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Rios que correm paralelos: identidades e referências dos lugares

CAPÍTULO II. BELA LORENA E FORMOSO: ESPAÇOS E RECORDAÇÕES

2.1 A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO: LUGARES DE LEMBRANÇAS

2.1.1 Rios que correm paralelos: identidades e referências dos lugares

Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico [...]. Rio de meu amor é o Urucúia. O senhor verá um rebeirão que verte no Canabrava - o que verte no Taboca, o que verte no Rio Preto. O primeiro Preto do Paracatu [...]. Só Preto já molhei mão nuns dez. Verde, uns dez. Do Pacari, uns cinco. Da Ponte, muitos. Do Boi, ou da Vaca, também. E, uns sete por nome de Formoso, São Pedro, Tamboril,

Santa Catarina, uma porção. O Sertão é do tamanho do mundo.

(GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 89-90).

Figura 2.2. Placa indicativa do Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Foto: Zeneide, 2009.

Como se sabe, o São Francisco nasce em Minas Gerais, na Serra da Canastra, e ruma na direção Nordeste do País, atravessando vários estados brasileiros até o mar e para o Norte, segundo Paulo Bertran:

[...] avançando depois suas savanas pelo interminável centro do país, até esbarrar na Amazônia [...]. O sertão do São Francisco mineiro guarda as gradações de diversidade que constituem a alma mesmo do Cerrado, e que por isso mesmo entende-se muito mais como bioma do que como a fitofisionomia plural que é. (BERTRAN, 1999, p. 46).

Além do rio São Francisco – a grande referência espacial da geografia e da cultura da região – fazendo parte de sua bacia hidrográfica, outros três rios assinalam os lugares de histórias e memórias – rios Urucuia, Paracatu e rio Preto, ao longo dos quais também se formaram as cidades – principalmente São Romão, Unaí, Paracatu, Buritis e Arinos. Do mesmo modo, Januária, porto do “Velho Chico” é também referenciada para o campo desse estudo.

Outros três rios – Carinhanha, Formoso e Corrente – compõem os cenários e espaços que são objeto do olhar e do pensar sobre as narrativas em estudo. Fronteiriços e divisores de águas e terras, afluentes de bacias hidrográficas diferentes, demarcam e nomeiam os lugares que estão destacados no primeiro plano das rememorações. O rio Formoso apresenta-se de percurso menor, nasce no ponto de encontro da Trijunção, em território baiano, e morre ou se renomeia no seu curso até desaguar no São Francisco. O Corrente, nascendo nas confluências da Trijunção, em território goiano, toma o rumo norte, passa por Sítio d’Abadia e conduz suas águas pela bacia amazônica afora.

O Carinhanha, mais audacioso nasce mais distante da região trijuntora e seu curso serve de divisa entre os Estados de Minas Gerais e Bahia, banha Bela Lorena na sua nascente (“cabeceira do Carinhanha”) e atravessa o sertão rumo ao grande rio São Francisco, desaguando nele pela sua margem esquerda. Ali adquire identidade baiana ao nomear a cidade

de Carinhanha. “Para Caldas Tibiriçá, Carinhanha com esse feroz nome tupi quer dizer ‘Acari-nhanha’ ou corredeira dos acaris, um peixe da família dos cascudos, o que afinal é tranqüilizadoramente inofensivo como denominação” (BERTRAN, 1999, p. 51).

Abro aqui um parêntese para relatar um mito de origem que também faz parte das explicações locais sobre a nomeação do Rio Carinhanha. Tal como ouviram meus avós, meus tios e primos, meu pai e, mais recentemente, um dos narradores que participaram do estudo, fazendo uma leitura desse texto, sugeriu-me sua inclusão. Dizia a lenda que foi repassada de geração a geração do lugar:

