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O rio, o mar e as florestas: vestígios de uma geografia escrava e quilombola

MAPA 1: VILAS DE CAMAMU, MARAÚ E BARRA DO RIO DE CONTAS (XIX)

2.2 O rio, o mar e as florestas: vestígios de uma geografia escrava e quilombola

Num oficio enviado ao Presidente da Província, em 1835, o juiz de Maraú Manuel Pereira mencionava, dentre outras coisas, os rios Maraú e Piracanga como vias naturais de fuga de escravos, oriundos de diversas partes da Comarca de Ilhéus. Mas não foi só isso. Aproveitou a autoridade para explicitar os meios utilizados na efetivação das fugas: lanchas e canoas. Na manhã de 13 de março de 1834, fugitivos quilombolas foram acusados de ter invadido a fazenda de Antonio de Villas Boas e, na fuga utilizaram a lancha do lavrador José Pacífico de Jesus. Na documentação analisada, tanto do judiciário quanto do legislativo, as autoridades recorrentemente citavam, em suas correspondências, a presença do rio, mar e florestas como vias de fuga dos insurretos do Borrachudo. Esses elementos ecológicos, como se verá com mais detalhe no capítulo seguinte, serviram também para prover de alimentos não apenas o seguimento escravo como também os livres da Vila .

As terras ocupadas pelos mocambos Corisco, Sabura, Coronel, Santo Antônio do Bom Viver, Colégio Novo, Colégio Velho e Retiro Alegre se estendiam desde o distrito de Cachoeira até às margens do Rio de Contas.5 Registros de ocupações de grupos de escravos fugitivos, precedentes ao Borrachudo desvendam um território palco de diversas experiências quilombolas. Este histórico de ocupação pode ser explicado, em parte, pelo escasso povoamento dessa região e a presença de uma ecologia favorável aos fugitivos. Outras questões podem esclarecer ainda mais. Os quilombolas estavam inseridos num complexo territorial que fora designado, sobretudo, para a lavoura de mandioca, desde o período dos jesuítas do Colégio da Bahia. Aqui encontra-se uma conexão importante para se explicar o nome sugerido aos mocambos Colégio Novo e Colégio Velho.

5 Atualmente, esse território constitui boa parte da zona rural de Itacaré. Destacam-se as comunidades de

Toco Preto, Pancada Grande, Serra D’Água, Aldeia, Rua de Palha, Cajueiro e Pau Grande. Essas comunidades, algumas, inclusive, reconhecidas como quilombolas, vivem da produção de mandioca e outros produtos agrícolas escoados, através de canoas e barcos e, vendidos nas feiras da Comarca e do distrito de Itacaré, aos sábados e domingos.

A presença de escravos de diversas partes da Comarca nos mocambos do Borrachudo evidencia uma experiência escrava que extrapolava a jurisdição de Barra do Rio de Contas. E isto foi uma constante, se levados em consideração três episódios. Em 1806, escravos de Camamu, Maraú e Cairu compuseram o Quilombo do Oitizeiro, nas margens do rio de Contas; em 1824, a Câmara de Barra sinalizava para as autoridades da sede da Comarca e da capital da província, sobre a atuação de um bando de escravos fugitivos “oriundos de diversas partes da Comarca de Ilhéus (Norte e Sul”) (APEB, maço1254); em 1828, o juiz ordinário da vila de São Jorge dos Ilhéus, registrou a fuga de 34 escravos do Engenho de Santana e de outros escravos de Camamu, que, caminhavam em direção ao grande quilombo que se formou no interior das matas de Barra do Rio de Contas (CAMPOS, 2006). A sucessão de episódios desse tipo permite que se suponha um grau de envolvimento da escravatura local, decorrido da vivência comum do cativeiro. Deve-se salientar que o contingente escravo da Comarca estava, em sua maioria, envolvido na produção de alimentos, principalmente, a farinha de mandioca. Os momentos de escassez desse produto na capital da província, implicava numa carga horária extenuante de trabalho para os cativos do sul da Bahia.

