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Uma violência online é também uma violência?

Se certa literatura já debate relações de gênero e tecnologia em torno da tese da construção mútua, não há tantos debates em torno da questão específica da chamada violência de gênero on-line.14 Nossas experiências com a pesquisa so-

bre disseminação não consensual de imagens íntimas com base em gênero co- locaram-nos essas inquietações de forma bastante explícita. Em novembro de 2015, uma equipe de alunas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entrevistou nossa equipe de pesquisa para um documentário sobre o ato de disseminação não consentida de imagens íntimas, em inglês, Non-Consensual Dissemination of Intimate Images (NCII), também denominado “revengeporn”. As alunas mostraram-se surpresas com o fato de utilizarmos reiteradamente a palavra violência – algo que, diziam, era uma novidade, em relação aos entre- vistados que nos antecederam. Discutindo com elas, tornou-se claro para nós que nomear práticas como o NCII como violência constitui uma espécie de statement – uma afirmação forte, e, como veremos, performativa.

Outros acontecimentos evidenciaram a força do uso da palavra “violên- cia” na edição de novembro de 2015 do Internet Governance Forum (IGF), evento da Organização das Nações Unidas (ONU) que congrega o setor privado, Estados e o terceiro setor para discussões sobre internet, quatro das mesas foram dedicadas a questões de gênero e internet, em todas, incluída a questão da violência.15 O IGF vem adotando, também, o compromisso de desenvolver

pesquisas aprofundadas sobre temas considerados relevantes, por meio de seu Best Practices Forum (BPF): em 2014, um dos seis temas escolhidos foi a violên- cia contra mulheres on-line, no âmbito do qual foi elaborado um relatório que

14 Dentre os poucos trabalhos, destacamos o de Dafne Plou (2013, p. 122), que, em “Novos Cenários, Velhas Práticas de Dominação”, argumenta que “as relações desi- guais não deixam nenhum lugar sem dominação. Os espaços digitais da comunica- ção e participação são novos âmbitos onde continuam ocorrendo essas questões, às vezes chegando a violência de gênero tal como ocorrem no espaço real”. 15 Programação disponível em: https://igf2015.sched.org/. Acesso em: 14 jan. 2018.

foi apresentado durante o IGF 2015. Em outubro de 2015, a equipe responsável pelo BPF iniciou uma campanha na internet para colher relatos de violência on-line, utilizando-se da hashtag #TakeBackTheTech. A campanha foi atacada por grupos que, alegando preocupação com as consequências para liberdade de expressão das discussões ali propostas, argumentaram principalmente que a iniciativa da ONU utilizava-se da narrativa da violência sem qualquer proprie- dade, e buscava igualar o que ocorria na internet com a violência física fora dela – o que, para eles, seria irreal, impertinente e perigoso. O ataque foi agressivo e, supostamente, proveniente de grupos masculinistas conhecidos pelo envolvi- mento com o episódio GamerGate.16

Para as ciências sociais, e em especial para a antropologia, violência e sexualidade tendem a ser compreendidos antes como categorias relacionais do que como conceitos preestabelecidos. Isso quer dizer que se tratam de relações construídas na cultura, e não, necessariamente, universalmente váli- das. Tratar da violência em geral, de um ponto de vista teórico, é difícil em si, seja porque a literatura sobre o tema é vasta, e o debate vem sendo conduzido em disciplinas e lugares muito diferentes, seja porque o tema é tão próximo do nosso cotidiano que uma tentativa de delimitá-lo seria sem sentido e até, talvez, de mau gosto. (HARVEY, Penelope; GOW, 1994, p. 1) Se a literatura é vasta, de outro ponto de vista, “apesar de uma grande quantidade de escri- tos, pesquisa e especulação, o conceito de violência nas ciências sociais ainda parece consideravelmente subteorizado”. (MOORE, 1994, p. 138)

É mesmo difícil encontrar um consenso mínimo para o conceito de vio- lência. De acordo comRiches, citado por Harvey e Gow (1994, p. 12), um con- ceito mínimo válido transculturalmente seria o de violência como “aquilo que é dano físico não legítimo, ou contestável”. Foi precisamente esse con- ceito mínimo de violência que foi mobilizado pelos grupos on-line que con- testaram a campanha da ONU. Maria Filomena Gregori, entretanto, aponta

