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10 MEDIDA POR MEDIDA: DE SHAKESPEARE A BRECHT

10.3 RICO SE DÁ COM RICO

Como em Medida por medida, Brecht também lançará mão da inversão de papéis, do travestimento de personagens que se fazem passar por outros. Inversão cujo efeito é surpreendente, pois, por esse meio, Brecht mostra a inversão de propósitos, inversão de valores “O arrendador briga com o seu patrão./ Um tem direitos, o outro tem razão” (p. 133), inversão de toda situação e das idéias que se apresentavam “Txuxe supera o Txixe e a injustiça a razão! / Pobre morre pro rico e empregado pro patrão.” (p. 134). Os equívocos inerentes aos pactos, às trocas de papéis de Callas, que, pela isenção de dois anos de arrendamento, aceita passar-se pelo Senhor de Guzman e ser enforcado; e de Nana que aceita passar-se por Isabella, são transformados em álibis pelo Vice-Rei, quando esse retorna e reassume o poder, revelando, então, a astúcia de um discurso muito hábil na construção de argumentos que só servem aos interesses dos poderosos, e não passam de representações ideológicas.

O VICE-REI – Conheço o caso.

Permita, senhor Iberin, que eu Mostre os peixes que caíram na rede Cuja malha você tanto apertou. Ouvi dizer que condenou um rico À morte por ter pego a filha De um pobre. Ele será enforcado. É txixe e não pode cometer erros. É aquele ali o tal do txixe rico? O INSPETOR –

É o latifundiário txixe, Excelência! O VICE-REI –

Não estou certo. Ele usa tamancos? Com certa dúvida ergo o seu capuz Mas a dúvida é pouca.

Ele quer tirar o capuz do homem, mas ele o segura. [...]

MISSENA –

É o arrendatário txuxe! O VICE-REI –

O ARRENDATÁRIO CALLAS –

Eu teria isenção do arrendamento por dois anos se ficasse no lugar dele. E me disseram que um latifundiário jamais seria enforcado! O VICE-REI –

Eu temo, amigo, que não lhe mentiram! Tragam aquele que ele substituiu! O inspetor sai.

IBERIN para Callas – O quê? Por uns pesinhos

Você se entrega à forca, vagabundo? O ARRENDATÁRIO CALLAS –

Não, por dois anos de arrendamento. (p. 139, 140).

Os latifundiários ricos, ao pensarem que Isabella de Guzman, uma txixe, mas que “pertence à nata deste país”, entregara-se ao comandante para salvar seu irmão e ainda por cima fora violentada pelos soldados, ficam horrorizados e exigem punição dos culpados. Contudo ao saberem da troca de papéis, que Nana é quem fora ao encontro do comandante, em lugar de Isabella, poupando-a da humilhação, da agressão física e moral – “Caem na gargalhada”, afinal Nana é uma mulher do povo:

OS LATIFUNDIÁRIOS RICOS – [...]

Que piada! Você conseguiu Iberin! Essa é a corja que você exaltou. Aí a honra só existe nos trapos” E veja o que ele faz de toda a honra! Por alguns pesos ela vai e entrega Seu corpo txuxe, que seja pelo agressor! Diga que foi a filha do camponês. Foi só a filha do camponês. Mas Aos seu aliados, que foi só uma txixe! Ao pai entregue mais uma vez Sua filha! É ela, arrendatário! Você não vai acreditar! (p. 141).

A comicidade presente na construção dessa cena é obtida por uma engenharia metateatral precisa na demonstração da teatralidade do real: são artifícios a revelarem artifícios.

O VICE-REI – Agora basta!

Sim, ela é sua filha e assim é que está Certo. Mas as cabeças são redondas – Trazem de Guzman. Sua irmã está a seu lado. E agora só vêm os verdadeiros txixes.

Por que, de Guzman, o libertarei? Porque o seu arrendatário deseja Tão pouco que você seja enforcado Que prefere fazê-lo em seu lugar. Além disso também vou libertá-lo Porque a filha do camponês prefere Se entregar a vê-lo enforcado, por Você ser tão querido, eu o absolvo. (p. 141, 142).

