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5. RISO E AMBIVALÊNCIA NA FICÇÃO DE BARTOLOMEU CORREIA DE MELO

5.1. O riso como elemento de transformação

Ao afirmarem que os contos de Melo mais se aproximam de anedotas, os críticos16 não

souberam valorizar uma das características mais marcantes de sua obra: o riso. Não um riso qualquer, mas um capaz de mobilizar o indivíduo e promover transformações culturais, políticas e sociais. Bartolomeu Correia de Melo é um escritor contemporâneo, viveu as profundas transformações por que passou a sua cidade. Conheceu centros urbanos bem desenvolvidos, foi um pesquisador, lidou com tecnologias avançadas. Mas a modernidade consolidada – mesmo que em condições precárias, como é de se esperar de um país em desenvolvimento – não é matéria primeira de sua ficção. Seus contos trazem os elementos da tradição em primeiro plano e, quando os da modernidade ganham fôlego na história, como no caso do trem de “Ai Jesus!”, ou do jipinho em “Altas Horas”, são tratados como elementos forasteiros em relação ao lugar e tempo das histórias contadas. As personagens do potiguar andam a pé, de veículos de tração animal. Os elementos da modernidade, quando aparecem, são lidos – hoje – como do passado: o trem, um automóvel que é confundido com o besouro- do-cão, a luz elétrica em lugar de candeeiros e geradores de energia.

Então, quando Melo nos conduz a um tempo passado, ele mobiliza a consciência sobre quem somos na atualidade. Ou seja, para instigar uma leitura tridimensional do presente, entrega-se a um passado do qual é permitido rir, mas, na medida em que rimos do passado é possível perceber que estamos rindo de valores hodiernos.

É o que acontece, por exemplo, em “Besta Fera”, conto em que trata da chegada inesperada de um veículo automotor. O veículo adentra a cidade de forma imperiosa, assustando os cidadãos. Pela cor, barulho e desgoverno, logo é assimilado como um exemplar graúdo do besouro rola-bosta. “Pense num mondrongo preto, vulto assim engrandalhado de besouro rola-bosta avexando ligeireza, zumbindo qual mangangá!...” (MELO, 2009, p. 121).

O veículo entra destruindo o que tem pela frente numa velocidade estranha aos da pequena cidade e, como confundido com animal valente e malfazejo, recebe pauladas, pedradas até cessar todos os seus movimentos. O carro para no meio da praça, tomando para

16 Dentre os críticos que leram a ficção de Bartolomeu Correia de Melo como sendo de caráter anedótico,

simples flagrante da vida banal ou uma forma simples estão Patriota (2012b), Gurgel (2001) e Onofre Júnior (2010).

si toda a atenção da cidade e o vigário desvenda o mistério: trata-se de um automóvel comprado pelo prefeito.

A construção cômica criada a partir da aproximação entre o automóvel e o besouro rola-bosta ao passo em que desconstrói o invólucro de poder do veículo também aponta para as conformações dos poderes vigentes – político e religioso – naquele local e tempo. Assim, rir do infortúnio dos poderosos de outrora, bem como da imperícia do povo é também um modo de rever relações análogas nos dias de hoje.

As imagens naturais das regiões rurais, as do litoral do interior do Rio Grande do Norte, assim como as expressões da fala do homem rústico e as relações travadas entre estes homens não fazem parte de um passado inativo, mas de um presente que está sendo constituído por resíduos ativos do passado. Quando Melo nos traz a história de uma mulher submissa ao marido, como no caso do conto “Transa de gado”, mas que é capaz de burlar os dois homens da trama e sair vitoriosa, estamos diante de uma relação – pautada pelo patriarcalismo – e de uma situação mais antiga do que a invenção da escrita.

Já citamos a obra de Boccaccio composta na Idade Média, onde vemos nas novelas, modos semelhantes de relações sociais e táticas para subvertê-las. Na segunda novela da sétima jornada, Peronella – personagem responsável pela narrativa – nos dá uma pista sobre o sentido de passar adiante os mecanismos de subversão. Provocada pelo tema da burla dos maridos, Peronella fala de uma mulher que esconde o amante num tonel. Na introdução da narrativa chama a atenção dos ouvintes, dizendo que os homens costumam trair suas mulheres, mas também eles são traídos. Diz a narradora:

– Caríssimas senhoras, os homens burlam tanto as mulheres, especialmente os maridos, que, se alguma vez ocorrer a alguma mulher burlar o marido, as senhoras não só deverão ficar contentes com o acontecimento, ou por terem sabido ou ouvido alguém contar, mas também deverão pessoalmente contar o fato em todos os lugares, para que os homens fiquem cientes de que, se eles sabem, as mulheres também sabem – o que só pode ser útil às senhoras porque, quando alguém sabe o que o outro sabe, não se mete a enganá-lo com facilidade. (BOCCACCIO, 2013, p. 392).

Com o trecho citado não estamos afirmando que a mensagem deixada por Peronella deva ser uma bandeira da atualidade. Mas podemos decompor esta mensagem em tantas outras, que falam ao presente. Uma delas é o sentido de passar uma história adiante para que mais pessoas se apropriem de seu teor. Trata-se de valorizar uma experiência por reconhecer o seu potencial libertador. Quanto mais experiência – própria e a partir da vivência do outro – tem o indivíduo, mais ele é capaz de compreender o seu lugar no mundo. Então quando Melo

fala da uma sociedade patriarcal, regida por valores religiosos, ameaçada por uma modernidade promissora, ele fala de uma experiência do passado, que ensina aqui e agora. Pois os poderes de antanho não são outros do presente, mas os mesmos com uniformes diferentes.

Bartolomeu Correia de Melo opta por falar deste poder, não de forma escancarada, como se rezasse uma cartilha, ou lesse um manifesto. Ele fala despretensiosamente, nos fazendo rir de nós mesmos. Rimos da história fantástica e cínica contada por Francicleide para enganar seu marido, rimos da astúcia de um homem corneado pela mulher, que é mais esperto que Lampião. Rimos do automóvel. Rimos de mensagens sagradas. Rimos da mulher que pensa poder comprar um pássaro estimado pelo dono. Rimos da surdez – tão cheia de meandros simbólicos – que mata Sinhazinha. Rimos, e este riso chacoalha, pois rimos não do passado, mas de um presente em curso.

As histórias contadas por Melo dizem que este presente cheio de promessas, encoberto por fachadas luminosas e entusiásticas, inebriado por suas grandes conquistas é quase o mesmo presente do passado. Para além de apontar a permanência vibrante de valores de outrora, Melo coloca esses valores em risco.

A Igreja está em risco em seus contos, assim como as oligarquias, o patriarcalismo, a voracidade de uma modernidade que está no gerúndio – sempre querendo suplantar o antigo com a promessa do novo. A sua obra põe em risco as vozes que partem do centro e que desejam se eternizar no centro. Buscando entender como o autor potiguar descentraliza as vozes sociais e conscientiza – mesmo que não seja esta a sua intenção – através de recursos cômicos, recorremos à obra do filósofo Mikhail Bakhtin, quando fala do riso e da literatura carnavalesca, bem como de uma literatura constituída por vozes equipolentes.