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CAPÍTULO 1 COMUNIDADE LUSÓFONA: IDÉIAS E CONSTRUTOS EM PORTUGAL E NO BRASIL

1.2 Revolução dos Cravos: início da nova fase e busca pelo re-engajamento

A descolonização viria, por si, com o golpe militar que pôs fim ao Estado Novo português e deu início a uma mudança na orientação da política externa do novo governo. De fato, a independência total dos territórios ultramarinos não se apresentava como um dos objetivos do programa do movimento revolucionário protagonista da Revolução portuguesa. Este se referia a políticas que levassem à paz entre povos portugueses de todas as raças, podendo-se ver, aí, de acordo com Macqueen, “[...] an echo of the Salazarist dogma of

‘Lusitanian’ unity”62 . No entanto, o convite ao General Spínola para liderar a Revolução

       58 SELCHER, op. cit., p. 30. 59 Ibid., p. 30.

60 Ibid., p. 32.

61 SELCHER, op. cit., p. 41-42.

62 MACQUEEN, Norman. Portugal and Africa: The Politics of Re-Engagement. The Journal of Modern African

sugere certo grau de abertura com relação às colônias africanas, que viriam, dentro de pouco tempo, a conseguir a emancipação. 63

O desfecho foi mais do que esperado, tendo em vista o desgaste da imagem portuguesa no sistema internacional e a falta de solução para a guerra da África, como já tinha percebido Gibson Barbosa em 1973. E, frente a isso, o Brasil, primeiro Estado a proceder ao reconhecimento, passa a almejar ter participação ativa no processo de descolonização. Muitas são as especulações de políticos e intelectuais que imaginavam o país como herdeiro legítimo e substituto natural da influência portuguesa na África.64 Essas expectativas, no entanto,

seriam frustradas pela realidade que tomava forma, na qual “[...] não houve, da parte das novas autoridades, de par com manifestações de interesse pela manutenção e pelo desenvolvimento de cordiais relações com o Brasil, tentativa alguma de associar o governo brasileiro ao processo de descolonização”.65

O aparente desinteresse português em incluir o Brasil nos processos de negociação tinha motivos tanto internos quanto externos: Portugal encontrava-se em situação de certa fragmentação de autoridade e a Guiné-Bissau (primeiro país a negociar sua emancipação com o governo português) se negava a aceitar a participação de terceiros nas negociações de sua independência.66 Além disso, aos lideres do governo revolucionário da PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde -, a política anti-colonialista brasileira não parecia clara o suficiente para que ele se apresentasse como mediador.67

A hipotética receptividade natural da África aos acenos brasileiros de solidariedade cultural e política não se confirmava, sendo mais real a situação de indiferença africana e de desconfiança portuguesa. O otimismo inicial desaparecera, dando lugar à decepção, o que leva o Brasil a proceder ao reconhecimento da Guiné-Bissau mesmo antes do término das

      

63 Spínola, pouco antes do 25 de abril de 1974, publicou a obra Portugal e o Futuro, na qual expunha sua visão

acerca da África portuguesa e asseverou a criação de uma Comunidade Afro-Luso-Brasileira como solução para um Portugal saído do colonialismo e do isolacionismo político internacional. Desta forma, defendeu-se a autonomia progressiva das colônias africanas, admitindo, inclusive, sua independência, “[...] desde que integradas em um ‘Estado plurinacional’, beneficiando de uma verdadeira desconcentração e descentralização de poderes em toda a chamada ‘Comunidade Lusíada’”, na qual existisse igualdade plena entre seus elementos constitutivos. (Spínola, 1974, p. 158-159). A perspectiva do General português tinha como fundamento o pragmatismo de evitar a desagregação pela via revolucionária, que traria riscos aos laços que as colônias mantinham com a cultura lusíada, impedindo o posterior re-engajamento em bases diferentes.

64 CERVO & MAGALHÃES, op. cit., p. 325. 65 Ibid., p. 325.

66 Ibid., p. 326-328.

negociações de independência e sem consulta prévia ao governo português. 68 A esse respeito, Selcher argumenta que “[…] the surprise recognition represented tacit admission of the

abandonment of Brazil’s illusory hopes for special consideration from Lisbon and a clear sign of present and future independence in the relationships with both Black Africa and Portuguese Africa.”69

O diálogo entre Brasil e Portugal esfriara após o golpe, muito em razão do descaso português para com as intenções e interesses brasileiros. Buscando amenizar o impasse gerado nas relações entre Lisboa e Brasília, o Ministro de Negócios Estrangeiros de Portugal declara, em conferência à imprensa, a intenção de associar o Brasil à política de descolonização, o que se materializa no convite ao embaixador brasileiro para participar, como único diplomata convidado, do almoço oferecido pelo presidente de Portugal aos representantes do Estado da Guiné-Bissau, em razão de sua visita para participar da cerimônia da independência.70 Iniciava-se, assim, nova fase no tocante ao que viria a ser a Comunidade lusófona, havendo mudança qualitativa do discurso político português relativo ao re-engajamento das ex- colônias.

