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Revolucionários na sociedade brasileira

1. A QUESTÃO SOCIAL E O SURGIMENTO DO TRABALHISMO NO BRASIL

1.2 Revolucionários na sociedade brasileira

A necessidade da classe dominante de controlar e disciplinar a força de trabalho no Brasil na transição para a ordem capitalista perturbou a classe política que passou a defender valores positivos para o trabalho, para que não houvesse, ou que fosse minimizada ao máximo, a resistência dos trabalhadores ao domínio exercido pelos proprietários das terras e das fábricas. A orientação que essas classes proprietárias imprimiram ao Estado se deu no sentido de se preservar os princípios liberais no que diz respeito ao mercado de trabalho e à manutenção do direito de propriedade. Desta forma, o trabalhador não podia contar com a intervenção do Estado em seu favor em momento algum. Pelo contrário, podia esperar a devassa na sua vida e a repressão física e psicológica por parte do aparato repressivo estatal e do poder privado.

Em 1890 foi criada a Sociedade Cooperativa dos Empregados em Padarias do Brasil com cerca de 400 sócios que objetivavam eliminar os patrões, que não vingou pois o tesoureiro roubou o dinheiro da entidade e desapareceu. Um de seus fundadores, João de Mattos, afirmou: “em 1888 nós realizamos a maior vitória de nossa intransigente luta, ficando o caminho livre para os escravizados de fato e nós os

escravizados livres, até o presente entremos a lutar”.111 Anos depois, em 1898, foi

fundada a Sociedade Cosmopolita Protetoras dos Empregados em Padarias do Brasil com o objetivo de auxílio mútuo (em casos de acidente, morte ou doença) que reuniu mais de mil associados, publicou o jornal O panificador, além de organizar uma biblioteca e um centro de educação, e lutar pelo descanso dominical e jornada de 8 horas de trabalho.112

Ferroviários, cocheiros, charuteiros, tipógrafos e até o Círculo Operário Italiano formaram uma rede de solidariedade antes da abolição da escravatura e atuaram no sentido de libertar os escravos inclusive por meio da compra da alforria de trabalhadores escravizados113. No entanto, as relações entre os trabalhadores não estava fundamentada somente no sentimento de solidariedade.

De acordo com Sheldon Maran, o negro foi identificado pelas classes dominantes como mau trabalhador, enquanto que o imigrante um instrumento para alavancar a transição para a ordem capitalista.114 O operário brasileiro, marginalizado nas profissões subalternas e não qualificadas, não possuía uma tradição de classe no qual pudesse basear-se. Ressentia-se do sentimento de superioridade cultural associado ao discurso racial da parte do imigrante. Por sua vez, os imigrantes militantes ressentiam-se dos brasileiros, por estarem prestes a melhorar de vida substituindo-os durante as greves.115

Nesse contexto, de divisões étnicas que também colaborou com divisões no meio da classe trabalhadora, acrescenta-se a competição da força de trabalho no mercado capitalista, que colocou algumas vezes até a solidariedade nacional dos imigrantes em segundo lugar,116 e foi aumentada pela existência de uma significativa parcela da

população que estava fora do mercado de trabalho, além dos que não estavam por opção. Aqueles que se encontravam excluídos deste mercado, como os ambulantes, vendedores de jogo do bicho, jogadores profissionais, mendigos, biscateiros,

111 DUARTE, 2002, apud, MATOS, Marcelo B. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. 1ª Ed. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2009, p. 15.

112 MATOS, op. cit. p.15. 113 Ibid. p. 19.

114Isso não pode ser generalizado. Tal visão discriminatória não compunha a visão da totalidade da elite da época. Havia os que pensavam a “integração” do negro após a abolição, como acontecia no movimento abolicionista . Cf. AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites - século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

115 MARAN, Sheldon. Anarquistas, Imigrantes e o Movimento Operário Brasileiro, 1890-1920. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979, p.30

ladrões, prostitutas, representam um grau de complexidade social que deve ser avaliado no conjunto das relações sociais. Eles não participavam de greves gerais e nem reivindicavam, por exemplo, o direito de redução da jornada de trabalho por meio deste instrumento de luta da classe trabalhadora117.