Guerreiros indígenas oriundos dos lados de Goiás teriam realizado uma expedição para os lados do rio São Francisco, região de Januária, terra dos Caiapós (onde ainda hoje sobrevive uma reserva Xacriabá), atacado uma aldeia local e raptado uma jovem de nome Nhanha (ou Inhanha), levando-a para suas terras no alto rio Tocantins, onde a mesma teria sido desposada por um dos guerreiros raptores. A jovem Nhanha ter-se-ia apaixonado pelo guerreiro Acari e se acomodado com a nova família. Todavia seus parentes não teriam se conformado com o rapto da jovem e empreenderam uma expedição de vingança contra os agressores, perseguindo-os até as suas aldeias de origem, de onde resgataram a jovem e a recambiaram para a aldeia de seu povo. E a rota de perambulação desses guerreiros seguia o curso dos rios, que é o caminho natural do sertão. Mas, como o coração de Nhanha clamava pelo amor de Acari, ela deixou apenas que os ânimos se acalmassem e desse a luz ao filho que carregava no ventre, para retornar ao seu amado. Logo que o bebê nasceu ela o pegou no colo e empreendeu fuga de volta à aldeia de seu amado, em época de muita chuva, enfrentando todos os perigos e atravessando a nado os rios cheios. Assim que se deram pela falta da jovem na tribo, dois de seus parentes teriam saído em sua perseguição, supondo que teria sido raptada novamente. Todavia as pegadas encontradas eram apenas da jovem mãe com seu filhote às costas. Seguiram-na até as margens de um caudaloso rio, que estava muito cheio por

causa das chuvas. Aí as pegadas desapareceram nas águas barrentas. Os dois guerreiros atravessaram-no a nado e procuraram pistas na outra margem, sem sucesso, concluindo que a índia teria se afogado com a criança nas águas revoltas, na tentativa de atravessá-lo e seus corpos levados pela correnteza. Daí regressaram para a aldeia, com a triste notícia, não sem antes chorar pelos parentes mortos. Todavia a esperta mãe, supondo que mais cedo ou mais tarde seria alcançada pelos parentes, cuidou de despistá-los para seguir sua viagem tranquilamente. Na verdade ela nadara o rio cheio com o bebê às costas e fora sair na outra margem, em um ponto bem abaixo do que seria esperado, para que sua pista não fosse percebida pelos rastreadores. Escondeu o filho no mato, cobrindo-o com carrascas de buriti e nadou o rio de volta, para ficar escondida no mato e aguardar os acontecimentos, ver se seu estratagema seria suficiente para engambelar os perseguidores. Ao vê-los chegar, investigar e não encontrar sua pista na outra margem do rio, chorar sua morte e regressar para sua terra, ela pegou seu filho e retomou a viagem de fuga. Todavia seu amado tinha vindo ao seu encontro e ali mesmo às margens daquele rio eles resolveram fixar residência, pois o casal não seria bem vindo em nenhuma das duas aldeias. Daí o local passou a ser conhecido como o rio de Acari e Inhanha, e com o passar do tempo, rio Carinhanha. É como contavam nossos avós.

Como muitas outras lendas/mitos, inicia-se com uma história de amor... Aqui, entre um casal de jovens índios: Acari e Inhanha. Como era costume das tribos indígenas roubarem mulheres de tribos vizinhas e levarem, muitas vezes, levando também as crianças. Seria, então, Inhanha a bela morena, ou Lorena, que deu seu nome também à fazenda que lá se estabeleceu, “em priscas eras”?

Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa, já anuncia a importância desses rios para a identidade dos lugares e espaços. São referências dos nossos afetos, que ensinaram e orientaram os caminhos de outrora para os antepassados. Rios de amores para os viajantes,

para os indígenas que habitaram toda a região sanfranciscana, seus afluentes, vertentes e veredas.

Os grifos por mim inseridos sinalizam os rios dos lugares que compõem os percursos mencionados nas narrativas, ou que de alguma forma também situam e referenciam narradores, personagens e as materialidades espaciais e temporais do estudo.

Rios, que garantem a sobrevivência das pessoas, dos animais, das plantações. Mas, que também engoliram vidas nas suas bravias correntezas. Que na ausência de pontes transformaram-se também em obstáculos para outras formas de sobrevivências. Eles são, portanto, as referências da vida e da morte, de alegrias e de tristezas, de abundância e de escassez, umas que desejamos e, tememos. Que no estranhamento das enchentes turbulentas e vertiginosas dos períodos chuvosos, nos assombram, mas também aquecem o coração da gente e da natureza. Rios de nossos amores e saudades, por isso, nomeiam nossos lugares. Não sem motivo, sobre eles também poetizou o personagem Riobaldo:

[...] Claráguas, fontes, sombreado e Sol [...]. Hem? Senhor? Olhe:

O rio Carinhanha é preto, o Paracatu, moreno;

meu belo, é o Urucúia – paz das águas [...] È vida! [...]

Rio de meu amor é o Urucúia [...] (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 43; 89).

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