hora de pensar a América Latina é acreditar em uma única identidade capaz de conter múltiplos corpos e territórios, quando na realidade existem várias identidades. Mas, por sua vez, o reconhecimento desta diferença implica em identificar aspectos de histórias compartilhadas, seja o passado da conquista europeia ou o peso das indústrias culturais contemporâneas vinculadas ao consumo massivo, às vanguardas artísticas, ao destino dos financiamentos e, em algumas ocasiões, às políticas estatais.

Sobre o assinalado, consideramos importante perguntar até que ponto a experiência da Rede pôde dar conta dessa diversidade de corpos e contextos sul-americanos. Ao estabelecer, de acordo com seus ideários, o trabalho articulado dentro da produção em dança contemporânea, cabe dizer que muitas práticas entram nesta etiqueta, sendo várias delas contrapostas. Se a dança contemporânea era por vezes entendida como uma relação determinista entre técnica e estética, isso fazia com que alguns corpos, práticas e identidades próprias do solo sul-americano deixassem de aparecer em projetos da Rede. E se a mesma era colocada como pensamento complexo e problematizador das potências do corpo, outras possibilidades de se fazer dança tornavam-se presentes nos projetos da Rede.

Longe de se limitar a um debate acadêmico, pensar a contemporaneidade na dança implica uma prática subordinada a uma esfera de ação política: as danças populares da América do Sul trabalhadas e vivenciadas na contemporaneidade fizeram parte do esquema de dança contemporânea apresentado pela Rede? Os corpos dançantes que não vinham do treinamento sistemático em um tipo de técnica corporal institucionalizada (e até universalizada) em escolas e companhias podem entrar no trem desta contemporaneidade? Entendemos que a resposta não é uma, mas sim múltiplas na experiência referida, e se deu de forma distinta em cada projeto desenvolvido entre um coletivo de países.

Outro aspecto importante a ser ressaltado em nosso trabalho é o interesse constante da Rede de fomentar espaços para a profissionalização da dança, produção de saberes na área e circulação de informações que vinculassem a dança com outras áreas de conhecimentos. Daqui que vários dos encontros anuais da RSD aludiam com inquietude à necessidade de fundar programas de Licenciatura em Dança dentro das universidades daqueles países que não contassem com unidades acadêmicas dedicadas à produção na

24 A presente documentação faz referência a um seminário ditado pelo Prof. Sergio del Piero para integrantes

da Rede Sul-Americana de Dança, em 2011. Tivemos aceso ao documento quando estabelecemos contato com o professor, a quem agradecemos a disponibilidade em facilitar as informações.

área, preocupação aderida pelos representantes paraguaios que deram início aos programas de Licenciatura assinalados no começo do presente capítulo.

A experiência regional nesse aspecto era diversa, sendo o Brasil o país referência na hora de falar de disseminação e permanência de unidades acadêmicas em dança; enquanto outros países tinham dificuldades maiores para avançar na criação de programas de graduação. Mesmo nas assimetrias, o interesse por gerar estes espaços era compartilhado

[…] a nível regional era isso e nós não estávamos alheios... haviam instituições que tinham a Licenciatura, mas o Uruguai não tinha, por exemplo, Bolívia também não. No México acredito que tinha começado, não sei, não me lembro. Então havia um interesse generalizado que a dança ingressasse na formação superior (Entrevistadx no 7)25

Gerar articulação entre pontos desconexos nos remete, de alguma forma, ao exercício de construção do mapa citado por Deleuze e Guattari, entendendo que podem ser múltiplos os mapas traçados: mapas territoriais, institucionais, formativos, etc. E assim como novos lugares são descobertos e velhos princípios são desarmados, velhos problemas reaparecem e/ou se reproduzem.

O mapa é aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, alterável, suscetível de receber constantemente modificações. Pode ser rompido, alterado, adaptado a distintas montagens, iniciado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode- se desenhar na parede, conceber-se como uma obra de arte, construir-se como uma ação política ou como uma meditação. (DELEUZE e GUATTARI 1988)

Colocar as contradições entre ideários e práticas concretas é também parte da retrospectiva. Na experiência paraguaia foi possível desenhar novos mapas, particularmente no que diz respeito à geração de alianças dentro de processos formativos que potencializariam a aparição de programas de Licenciatura em dança. Mas, por sua vez, vale ressaltar que as ações protagonistas nos tempos da RSD envolviam principalmente profissionais da dança de Assunção, sendo o exercício de descentralização e a instauração de outros espaços geopolíticos do país quase inexistentes.

Igualmente, o desejo de superar a estrita vinculação entre grupos ou pessoas em defesa de criar nexos mais institucionalizados, diferenciais e contínuos no tempo, não seria possível em todos os casos que integram a experiência da RSD. No plano do real, as

25 A pessoa entrevistada foi integrante do corpo docente da Licenciatura em Dança do ISBA. É professora de

relações afetivas entre representantes de distintos países ou de distintas cidades dentro de um mesmo país permitiriam uma circulação contínua de saberes sem chegar a institucionalizar os canais de comunicação ou alianças alcançadas.

E, ainda que estas relações afetivas interpessoais tenham força e gerem possibilidades de articulação, a preocupação por consolidar políticas culturais dentro dos países e/ou uma política cultural regional para a dança (seja em forma de convênios, intercâmbios entre companhias ou universidades, criação de fundos e financiamentos regionais) seria uma constante. Em muitos sentidos, as políticas públicas fazem com que deixemos de ser anedóticos e testemunhais, pois garantem uma continuidade das alianças para além de nossas individualidades, tópico notoriamente discutido dentro dos espaços de debate da RSD.

O Nodo26 Assunção foi estabelecido durante o ano de 2001, sendo o primeiro contato do Paraguai com a RSD. Não obstante, a representação do país diante de Rede seguiria sendo liderada por individualidades até a criação do Foro Paraguai para a Dança, em 2005. A criação deste espaço formalizou os vínculos entre o Paraguai e a RSD e os tornou mais organizadores, fazendo com que a participação do setor fosse mais sistemática e diversa, ao ter uma figura institucional como mediadora.