À descolonização seguiu-se uma deterioração das relações entre Portugal e suas ex- colônias, caracterizada por Ferreira Lopes como “[...] longo período de frieza traumática”71. Essa fase, no entanto, acaba por dar lugar à busca, por parte de Lisboa, pelo re-engajamento das colônias, mediante a construção de novos laços e a recuperação da confiança dos líderes políticos africanos.72 Durante a década de 1980, vários são os acontecimentos que possibilitam o renascimento do projeto de Comunidade, já visto por Spínola como a única saída para um Portugal pós-descolonização.73

Passada a fase de “frieza traumática” nas relações entre ex-metrópole e ex-colônias, tendo Portugal aderido à Comunidade Econômica Européia e o Brasil se redemocratizado, surge a possibilidade de viabilização do projeto antigo de Comunidade, o que se afigura uma

      

68 CERVO & MAGALHÃES, op. cit., p. 326-330. 69 SELCHER, op. cit., p. 52.

70 CERVO & MAGALHÃES, op. cit., p. 328. 71 LOPES & SANTOS, op. cit., p. 17. 72 MACQUEEN, op. cit, p. 31.

73 Spínola afirma, em Portugal e o Futuro, que o futuro da lusofonia passa pela construção de uma Comunidade

Lusíada: “Alargando a nossa inegável força de integração, alicerçada na língua comum e na total tolerância e harmonia cultural e racial, poderíamos construir no mundo, como resultante da expressão inequívoca da vontade das populações, uma federação de estados portugueses.” (SPÍNOLA, Portugal e o Futuro, p. 159).

das prioridades portuguesas entre os períodos de 1983 e 1996. 74 A esse respeito, afirma Ferreira Lopes:

Assegurado um quadro político estável, seria possível relançar, em novos moldes, a política externa portuguesa para outros espaços onde ainda detinha alguma influência, em virtude da partilha da língua e de ‘cumplicidades’ várias com os países africanos lusófonos e o Brasil, de modo a reduzir a nova dependência do mercado europeu e aumentar o [seu] prestígio internacional.75

Pode-se observar, durante esse período, mudança qualitativa no discurso português, que passa a referir-se a um “[...] plano de amizade franca e igualdade absoluta [...]”, o qual se insere em uma diplomacia dos pequenos passos na construção da organização lusófona.76 Em

1985, o reengajamento de Portugal com suas ex-colônias estava consolidado, com o estabelecimento das bases para novas relações.77 Essas relações foram fortemente impulsionadas no governo de Aníbal Cavaco Silva (1985-1995), baseando-se em uma estratégia de diálogo que se mostrou exitosa, tendo em vista a reestruturação da cooperação com esses países.78

Nesse contexto em que as prioridades da política externa portuguesa se dividem entre suas relações com a Europa e a reestruturação dos seus laços com a África lusófona, surge a chamada Geração da Lusofonia, nascida nos anos de 1980, às voltas das revistas da Lusofonia e dos Congressos lusófonos. 79 A lusofonia, enquanto construção teórica, insere-se na convicção de que a superação dos problemas portugueses passa necessariamente pela defesa e pelo engrandecimento da língua portuguesa, com a conseqüente congregação dos países que nela se comunicam, como afirma Barradas de Carvalho: “[...] assim, perante a encruzilhada, a Europa ou o Atlântico, pronunciamo-nos pelo Atlântico, como única condição para que Portugal reencontre a sua individualidade, a sua especificidade, a sua genuinidade, medieval e renascentista.”80

Cabia relançar a política externa portuguesa para a África lusófona e, para tanto, importante foi a manutenção do português como língua unificadora e de comunicação entre as etnias das nações africanas independentes. Esse fato permite o surgimento de elaborações       

74 LOPES & SANTOS, op. cit., p. 19. 75 Ibid., p. 18.

76 Ibid. p. 19-20.

77 MACQUEEN, op. cit., p. 49. 78 LOPES & SANTOS, op. cit., p. 21.

79 Com relação às prioridades da política externa portuguesa no período, consultar: LOPES & SANTOS, op. cit.,

p. 19,

80 CARVALHO, Joaquim Barradas de. Rumo de Portugal: A Europa ou o Atlântico?. Lisboa: Livros Horizonte,

teóricas que têm por objetivo forjar identidades, “[...] detectar o gênero de imaginário que poderia constituir fundo vivo e fecundo do qual emergiriam eventuais valores lusófonos”.81 Isso porque o idioma, reconhecido pelo Estado como instrumento supranacional, contém, em si, o próprio conceito de unidade, possibilitando que a consciência da coletividade proporcione a expressão como base da própria identidade.82

O reconhecimento dessas condicionantes de natureza lingüística - juntamente com as “[...] fortes tendências de supra nacionalidade que ocorrem hoje no mundo” - é apontado por Feijó Sobrinho como o fator que aprimorou a percepção da necessidade de “[...] se imprimir maior dinâmica na coesão do espaço lusófono.”83 Vê-se, assim, a despeito das diversidades da

língua em uso apontadas por Enilde Faulstich84, a importância do idioma comum para as construções imaginárias que buscam forjar a base de cultura compartilhada de uma Comunidade triangular que congregasse Portugal, Brasil e os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).