Governos hostis, fura-greves, espiões, listas negras de funcionários, divisões étnicas e excluídos do mercado de trabalho. Tudo isto contribuía, de uma forma ou de outra, para diminuir o alcance a voz dos trabalhadores urbanos das fábricas, além é claro do fato de a maior parte da população e da força de trabalho estar localizada no meio rural durante a maior parte do século XX.

A análise da origem da classe trabalhadora organizada é importante para identificarmos o papel desempenhado pelos conflitos urbanos no contexto em que o café despontava como símbolo de riqueza. Os interesses ligados à expansão da produção cafeeira foram hegemônicos, até a Revolução de 1930, quando a perspectiva de industrializar o Brasil com vistas à superação da dependência econômica entrou na ordem do dia.

Nas fábricas, diversas correntes doutrinárias disputaram “a fala” da classe trabalhadora. Desde 1906, ano do I Congresso Operário, até 1920 preponderou a corrente doutrinária anarquista que esteve à frente dos operários urbanos e atingiu seu auge em 1919, em contexto de guerra mundial e de aumento do custo de vida para os trabalhadores. O anarco-sindicalismo francês, vertente que admitia a existência de uma estrutura burocrática em oposição ao dogma que a recusava, foi a corrente que mais se adaptou aos interesses da classe trabalhadora brasileira. As primeiras greves e movimentações dos trabalhadores foram custeadas com livres contribuições enquanto que posteriormente passaram, como os sindicatos ‘burgueses’, a realizar eventos festivos, a cobrar taxas obrigatórias e fundos de greves.118

Os anarquistas postulavam a necessidade do fim da propriedade privada e a existência de uma sociedade livre da exploração humana e da competição. Acreditavam que a revolução faria com que a solidariedade tornar-se-ia o padrão de

117 Ibid. p. 62.

comportamento. Aí estava o desafio fundamental dessa teoria. Como a revolução faria isso? Como a revolução acabaria com a competição individualista?119

A ação direta – greves, boicotes, sabotagem, entre outras ações que aceitavam a utilização da violência – foi uma tática utilizada pelos anarquistas. A pregação da violência também foi levada a cabo pelo anarcossindicalismo, o que o distinguia das outras formas de sindicalismo das primeiras décadas do regime republicano no Brasil.120 Embora houvesse a pregação da ausência de líderes pode-se observar a

existência personagens de destaques com caráter de liderança, e a ideia de uma comunidade humana fundamentada em valores éticos universais, a pátria dos anarquistas, permanece como um não-lugar, como uma teoria que não se verifica na prática.121 Apesar de muitas condutas pautarem seu agir na solidariedade, as ações dentro meio operário não eram orientadas exclusivamente por esse princípio.

A postura libertária entrava em choque com a necessidade de organização da classe trabalhadora em situações como a contratação de pessoal. Inicialmente, em 1906, por exemplo, os anarquistas se opuseram a medidas que obrigavam o trabalhador a sindicalizar-se. Entretanto, em 1909 percebe-se pressão de sindicatos da construção civil sobre empreiteiros para contratar somente sindicalizados, como forma de se evitar a presença de fura-greves entre os trabalhadores.122

Entre as reivindicações dos trabalhadores das gráficas cariocas, em 1917, vemos, em documento do sindicato, no primeiro artigo, o seguinte “1.º - Nas oficinas, não serão admitidos empregados que não sejam sócios da Associação.”123 A defesa

disto, que Fausto chama de closed shop, relaciona-se a uma visão do sindicato como regulador da oferta da força de trabalho. Isso destoa da teoria anarquista quando esta prevê a aceitação da existência da estrutura do sindicato como meio de propagação do ideal libertário e da greve geral, por meio da qual aconteceria a revolução e, segundo acreditavam, o padrão competitivo de comportamento seria substituído pela solidariedade em uma sociedade livre.

