• Nenhum resultado encontrado

7. PADRÕES DE CONTROLE ENTRE USUÁRIOS: O CONSUMO DE CRACK E SUAS MEDIAÇÕES

7.4. Rituais e técnicas de consumo e controle

Os usuários destacam que o consumo do crack misturado com maconha ou com cigarro, o mesclado ou melado12 e o capeta13, respectivamente, provocava menos fissura, de modo que o desenvolvimento de estratégias de controle sobre a droga se tornava mais fácil. A embriaguez provocada se misturava com os efeitos da maconha, o que promovia uma redução da ansiedade pelo uso, amenizando a frequência que fumavam. Ademais, o consumo do melado era menos visível socialmente, permitindo sua utilização em locais públicos.

“Fumava só um melado mesmo e aquilo ali não me dominava. O melado eu tirava ele de letra, porque era uma coisa que eu fumava um ou dois e ficava de boa, tranquilo” (Antônio,

25 anos); “O melado é um pouco menos, porque a maconha faz um efeito até legalzinho né?

Não é bom também não, mas faz um efeito até legal” (Renato, 34 anos); “Eu fumando melado, dava prejuízo para mim, ficava devendo... Era... Mas, ainda tinha consciência e

12 O mesclado ou melado é o consumo do crack misturado com a maconha, no formato de um cigarro. 13 Capeta é o crack consumido em mistura com o tabaco, também no formato de um cigarro.

pagava, né? Porque estava ainda de boa. Mas, depois que eu comecei a dar tiro, perdi o controle de tudo” (Carlos, 18 anos).

Eu preferia fazer no mesclado né? Mas só que como muitas vezes não tinha maconha por causa de muita apreensão. Aí o jeito era usar na lata mesmo. Ou na lata, ou no cachimbo e queira ou não o cigarro era mais fácil né? E também se torna uma questão mais fácil porque o mesclado você tem que ter a mistura e a lata não. A lata você só precisa da cinza. Qualquer canto que eu chegava eu dizia “ei irmão! Me arruma um cigarro aí?”. Todo mundo dá um cigarro (João, 28 anos).

A estratégia de consumo de maconha também é referenciada como útil em momentos de consumo intenso de crack. A maconha costuma ser usada como droga substituta, sendo bastante eficaz no manejo da fissura do crack. “Comprava logo uma dolinha para mim,

comprava logo um almoço sabe? Agora se eu ficasse com o dinheiro, parece que o diabo atenta visse. Fazia já para comprar minha dolinha para não fumar” (Aline, 21 anos).

Sempre movido na maconha. Sem a maconha eu fumava crack. Ficava na praça, batia um racha mais os caras, fumava maconha. Mas era só maconha durante a semana. Era direto dando a bola. O patrão deixava eu fumar lá dentro à noite. Aí fechava a porta... Sabia que eu fazia uso da maconha e do crack né? Ele sabia que eu fumava crack. Aí ele até dava conselho para eu parar de fumar crack, esses negócios assim. “Meu irmão, fica só fumando maconha, bicho”. Maconha hoje em dia é normal né? Aí ele deixava eu fumar. Quando eu fazia serão eu fumava lá dentro. Mas a semana todinha sempre tinha que estar movido na maconha (Daniel, 18 anos).

Em relação à experiência obtida com o crack puro, os usuários descrevem uma abertura maior aos efeitos esperados da droga, às expectativas relacionadas com o uso. A utilização da forma pura se apresenta como um problema para a maioria dos usuários, pois na ausência de conhecimento de como manejar esses efeitos, termina por limitar esses momentos como a única possibilidade em seu repertório de práticas sociais. Ao menos, a única que cria sentido às suas ações. Em alguns trechos, a experiência demonstra ser tão marcante que se assemelha à descoberta da sexualidade. Com o passar do tempo e com a maturidade de lidar com esses efeitos, desenvolvem-se estratégias de controle e o usuário passa a conseguir se envolver em outras atividades. “Logo no começo quando eu usei era todo santo dia. Aí não

comia, não fazia nada. Era só usando. Todo dia. Tinha vez até a noite toda também. Tinha vez também pegava o dia e a noite” (Marcos, 19 anos).

