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P RINCÍPIO DA D IGNIDADE H UMANA

3.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O DIREITO DE FAMÍLIA

3.2.6 P RINCÍPIO DA D IGNIDADE H UMANA

O Princípio da Dignidade Humana é um super princípio, e pode ser considerado o núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional a partir de 1988.

Nos termos do magistério de Flávio Martins Alves Nunes o referido princípio “[…] trata-se da fonte de todos os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Se o ser humano é titular de direitos e garantias, é porque deve ser tratado dignamente”.162

Até o final do século XVIII, a dignidade não estava relacionada com os direitos humanos, tendo sido Immanuel Kant o precursor de uma compreensão mais profunda do tema, pois relacionou o homem com a dignidade, exprimindo a dificuldade de enxergar o homem sem dignidade.

O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim.163

161 GAGLIANO, Pablo Stolze, PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Direito de

Família: as famílias em perspectiva constitucional. 6. ed. ver. e atual de acordo com novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 6, p. 102.

162 MARTINS, Flávio. Curso de direitos constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p.

499.

163 KANT, Immanuel. Fundamentações da Metafísica dos Costumes. Tradução Paulo Quintelha.

Immanuel Kant completa seu raciocínio ao afirmar que quando uma coisa tem preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade164.

Na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a dignidade estava entrelaçada com ocupações públicas na cultura ocidental, começando com os romanos e chegando até o século XVIII. O primeiro sentido atribuído à dignidade, enquanto categorização dos indivíduos estava associado a um

status superior, uma posição ou classificação social mais alta, como leciona Luís

Alberto Barroso:

Dignitas era um conceito associado ao status pessoal de alguns

indivíduos ou a proeminência de determinadas instituições. Como status pessoal, a dignidade representava a posição política ou social derivada primeiramente da titularidade de determinadas funções públicas, assim como a pessoa do soberano, a coroa ou o Estado, em referência à soberania dos poderes.165

A dignidade humana como é atualmente compreendida, se assenta sobre o pressuposto de que cada ser humano possui um valor intrínseco e desfruta de uma posição social no universo. O longo desenvolvimento da compreensão contemporânea de dignidade humana teve início com o pensamento clássico e tem como marcos a tradição judaico-cristã, o Iluminismo e o período imediatamente posterior ao fim da Segunda Guerra Mundial.166

Foi na segunda década do século XX que a dignidade humana começou a surgir nos documentos jurídicos, iniciando com a Constituição do México (1917) e posteriormente com a Constituição Alemã da República de Weimar (1919). Após a Segunda Guerra Mundial, a dignidade foi introduzida em importantes documentos internacionais, como a Carta das Nações Unidas no ano de 1945, Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, dentre outros tantos tratados e pactos que têm o condão de resguardar os direitos humanos.

164 Ibid., p. 77.

165 BARROSO, Luís Alberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. A construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. 3. reimp.

Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 13.

Luís Alberto Barroso ensina que a ascensão da dignidade como um conceito jurídico teve suas origens mais diretas no Direito Constitucional Alemão ao narrar que:

De fato a lei Fundamental de 1949 dispõe no art. I (1): A dignidade humana deve ser inviolável. Respeitá-la e protegê-la será dever de toda autoridade estatal. Essa disposição é seguida pelo art. II (1), que anuncia a ideia correlata que tem se tornado central na jurisprudência alemã. Baseado nessas disposições, o Tribunal alemão e os juristas alemães desenvolveram uma jurisprudência e um arcabouço teórico que influenciam decisões judiciais e escritos doutrinários por todo o mundo.167

A partir do século XX, há a aceitação da superioridade normativa da Constituição. Passa-se, dessa forma, do Estado de Direito para o Estado Constitucional168. Paralelamente a essa concepção, foi também se desencadeando outro processo, vinculado à emergência do Estado Social, consistente na redefinição dos papéis da Constituição: se, no Estado Liberal, ela se cingia a organizar o Estado e a garantir direitos individuais, dentro do novo paradigma, ela passa também a consagrar direitos sociais e econômicos e a apontar caminhos, metas e objetivos a serem perseguidos pelos Poderes Públicos no afã de transformar a sociedade.169

A dignidade humana, no plano internacional, é descrita com a costumeira precisão pelo professor André de Carvalho Ramos:

