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Revenge, o problema da motivação e as normativas de gênero

Ao trabalhar especificamente a disseminação não consentida de imagens íntimas, por assim dizer, revengeporn, enfrentamos a complicação que se dá também em sede de outras violências associadas à sexualidade e gênero, que é o que poderíamos chamar de dano focalizado. O que queremos dizer é que o acompanhamento de casos desse tipo19 mostra claramente que, com poucas

exceções, é o sexo feminino que é afetado, ainda que a exposição em questão seja de um casal heterossexual. Apresenta-se diante de nós o suposto parado- xo de que, em tempos de superexposição e desvalorização da privacidade, e possivelmente de uma certa liberalização dos costumes, principalmente por

19 Que empreendemos via (i) pesquisa de jurisprudência, (ii) estudo de caso e (iii) entrevistas e acompanhamento de mídia. (VALENTE et al., 2016)

adolescentes, a exibição da nudez e de cenas sexuais envolvendo mulheres ainda seja um tabu tão extremo, com o condão até mesmo de destruir vidas.20

A literatura que associa sexualidade a perigo, e que busca entender como essa chave ainda tem lastro, ajuda a responder a esse suposto – porém, falso – paradoxo: Vance, em especial, ajuda a formular essa questão ao evidenciar que as mulheres, ainda quando instadas e gozando de abertura para exercer sexualidade, são punidas por isso.

A tensão entre perigo sexual e prazer sexual é poderosa na vida das mulhe- res. A sexualidade é simultaneamente um domínio de restrição, repressão, e perigo, assim como de exploração, prazer e agência. O foco somente no prazer e na gratificação ignora a estrutura patriarcal em que as mulheres agem, mas também falar somente de violência sexual e opressão ignora a experiência das mulheres com agência sexual e escolha, e inadvertidamente aumenta o terror sexual e o desespero sob o qual as mulheres vivem. (VANCE, Carole, 1984, p. 1)

Vance esclarece que a barganha tradicional estabelecida em torno da sexualidade da mulher e suas relações com o homem é que, se ela se com- porta como esperado – de acordo com normativas de gênero, que são as representações dominantes sobre os gêneros –, é protegida pelo homem; se não, o homem pode violá-la e puni-la. Essa barganha estaria sendo enfraque- cida pelas mudanças capitalistas e pelo movimento das mulheres. No século XIX, as feministas elaboraram a ideia de assexualidade e contenção sexual dos homens, como saídas para superar a assimetria; a segunda onda do femi- nismo apostou no aumento de autonomia sexual das mulheres, e, nesse fluxo, muitas mulheres se sentiram, no entanto, mais vulneráveis.

Apesar do declínio da velha barganha, que posicionava a segurança sexual das mulheres e sua liberdade sexual em oposição, o medo que as mulheres sentem de repreensão e punição pela atividade sexual não diminuiu”. (VANCE, Carole,1984, p. 1)

Para além dos danos físicos e psicológicos causados pela ameaça, o perigo do ataque sexual passa a operar como uma lembrança do privilégio

20 Acompanhamos casos de suicídios, perda de emprego, abandono escolar e deslo- camentos forçados, sempre por mulheres, após a disseminação não consentida de suas imagens íntimas.

masculino, com o intuito de restringir o comportamento das mulheres. É isso que engendraria o discurso do better safe thansorry (melhor prevenir que remediar),21 e a vivência dos impulsos sexuais femininos como perigo: se os

homens são vistos como desejantes, agressivos, impetuosos, cabe à mulher, nessas representações dominantes, o papel de custodiar o comportamento masculino, não lhe provocando desejos. Os custos de agir de outra forma são altos. A autora explicita também os efeitos internos dos sistemas de gênero nas mulheres, que sofrem de dúvidas sobre si e ansiedades – e a própria for- mação do desejo feminino sob o patriarcado estaria ainda por ser melhor explorada. Um de seus aspectos seria a competição feminina que se coloca na disputa por atenção, e na separação em relação a outras mulheres, como a mãe e irmãs reais e metafóricas, que a transgressão do gênero provoca. Mas veja a complexidade da questão:

Assim como concordar em não falar dos perigos faz com que a auto- biografia de uma pessoa seja mutilada, decidir não falar sobre prazer exige uma alquimia igualmente desonesta, a transmutação da sexua- lidade em perigo absoluto e vitimização incessante. (VANCE, Carole, 1984, p. 5)

Henrietta Moore (1994), em argumentação semelhante, lembra-nos de que a violência – e a ameaça de violência – é uma forma efetiva de controle social: ela aparece como uma crise de representação e resultado de conflito entre estratégias sociais que estão ligadas a essa representação.22 Se identidade

é algo ligado à experiência de poder, quaisquer contestações ao exercício do poder são percebidas como ameaças de identidade, e vice-versa – especial- mente se as contestações no nível da identidade de gênero estão refletidas no comportamento do outro com quem o indivíduo está conectado de forma

21 Um exemplo afeito ao nosso estudo: “caso não queira ter a intimidade violada, não registre a sua intimidade”, o que no limite é obstar o livre exercício da sexualidade pelas mulheres.

22 O exemplo que Moore apresenta é o do homem colombiano, que lida com as duas principais representações sociais dominantes, a do homem de família e homem

parrandero – e nas parrandas também está uma grande fonte das redes que trarão

benefícios econômicos dos quais as mulheres, ou os homens que não frequentam esses espaços, ficam excluídos.

próxima. Em outras palavras, a violência constantemente surge como forma de reafirmar poder em situações de ameaça a representações ligadas à identi- dade, que surgem especialmente em relações próximas e íntimas.