119 Ibidem. P. 76

120 Ibidem. p. 79

121 GOMES, 1994, p. 87. 122 MARAM, 1979, p. 81

123 RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e cultura social. Rio de Janeiro, 1972, p.189 apud FAUSTO, Boris. Trabalho Urbano e Conflito social, São Paulo: Difel, 1983, p. 75

Aqui, essa tática, o closed shop, aproxima-se mais do modelo corporativo de sindicato varguista ou até mesmo das corporações de ofício medievais, que resguardavam o controle da oferta de trabalho, do que da teoria revolucionária anarquista124. As condições sociais e a conjuntura nacional levaram as lideranças

anarquistas que dispunham de jornais e que atuavam ativamente na mobilização operária a perseguir uma legislação reformista da mesma forma que seus adversários na disputa pelos sindicatos e associações de classe.125 Chegaram a apoiar a revolta dos tenentes e aceitar apoio do deputado reformista Maurício de Lacerda.126

O anarquismo considerava a sociedade burguesa corrupta, repressiva e não desejosa de efetuar as mudanças fundamentais em favor da classe trabalhadora. Era mais pertinente à realidade brasileira que as filosofias do socialismo moderado e de outros sindicalismos reformistas. Estes últimos pregavam a reforma através de alguma espécie de acomodação com o sistema. Mas em uma nação onde os resultados das disputas eleitorais eram quase invariavelmente determinados a priori pelos oligarcas do Estado, qualquer esforço para influenciar políticos e eleger candidatos favoráveis à classe trabalhadora estaria destinado ao fracasso. As greves lideradas pelos reformistas e anarquistas sempre ocasionaram uma reação repressiva do governo e da polícia, apesar dos esforços feitos pelos reformistas para conquistar o apoio de elementos da burguesia.

Os anarquistas ofereciam algo mais: militantes inteiramente dedicados aos trabalhadores, testemunhas da deserção de muitos líderes reformistas oriundos da classe média ao primeiro sinal de que a causa lhes seria desvantajosa. E viram muitos moderados encerrar suas carreiras de ativistas ao ascender para outra classe social. Sabiam, entretanto, que, com raras exceções, os anarquistas militantes eram em sua grande maioria trabalhadores e que se haviam comprometido a dedicar suas vidas à causa da classe operária. Eram homem com um ideal e uma missão, com quem se podia contar mesmo nas menores causas, nas circunstâncias mais difíceis, não importando os riscos pessoais que tivessem de enfrentar.127

Observamos que o diferencial dos anarquistas estava na atitude deles diante da questão social, na perseverança e firmeza diante da repressão que podia ser esperada. A ideia de uma legislação social que amparasse o trabalhador era consenso entre anarquistas e reformistas, além de fazer parte também do discurso positivista.

Com a chegada da década de 1920 os revolucionários comunistas, ligados à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), passam a desfrutar do controle da “fala operária”, organizando e doutrinando a classe trabalhadora por meio do

124 FAUSTO, 1983, p. 75. 125 MARAN,1979, p. 42. 126 Ibid. p.83.

disciplinado Partido Comunista e dos sindicatos, também entendidos como meio de propagação da revolução que levaria à instalação da ditadura do proletariado no Brasil. Se nos primeiros momentos da organização dos trabalhadores urbanos anarquistas e bolchevistas dividiram espaços, após a perseguição empreendida aos anarquistas pelo poder soviético com fuzilamentos, ambos seguiram caminhos distintos, em rota de colisão. O jornal A Plebe e a revista Movimento Comunista defendiam o programa bolchevique e empreendiam críticas aos métodos anarquistas.

O declínio do sindicalismo revolucionário talvez tenha ocorrido não em função de sua irrelevância, mas em função do surgimento do Marxismo e de seu bem sucedido modelo revolucionário. Depois da Revolução de outubro, os organizadores marxistas já podiam receber o amparo psicológico e material de uma nação revolucionária. Os anarquistas não tiveram esse privilégio.128

Os anarquistas deixaram de ser representados como os porta-vozes da classe operária. Nesse mesmo período as organizações comunistas ganharam espaços nos sindicatos e com suas publicações promoveram a doutrina do Partido Comunista junto às bases, formadas pelos operários urbanos que viviam excluídos da participação nas riquezas socialmente produzidas. Dividiram espaço com os tenentistas que a partir da década de 1920 perceberam significativo reconhecimento social.

1.3 Emergência das massas e relações sócio-políticas no contexto