No plano internacional, a Declaração Universal de Direitos Humanos estabelece, já no seu preâmbulo, a necessidade de proteção da

dignidade humana por meio da proclamação dos direitos elencados

naquele diploma, estabelecendo, em seu art. 1º, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direitos”. Os dois Pactos Internacionais (sobre direitos civis e políticos e o sobre direitos sociais, econômicos e culturais) da Organização das Nações Unidas têm idêntico reconhecimento, no preâmbulo, da “dignidade inerente a todos os membros da família humana”. A Convenção Americana de Direitos Humanos exige o respeito devido à “dignidade inerente ao ser humano” (art. 5º). Já Convenção Europeia de Direitos Humanos, em que pese não possuir tal menção à dignidade humana, foi já interpretada pela Corte Europeia de Direitos Humanos no sentido de que a “dignidade e a liberdade do homem são a essência

167 BARROSO, Luís Alberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. A construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. 3. reimp.

Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 21.

168 SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos paradigmas liberal, social e pós-social e sua incidência sobre as relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 71.

da própria Convenção”. No plano comunitário europeu, a situação não é diferente. Simbolicamente, a dignidade humana está prevista no art. 1º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000 (atualizada em 2007), que determina que a dignidade do ser humano é inviolável, devendo ser respeitada e protegida.170

Para Zulmar Fachin, o princípio da dignidade da pessoa humana é o valor fundante do Estado brasileiro e serve de inspiração para atuação de todos os demais poderes, a saber:

A dignidade da pessoa humana é o valor fundante do Estado brasileiro (art. 1°, inciso III) e inspirador da atuação de todos os poderes do Estado e do agir de cada pessoa. Tal valor está presente, de modo expresso e implícito, em todas as partes da Constituição. Um exemplo bastante claro pode ser encontrado no campo do Direito de Família: o planejamento familiar, livre decisão do casal, deve estar fundado no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 226, §7°). Trata-se de um valor nuclear do ordenamento jurídico brasileiro. Não por acaso, está localizado no pórtico da Constituição, evidenciando desde logo, o conteúdo axiológico que a permeia.171

Valoroso é o magistério de Uadi Lammêgo Bulos acerca do primado da dignidade da pessoa humana na ordem constitucional de 1988:

Princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, IlI) - este vetor agrega em torno de si a unanimidade dos direitos e garantias fundamentais do homem, expressos na Constituição de 1988. Quando o Texto Maior proclama a dignidade da pessoa humana, está consagrando um imperativo de justiça social, um valor constitucional supremo. Por isso, o primado consubstancia o espaço de integridade moral do ser humano, independentemente de credo, raça, cor, origem ou status social. O conteúdo do vetor é amplo e pujante, envolvendo valores espirituais (liberdade de ser, pensar e criar etc.) e materiais (renda mínima, saúde, alimentação, lazer, moradia, educação etc.). Seu acatamento representa a vitória contra a intolerância, o preconceito, a exclusão social, a ignorância e a opressão. 172

A dignidade humana reflete, portanto, um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio do homem. Seu conteúdo jurídico interliga-se às liberdades públicas, em sentido amplo, abarcando aspectos individuais, coletivos, políticos e sociais do direito à vida, dos direitos pessoais tradicionais, dos direitos

170 RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 75. 171 FACHIN, Zulmar. Curso de direito constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 203. 172 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 8. ed. rev. e atual. de acordo com a

metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), dos direitos econômicos, dos direitos educacionais, dos direitos culturais etc.173

A dignidade humana protege os bens imateriais, sem os quais o homem não subsistiria, e sua força jurídica começa a espargir efeitos desde o ventre materno, perdurando até a morte, sendo inata ao homem. O caráter do princípio propicia o acesso à justiça de quem se sentir prejudicado pela sua inobservância. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça têm reconhecido a importância da dignidade humana174.

O sistema constitucional fomenta a existência digna, conforme se pode depreender da ordem econômica (artigo 170); da dignidade à criança, ao adolescente e ao jovem (artigo 227) e à pessoa idosa (artigo 230).