[...] Violência é frequentemente o resultado da incapacidade de con- trolar o comportamento sexual de outras pessoas, ou seja, a admi- nistração dos outros de si mesmos como sujeitos generificados. Isso explica não somente a violência entre homens e mulheres, mas tam- bém entre mães e filhas, entre cunhadas, entre os homens mesmos. Em todas essas situações, o que é crucial é a forma como o compor- tamento do outro ameaça as autoavaliações e avaliações sociais de uma pessoa. Então, é o perpetrador da violência que é ameaçado e experiência frustração. Interessantemente, muitos dos eventos vio- lentos discutidos neste livro ocorrem em situações em que a parte frustrada está sujeita a sofrer perdas materiais, como resultado de insuficiências – assim percebidas – da vítima da violência. Mais uma vez, fantasias de identidade estão ligadas a fantasias de poder, o que ajuda a explicar por que a violência é tão frequentemente o resulta- do de uma ameaça percebida, em vez de real. (MOORE, Henrietta, 1994, p. 152)

Essa moldura teórica, ainda segundo Moore, ajuda a entender a violên- cia não como uma quebra da ordem social, mas como um sinal da luta pela manutenção de certas fantasias de poder e identidade – e que envolvem não somente gênero, mas também classe e raça.23 Esse processo se dá de forma

contínua, ressignificando-se ao longo do tempo. Do ponto de vista de gênero, a revenge porn reforça, portanto, as normativas de gênero, entendido gênero a partir da definição de Scott: organização social da relação entre os sexos, de forma a sublinhar “o aspecto relacional das definições normativas das feminilidades”. (SCOTT, Joan, 1995, p. 72)24 Um dos elementos implicados no

23 No mesmo sentido, Maria Filomena Gregori (2008, p. 580) aponta que os estudos antropológicos com foco na violência, ou seja, abusos sociais e como são tratados pelas instituições sociais como Corrêa, 1983; Ardaillon; Debert, 1987; Vargas, 1997; Carrara, 2000, mostram que nos homicídios contra mulheres existe a motivação do passional da defesa da honra, “em que há claramente a pressuposição de perda do controle sobre a sexualidade feminina”.

24 O modo como Alice Bianchini, advogada e pesquisadora entrevistada, interpreta a prática de “revengeporn” é emblemática nesse sentido: “Meio parece que é até

gênero é precisamente a normatividade de conceitos que, expressos em dou- trinas de distintas ordens – religiosas, educativas, jurídicas etc. – afirmam de forma binária o sentido de masculino e feminino (SCOTT, Joan, 1995, p. 86); por mais que as posições estejam em disputa, uma delas – o masculino – é, de forma ampla, apresentada como dominante e aparece como se fosse produto de consenso social – e não do conflito.

É nesse mesmo sentido, já em nossas palavras, que em nosso campo surgem com clareza, a respeito de casos de revengeporn, discursos no sen- tido de que a mulher “não deveria ter feito isso” – ter realizado prática sexual, ou ter-se deixado fotografar ou filmar nessa prática –, como norma- tiva primordial, a se sobrepor ou mesmo substituir a condenação moral do compartilhamento não autorizado das imagens íntimas pelos homens, em geral. O dever de castidade das mulheres e meninas, ainda que descolado das práticas em uma determinada comunidade ou cultura, apresenta-se como mais forte. Ainda assim, a própria realização pelas mulheres dos atos proibidos, documentada em imagem, é paradoxalmente o questionamento dessa normativa.25

uma coisa mais moderna daquela coisa antiga que dizia assim ‘não é minha não é mais de ninguém’. Agora é: ‘se não é minha é de todos’. É de todo mundo para não ser de mais ninguém, na verdade, é como se fosse mais uma forma de chegar à mesma ideia de não ser de ninguém, porque na medida em que ele difama essa mulher ela vai ter dificuldades de novos relacionamentos. Então é uma forma dele

de chegar ao mesmo objetivo, não é minha não é de ninguém, porque vai ser de

todos. Então é muito parecido só que é uma coisa mais moderna de chegar à mes- ma coisa. Mas o fundo me parece que é muito... Continua o mesmo”. (grifo nosso) 25 Numa confirmação dessa instabilidade, Joan Scott (1995, p. 93) afirma que: “Só

podemos escrever a história desse processo se reconhecermos que ‘homem’ e ‘mu- lher’ são ao mesmo tempo categorias vazias e transbordantes; vazias porque elas não têm nenhum significado definitivo e transcendente; transbordantes porque mesmo quando parecem fixadas, elas contêm ainda dentro delas definições alter- nativas negadas ou reprimidas. Em certo sentido a história política foi encenada no terreno do gênero. É um terreno que parece fixado, mas cujo sentido é contestado e flutuante. Se tratamos da oposição entre masculino e feminino como sendo mais problemática do que conhecida, como alguma coisa que é definida e constante- mente construída num contexto concreto, temos então que perguntar não só o que é que está em jogo nas proclamaçõesou nos debates que invocam o gênero para justificar ou explicar suas posições, mas também como percepções implícitas de gênero são invocadas ou reativadas”.

Para finalizar (e recomeçar): o que nos

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