16 O Gamer Gate foi um episódio em que várias mulheres, envolvidas na discussão de

vídeo games, foram perseguidas predominantemente por usuários de fóruns anô-

nimos, por diversos motivos. Para mais informações, ver: http://time.com/3510381/ gamergate-faq/. Para ver o registro da articulação desse grupo em torno da cam- panha #TakeBackTheTech: https://www.reddit.com/r/KotakuInAction/comment- s/3oa04u/goal_op_take_back_the_truth_phase_ii_the_apc_has/. Nessa discus- são, acusa-se a ONU de estar “pushing its bullshit ‘cyberviolence’ narrative, and

para “a fronteira tênue em que se confrontam o exercício da sexualidade, no marco de sua significação como liberdade individual, e a violência, conotada como atos abusivos passíveis de condenação moral, social ou de criminaliza- ção” (GREGORI, Maria, 2008, p. 575) – aqui, portanto, já entendendo como violência o ato abusivo não necessariamente definido como dano físico.17

É em meio a essa dificuldade que se situa a nossa discussão sobre se atos como a disseminação não consentida de imagens íntimas, revenge- porn, podem ser discutidos na chave da violência, e sobre se faria sentido excluir a categoria, como queriam os grupos que atacaram a campanha #TakeBackTheTech, pelo fato de se tratarem de atos praticados “exclusiva- mente na internet”. Essa discussão deixa de guardar qualquer sentido se abandonamos, como pretendemos, essa dicotomia off-line x on-line.

Pensar a violência para práticas virtuais pode ser também perseguido por uma linha que, em vez de buscar definir violência teoricamente, inves- tiga suas relações com gênero e sexualidade. Carole Vance é uma autora par- ticularmente útil para essas reflexões, por explorar o erotismo como algo co-constituído por prazer e perigo: estupro, abuso e espancamento são fenô- menos ligados ao exercício da sexualidade. Seria a violência on-line, ou mais especificamente uma prática como o revengeporn, um novo significante do perigo ligado ao exercício da sexualidade? Para Gregori, essa relação tensa entre prazer e perigo pode ser chamada de limites da sexualidade. O que é abusivo e o que é normal são constantemente ressignificados. Essa fronteira é montada, e a antropologia teria o papel essencial de mostrá-la: não poderia ser o caso, quanto ao tema de nossa investigação, de estarmos observando uma ampliação dessas fronteiras, em especial se considerarmos o papel cada vez mais central das TICs nas nossas vidas?18

Apesar das dificuldades conceituais, a questão da violência sexual e inclusive moral:

17 O próprio estupro é uma questão tanto moral quanto física – o conceito de atentado violento ao pudor é mais adequado, inclusive, por lidar com a violação da integrida- de da pessoa, para além da questão da atividade sexual em si. (DAY, 1994, p. 172) 18 Sobre o caráter relacional da violência, Gregori menciona uma série de trabalhos de

apoio. (DE LAURETIS, Teresa de, 1994; MOORE,Henrietta, 1994; SAFFIOTI, Heleieth 1994; GREGORI, Maria, 1993, 2004; DEBERT, Guita; GREGORI, Maria, 2008)

[...] vem sendo exaustivamente regulada, controlada, estudada: a vio- lência ligada à sexualidade contém o paradoxo de ser erotizada pelas sociedades ocidentais e de conter em si o signo do inaceitável; além disso, é transgressora; transgressora do nosso sentido de integridade física e do espírito ligado a ela, o que permite que violência seja aplica- do a não apenas a agressão física. (HARVEY, Penelope; GOW, 1994, p. 2)

Ora, o material apresentado parece sugerir que não exista uma resposta dada de antemão sobre se os atos lesivos praticados contra a mulher na inter- net são violência, como se violência pudesse ser definida no dicionário e assim permanecer estável nas culturas. Ainda assim, a discussão que condu- zimos até aqui parece apontar para uma pertinência na utilização da palavra: de um lado, nosso campo mostra que a violência aplicada a esses contextos é categoria nativa, utilizada pelas próprias vítimas e militantes trabalhando com os casos. De outro, se a categoria pode evidentemente ser contestada, como efetivamente tem sido, existe aparentemente um efeito performativo no nomear tais práticas como “violentas”, que é chamar, para a questão, a atenção que a cultura dá para tudo aquilo que é proibido, transgressor, ilegal.

Revenge, o problema da motivação

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