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O TEATRO DO MUNDO E O MUNDO NO TEATRO

10 MEDIDA POR MEDIDA: DE SHAKESPEARE A BRECHT

10.1 O TEATRO DO MUNDO E O MUNDO NO TEATRO

Além de alterar o conteúdo da sua adaptação, Brecht transforma a peça em uma parábola. Assim, temos, em conformidade com a configuração do gênero, um prólogo no qual a problemática é formulada, enunciada pelo diretor de teatro, que se apresenta ao público:

PRÓLOGO

Diante da pequena cortina surgem sete atores: o Diretor do teatro, o Governador, o Arrendatário Rebelde, o Latifundiário, sua irmâ, o Arrendatário Callas e sua filha. Os quatro últimos vestem camisa. O Governador em seu traje, mas sem máscara, carrega uma balança com dois crânios pontudos e dois redondos; o arrendatário Rebelde carrega uma balança com duas roupas finas e duas em trapos; ele também está trajado, mas sem máscara.

DIRETOR DE TEATRO – [...]

Por toda a parte o nosso autor era interrogado Se a diferença dos crânios não o deixava irritado Ou se não percebia diferença alguma.

Dizia então: não vejo diferença nenhuma. Mas eu vejo sim uma desigualdade Muito maior que dos crânios somente Que deixa marca mais evidente Que decide entre dor e felicidade. E sem apontá-la logo não fico: É a diferença entre pobre e rico. Penso que é melhor que aqui fiquemos Vejam a parábola que escrevemos Nela eu mostro a qualquer um Que é esse o ponto e mais nenhum. (BRECHT, 1992, p. 15, 16).

Não há como deixar de apontar as semelhanças entre a parábola teatral brechtiana e a de Calderón, O grande teatro do mundo, que, como já dissemos, muito influenciou Brecht no uso dos recursos épicos, dos recursos didáticos, da metateatralidade. Ambos levam o mundo para o teatro, o espetáculo dentro do espetáculo “então mostremos bastidores e tablado / e o mundo na parábola será mostrado! Esperamos aos senhores poder mostrar / com que diferenças se pode contar.” (Os cabeças redondas e os cabeças pontudas, p. 18). Também

em Brecht, os atores são chamados pelo diretor diante do público para receberem os adereços cênicos e assim representarem um papel:

Essa parábola, meus caros, será agora encenada. Do baú

Tiramos e construímos em nosso palco um país de nome Jahoo.

Nele o entregador seus crânios entregará E para alguns o destino mais rápido chegará. (p. 16).

As roupas serão distribuídas “de acordo com a fortuna que cada um possuir” assim se fará “a distinção entre quem tem pouco e quem tem um montão” e será essa distinção a responsável pelo “destino” imposto à personagem, seu julgamento se processará de acordo com suas posses, julgamento feito pelos homens segundo as leis construídas por alguns desses homens.

O DIRETOR apresentando o Arrendatário Rebelde – Mostra agora, distribuidor de vestes, as roupas Que em tua balança carregas

E que aos homens ainda no berço tu entregas. ARRENDATÁRIO REBELDE mostra sua balança – Acho que ver a diferença não é difícil

Esta é a boa e esta é a surrada. Acho que negar isso não leva a nada. Quem com esta vai trajado

Quase nunca será tratado

Como aquele que com esta desfila. Isso se sabe na cidade e na vila. Quem com a minha balança pesar Saberá na mão de quem o bolo vai parar. Baixa com o dedo o prato com as roupas finas. (p. 17).

Em O grande teatro do mundo, será pelo acordo entre representação e indumentária que cabe a cada um, que os atores, personagens do mundo como teatro, como ilusão, serão julgados. Toda atuação está subordinada aos desígnios do Autor, e por ele tal atuação será julgada. A indumentária, como instrumento do destino, é maior que a personagem, que deve se adequar,

adequar sua representação a ela, não terá direito de mudar seu destino no mundo, não há qualquer possibilidade de transcendê-lo.

Em Brecht, essa posição se inverte, temos o teatro como mundo, um teatro de homens que encenam o mundo dos homens e é neste mundo que as possibilidades devem ser buscadas, o público deverá observar que a história (mundo) nas suas relações fundantes pode ser alterada não pela atuação de um líder ou pelo reverso do destino, mas pela atuação dos homens, no trato dessas relações. É claro que estas relações, uma vez no teatro ou no texto teatral pertencem ao mundo ficcional, o que Brecht faz é transfigurar sua concepção de mundo/homem e de teatro/mundo. E esse processo é trazido à discussão, a um enfrentamento com o seu tempo, com a história e com o devir, quando, numa postura altamente irônica, Brecht utiliza-se da auto- referencialidade:

O ARRENDATÁRIO pegando duas cabeças redondas – Ficamos com a redonda, minha filha.