Brecht utiliza os recursos do discurso opressor, sua sutil ironia, sua astúcia e engenhosidade, sua hipocrisia implícita, radicalizando-os na encenação de suas disparidades, apanhando-os, dessa forma, na raiz de seu raciocínio. A comicidade da cena em que esse raciocínio se formula demonstra sua total falta de sustentação, pois toda essa situação está calcada em equívocos: os fatos, os impasses, o discurso que os engendra e o que os interpreta nascem de equívocos e se encerram em equívocos; a única pretensão do arrendatário é livrar-se do pagamento do aluguel, “dois anos de isenção de arrendamento. Talvez por isso eu me enforque” (p. 133); sua alienação, como já discutimos, não permite que reivindique ou discuta aquilo que conferiria condições dignas de vida e de trabalho para ele e para sua família, ainda porque não conhece outras possibilidades e assim não as reconhece como tais. Dessa forma, Brecht revela o jogo e ao mesmo tempo o perigo desse jogo tão bem articulado:

O VICE –REI – [...]

Também o camponês deve ser solto

Para pagar o arrendamento. Para Callas – Callas Meu querido! Não vá dar mau exemplo!

E ainda há mais para pagar, amigo. A repressão aos ladrões de cavalos Quem irá pagar, se não for você? Soltem o camponês e o Senhor!

A mesma sentença para os dois! Livres! Vida para os dois! [...]

[...]

O ARRENDATÁRIO CALLAS –

E como fica a isenção do arrendamento, nada? O VICE –REI –

Não, amigo!

Um contrato desses é imoral e não tem valor. [...]

O INSPETOR –

Vossa excelência queirais desculpar, mas os arrendatários da Foice condenados à morte aguardam a execução. Agora é para soltá-los também?

[...]

O VICE –REI –

Esta foi a decisão do Iberin. Devem ser enforcados, nãoé isso? E leve a sopa ao meu querido Callas! (p. 142).

Ao final, o verdadeiro inimigo não está mais entre o povo de Jahoo como se fez pensar, mas sim no exterior, são os cabeças quadradas e, agora, para derrotá-los, cabeças redondas e pontudas deverão se unir.

O VICE-REI –

Arrendatário, quase me esqueci Eu sei que você é pobre. Escute: Eu voltei, mas não de mãos abanando Trouxe comigo algo para você. Seu chapéu está furado, tome o meu! E você não tem capa, tome a minha!

Coloca seu capacete na cabeça dele e veste-o com sua capa de soldado.

Que diz disso? Claro que hoje e amanhã Ainda prefiro vê-lo na sua terra.

Eu chamo se precisar de você

E pode ser logo. – Iberin, o senhor deu O primeiro passo, mas é preciso mais. O império que ergueram nessas semanas Murchará se não for logo ampliado. Pois não sabem, no sul além mar Habita nosso inimigo mortal

Cujos súditos têm cabeças quadradas E que aqui ainda são desconhecidos. Percebo que transmiti-lo à sua calaçaria Será agora sua tarefa, senhor Iberin. Pois agora se aproxima uma guerra De uma violência nunca vista e todo Homem saudável será necessário. Bem amigos, vamos comer agora! A mesa do juiz, onde julgamos Tanta gente, serve para comermos. Camponês, espere que eu mando a sopa.

O ARRENDATÁRIO CALLAS para Nana – Você ouviu que eles querem fazer uma guerra?

Trazem a mesa já posta. O Vice-Rei, Missena, Isabella e os Latifundiários ricos dirigem-se a ela.

O VICE-REI distribui a sopa com uma concha grande – Primeiro o camponês, não é Iberin?

Temos que alimentá-lo: é um soldado. Dois pratos. Quer mais? Estamos com fome. [...]

O Hua traz a sopa para Callas e sua filha (p. 144).