Com efeito, no decorrer do tempo, delineou-se uma territorialidade negra, escrava e quilombola, também compartilhado por livres, que, por certo, acabou borrando as fronteiras político-administrativa da Comarca de Ilhéus. Isto se concretizou a partir da longa relação socioeconômica estabelecida pelas vilas, principalmente, àquelas constituídas por Camamu, Maraú e Barra do Rio de Contas. Dias (2007) baseando-se nos depoimentos do desembargador Navarro e do ouvidor Balthazar da Silva Lisboa, constatou o surgimento de uma rede urbana envolvendo a população das três freguesias. Diz o autor que

O porto de Camamu era a referência para o escoamento da produção das populações das freguesias de Camamu e Maraú. Da vila de Barra do Rio de Contas, por sua vez, seguia para Salvador a farinha e o arroz produzidos pelos lavradores das margens daquele rio. (DIAS, 2007, p, 340)

O trânsito de pessoas e mercadorias impulsionado pela dinâmica desses espaços econômicos favoreceu não apenas a mobilidade escrava como proporcionou construções de laços de solidariedade, familiar e comercial entre os cativos das Vilas supracitadas. Remetendo-se à realidade do Borrachudo verificou-se, no decorrer da leitura documental, uma dinâmica social entre seus habitantes e o universo citadino de

Ilhéus, provavelmente, decorrentes de práticas econômicas e relações sócio-afetivas estabelecidas naquela localidade. É ilustrativo o caso de Fortunato:

Havendo-se recolhido do Quilombo do Borrachudo (já pelo receio da entrada das Tropas) o escravo Fortunato, do Tenente Coronel Manuel Martins de Lima, e tendo-lhe eu requisitado a prestarmos para Guia da Expedição, a bem de salvá-la das armadilhas dispostas pelos negros (...) (APEB, Juízes, Barra do Rio de Contas, cx. 744, maço 2246)

Sabe-se que, o pedido feito pelo comandante das tropas, o alferes Sá, não foi atendido pelo ex-residente do Borrachudo. Mais quais seriam os motivos atrelados à desobediência do cativo, que, poderia naquela circunstância ganhar algumas vantagens, inclusive, a pena amenizada, ao denunciar seus ex-companheiros de vida quilombola? Desconhece-se como Fortunato conseguiu se sair das malhas do comandante, já que pesava sobre ele denúncias de crimes. As fontes, apesar de reticentes, apontam indiretamente o motivo iminente de tal recusa: questões econômicas. Presume-se que, Fortunato, juntamente com Bernardo, Victoriano, Ignácio, Mariano, Miguel, e a escrava Florinda, estes últimos, cativos de Ilhéus, fizessem uma ponte de ligação entre quilombolas e àqueles interessados em seus produtos. Em geral, assenzalados, quilombolas e libertos eram tanto consumidores quanto vendedores de produtos diversos. Não foi mencionado na documentação o que Fortunato mercadejava em Ilhéus, mas sabe-se que era “clandestino”. O que faz supor que fazia o comércio de utensílios roubados e/ou produzidos nos quilombos, tais como farinha de mandioca, frutas e verduras. Outra questão suscita-se a partir da experiência de Fortunato: onde, de fato, se realizava, em Ilhéus, esse comércio?

Elenca-se, de imediato, às feiras formadas no Termo da Vila de São Jorge dos Ilhéus. Nesses espaços, os escravos vendiam produtos agrícolas cultivados em suas roças, além de utensílios domésticos. Fortunato, assim como outros residentes do Borrachudo, provavelmente devem ter lançado mão desse expediente para fazer circular a produção. Contudo, as feiras não obedecem apenas a critérios econômicos. Nesses locais de sociabilidades, escravos e quilombolas encontravam-se com parentes e amigos, e assim, renovavam-se os laços de amizade e solidariedade, os quais eram acionados em momentos de extrema necessidade (MAHONY, 2001).

Não obstante as parcas evidências documentais, constatou-se vestígios dos espaços de vivências dos negros do Borrachudo. De fato, esta territorialidade que abarcou vilas e setores sociais diversos estava assentada nas experiências de trabalho

dos escravos e das relações econômicas estabelecidas entre as localidades de Barra do Rio de Contas, Maraú, Camamu e Ilhéus.