Em relação aos elementos caracterizadores da dignidade humana, bem como dos deveres impostos ao Estado para a sua proteção, conforme ensina André de Carvalho Ramos:

Há dois elementos que caracterizam a dignidade humana: o elemento positivo e o elemento negativo. O elemento negativo consiste na proibição de se impor tratamento ofensivo, degradante ou ainda discriminação odiosa a um ser humano. Por isso, a própria Constituição dispõe que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III) e ainda determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI). Já o elemento positivo do conceito de dignidade humana consiste na defesa da existência de condições materiais mínimas de sobrevivência a cada ser humano. Nesse sentido, a Constituição estabelece que a nossa ordem econômica tem “por fim assegurar a todos existência digna” (art. 170,

caput).

[…]

Existem dois deveres impostos ao Estado para proteger a dignidade humana. O dever de respeito que consiste na imposição de limites à ação estatal, ou seja, é a dignidade um limite para a ação dos poderes públicos. Há também o dever de garantia, que consiste no conjunto de ações de promoção da dignidade humana por meio do fornecimento de condições materiais ideais para seu florescimento.175

Acerca do respeito à dignidade da pessoa humana, precioso é o magistério de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco:

173 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 8. ed. rev. e atual. de acordo com a

Emenda Constitucional n. 76/2013. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 512.

174 Ibid., loc. cit.

Respeita-se a dignidade da pessoa quando o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar de igualdade de direitos com os seus semelhantes. Há o desrespeito ao princípio, quando a pessoa é reduzida à singela condição de objeto, apenas como meio para a satisfação de algum interesse imediato.176

Acerca dos direitos radicados no princípio da dignidade da pessoa humana e do caráter deste como critério material de identificação de direitos fundamentais, seguem os ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet:

[…] não há como negar que os direitos à vida, bem como os direitos de liberdade e de igualdade correspondem diretamente às exigências mais elementares da dignidade da pessoa humana. Da mesma forma, os direitos políticos (de modo especial, o sufrágio, o voto e a possibilidade de concorrer a cargos públicos eletivos) são manifestações do princípio democrático e da soberania popular. Igualmente, percebe-se, desde logo, que boa parte dos direitos sociais radica tanto no princípio da dignidade da pessoa humana (saúde, educação, etc.), quanto nos princípios que, entre nós, consagram o Estado social de Direito.

À vista do exposto, percebe-se que dentre os princípios constitucionais, o princípio da dignidade assume especial relevância como critério material para identificação de direitos fundamentais, visto que, tratando-se de uma exigência da dignidade da pessoa humana, não se haverá de questionar a fundamentalidade.177

Para Capelo de Sousa, são características indissociáveis da dignidade humana a liberdade e a autonomia, como se depreende de sua doutrina:

É que, a dignidade da natureza de cada homem, enquanto sujeito pensante dotado de liberdade e capaz de responsabilidade, outorga- lhe autonomia não apenas física mas também moral, particularmente, na condução da sua vida, na auto-atribuição de fins a si mesmo, na eleição, criação e assunção da sua escala de valores, na prática dos seus actos, na reavaliação dos mesmo e na recondição do seu comportamento.178

Cabe salientar que a dignidade da pessoa humana tem como alvo o ser humano, sendo que este merece do Estado a proteção da sua identidade, integridade e dignidade, como bem pontua Cleide Fermentão:

176 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 12.

ed. São Paulo: Saraiva, 2017. (Série IDP), p. 243.

177 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 280.

178 SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral de personalidade. Coimbra:

A referência à dignidade da pessoa humana engloba em si os direitos fundamentais, os individuais clássicos e os de fundo econômico e social. A dignidade tem uma dimensão moral, dessa forma o constituinte estabeleceu que é de responsabilidade do Estado propiciar as condições necessárias para que as pessoas tenham vida digna. Assim, o Estado não pode deixar de proteger o ser humano, preservando a sua identidade, integridade e dignidade.179

Proteção essa para que o indivíduo seja sujeito da própria vida e “senhor de si”, entre outros senhores e si, sendo necessário apropriar-se de seu desejo. A dignidade humana pressupõe, entre outros requisitos, não se estar assujeitado ao desejo do outro.180

Ao verificar seus prolongamentos para o Direito de Família, pode-se dizer que cada indivíduo tem o direito de escolher o modelo familiar que lhe apraz, recebendo a proteção do Estado, e este, por sua vez, não deve interferir na escolha.

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