Eu comecei a fumar um melado, aí depois ficaram umas pessoas fumando. A casa tinha quatro quartos. Aí ficavam as pessoas nos quartos. Uns com a lata, outros com o cachimbo. Cada um fumando do seu jeito, né? E estava eu e a menina na cozinha, fumando um melado, né? Misturava, coisava tudinho, fumava um meladinho. Mas sempre vinham uns e ficavam me oferecendo “dá um tiro, dá um tiro para tu ver como é bom”. Um tiro na lata ou no cachimbo. Aí eu peguei e fui experimentar. Pronto, experimentei e depois não fui fumar melado nem nada, só queria saber da dar tiro. E quanto mais você fuma, mais você quer, quando mais fuma, mais quer. E o crack é o que? É cinco minutos de céu e o resto é de inferno, porque depois você sei lá, não sente quase nada, não fica lombrado nem nada (Renato, 34

anos).

No começo dava para mim levar né? Devagarzinho né? Foi certa vez, eu lembro como hoje, tava eu, Broca e finado Saulo, onde... Estávamos dentro de uma casa e não tinha maconha para fumar melado e finado Saulo queria fumar um capeta que é um cigarro e o crack. Eu disse “não, assim eu não vou fumar não, prefiro ficar na minha”. E Broca disse “oxe Gustavo! Dá um tiro porra! É massa meu irmão, tu vai sentir um bagulho massa!”. Eu disse “Essa porra eu já dei uns tiros já, mas não senti nada”. Ele disse “porque você deu um tiro pequeno”. Aí ele botou um tiro massa para mim. Quando eu dei mesmo, valendo eu senti o drama e vi realmente o que o tiro na lata fazia com a gente (Antônio, 25 anos).

Importante destacar que nos ritos de iniciação existe o processo de mudança de técnica para consumir. A passagem do “melado” para a “lata” define a inserção do usuário na compulsividade. É o momento, de acordo com os relatos, em que ocorre a compreensão dos efeitos de forma mais nítida e de uma fissura incontrolável. Esse é o limite do controle possível com a droga. Entretanto, essa delimitação simbólica não significa impossibilidade da construção de outras estratégias de controle. O que essa passagem delimita é a compreensão de incapacidade de lidar com os efeitos, mas não a interrupção do uso de mecanismos de controle.

Nessa época. Agora nessa época eu não dava na lata né? Eu só misturava ou no cigarro ou na maconha, que se chama o mesclado. Na época a gente só fumava assim. Quando não era no mesclado era no cigarro que a turma chama de capeta, misturado no cigarro. Tira o cigarro, bota e mistura. Assim, o efeito do mesclado ele deixa você em uma lombrazinha ainda, porque ele está misturado na maconha né? E o tiro, que é na lata ou no

cachimbo, ele é puro. Ele é só cinza do cigarro e a pedra em cima. Aí ele... O efeito dele é mais... Mexe mais né? Os neurônios de quem usa né? Você começa no melado, depois você passa para a lata (João, 28 anos).

Essa técnica de consumo parece desempenhar um papel normativo na regulação do consumo. Ao se iniciar na “lata”, o usuário parece reduzir as estratégias de controle, adequando-se aos modos de agir delimitados a essa experiência. Essa compreensão advém do modo como se relata o consumo compulsivo, destacando-se apenas os episódios de ingestão intensa e não atentando para outros mecanismos atuantes. Parece que o usuário se permite a não se preocupar com a existência desses controles, apesar de se presentificarem.

Eu passava o dia todinho fumando, aí à noite ia vender para repor dinheiro para comprar cada vez mais. Antes era mais no final de semana. Eu só comprava no final de semana. Só no final de semana uma base boa uns três anos. Eu uso há três anos. É. Já é um ano que eu estou no uso intenso, que eu comecei a traficar mais, né? (...) Eu acho que o crack é um, que nem muitos dizem: é uma droga que veio para arrasar tudo e todos. (...) Mas, eu sempre tive uma base que se eu tinha 50 reais eu usava 30. Sei que eu nunca deixei faltar o cigarro e nunca tirei da feira para usar, do alimento. Nunca tirei da pensão do meu filho para usar. Eu penso no depois. Está

entendendo? Eu sempre pensava em “poxa e quando acabar?” (Bruno, 35

anos).

Embora ocorra uma associação entre a atividade de fumar o crack no cachimbo com o desenvolvimento de um consumo mais compulsivo, os relatos apontam que mediadores como o trabalho e a família também terminam por desempenhar regulações no uso.