O LATIFUNDIÁRIO – Nós usaremos a pontuda. A IRMÃ DO LATIFUNDIÁRIO – Por vontade do Sr. Bertolt Brecht... A FILHA DO ARRENDATÁRIO – Filha de redonda, redonda é. Sou redonda do sexo feminino. O DIRETOR –

Aqui está o figurino

Os atores escolhem suas roupas. O LATIFUNDIÁRIO –

Eu faço o latifundiário. O ARRENDATÁRIO – Eu o arrendatário, que mau. A IRMÃ DO LATIFUNDIÁRIO – A irmã do latifundiário eu. A FILHA DO ARRENDATÁRIO – E eu a horizontal.

O DIRETOR –

OS ATORES – Sim.

(p. 18).

Brecht leva às últimas conseqüências a dinâmica da teatralidade, suas possibilidades. E então podemos retomar as idéias de Pavis (1999) sobre a parábola teatral, citadas anteriormente, e dizer que o teatrólogo alemão não a usa como um simples disfarce de uma mensagem unívoca, mas ele confere a ela autonomia e, assim, sua parábola significa por si própria, nunca é traduzível em uma lição, mas presta-se “ao jogo da significância e aos reflexos da teatralidade”. O caráter dessa auto-citação será apreendido somente se entrarmos no jogo que se configura, jogo entre a representação do real e o real como representação teatral, entre mundo e arte. Somente assim será possível apreender a intencionalidade dessa intromissão que aprofunda o caráter do artifício no artifício em sua dialeticidade: ao citá-lo, como o autor da peça que será encenada dentro da peça que se está encenando, a atriz/personagem mostra estar no teatro, mas não em qualquer teatro, um teatro com exigências específicas, que requer um espectador inteligente, atento, disposto a interagir nesse jogo da teatralidade de que nos fala Pavis. Ao mesmo tempo que o autor, “o senhor Bertolt Brecht”, se presentifica, ao ser nomeado, ele está ausente, Brecht é citado no discurso do outro, e como “outro” passa a significar. Brecht é aquele que assume uma posição, aquele que interfere no mundo produzindo artifícios. Mas, em Brecht, arte e artista estão sujeitos, ambos às mesmas condições históricas “quem o escreveu é um homem viajado / (a propósito, nem sempre viajava voluntário)” (p. 15). Sua voz vem somar-se, na dinâmica instaurada, a vozes de homens de outros tempos, Shakespeare, Calderón de la Barca, Swift, vozes de seu tempo e espaço, vozes do nosso próprio tempo.

A partir disso compreendemos o porquê do gosto e do uso intenso e intencional da parábola por Brecht, e as palavras de Umberto Eco podem complementar o nosso raciocínio quando o crítico caracteriza o teatro brechtiano não como um teatro dos significados, das soluções, mas como um

teatro dos significantes, construindo o mundo como um objeto que deve ser decifrado:

No momento mesmo em que ligava este teatro da significação a um pensamento político, Brecht, se o podemos dizer, afirmava o sentido, mas não o completava. Certamente, seu teatro é mais francamente ideológico do que muitos outros: toma posição quanto à natureza, ao trabalho, ao racismo, ao fascismo, à história, à guerra, à alienação; entretanto, é um teatro da consciência não da ação, do problema, não da resposta; como toda linguagem literária, serve para formular, não para fazer; todas as peças de Brecht terminam implicitamente por um Procure a solução endereçado ao espectador em nome dessa decifração a que a materialidade do espetáculo deve conduzir... o papel do sistema, aqui, não é transmitir uma mensagem positiva (não é um teatro dos significados), mas fazer compreender que o mundo é um objeto que deve ser decifrado (é um teatro dos significantes). (ECO, 1971, p. 27).

Em Brecht, toda a maquinaria teatral é exposta ao público, a montagem é feita diante dele que deve estar todo o tempo consciente de que está num teatro. Os atores vestem-se diante do espectador para mostrar que as alegorias são, sim, alegorias, mas as usarão para demonstrar como agem os homens e como se relacionam estes homens mostrados.