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P ROCESSOS DE MEMÓRIA DE UMA PESQUISA

jornal O Estado de S. Paulo e na Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo – Arquivo Multimeios (antigo Idart), de março a agosto de 2006. Em setembro, cotejou-se este levantamento com os dos Anuários de Artes Cênicas à disposição no mesmo setor, processo finalizado, em sua primeira etapa, em 14 de dezembro de 2007.

Na quase totalidade das introduções dos Anuários elaborados pela equipe de pesquisa em artes cênicas da Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo, escritas por vários pesquisadores, como Maria Thereza Vargas, Sílvia Fernandes, Heloisa Margarido Sales, Maria Lúcia Pereira e Mauro Meiches, foram consultados releases dos grupos, os jornais O Estado de S. Paulo, Fo-

lha de S. Paulo, Jornal da Tarde, Folha da Tarde, e as revistas IstoÉ/Senhor e Veja. Apesar de serem praticamente oito modalidades diferentes de fontes

consultadas, é marcante a falta de informações acerca de certos espetáculos em cartaz a partir de 1986. Os roteiros de teatro que em certas ocasiões ofereceram inúmeros dados sobre a obra, a partir da década de 1980, passaram a apresentar apenas o título e uma ou outra informação. Datas de estreia e de encerramento ficaram impossíveis de ser recuperadas.

O material coletado caracteriza-se no que se pode chamar de discurso sobre a produção teatral, comentando aquilo que já aparece nos veículos de imprensa. Trata-se de obra restrita, repleta de lacunas e construída a partir de um processo cujas fontes, também lacunares, apresentam uma seleção rigorosamente ten- denciosa pelos interesses de editores, de jornalistas, pela dimensão do roteiro do dia, pelo provável sistema de rodízio dos espetáculos, sem critérios mais verificáveis e tantas outras variáveis. Assim, nenhum jornal e nem mesmo publicações especializadas cobrem sequer o chamado circuito comercial.

Para desenvolver a pesquisa, foi escolhida como primeira fonte o jornal O

Estado de S. Paulo. Esta escolha destinava-se, inicialmente, a rastrear apenas

as críticas de Mariangela Alves de Lima, de 1980 a 1989, tendo em vista a importância e respeito ao objeto de análise escolhido, que é tanto a linguagem teatral quanto o espetáculo ao longo da década, e nas outras que se seguiram, sempre no mesmo jornal. Mariangela Alves de Lima1 demonstra, ao longo de

mais de 35 anos de trabalho, coerência surpreendente. Síntese, coesão, elegân-

1 Formada pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, com habilitação em Crítica Teatral, Mariangela dá início ao seu trabalho como crítica em janeiro de 1970, no jornal O Estado de S. Paulo, instituição em que permanece até hoje. Para mais informações cf.

cia, sutileza e moderação no uso de adjetivos, além de escopo conceitual têm constituído seu exercício e experiência críticas, características que se mativeram ao longo dos anos, apesar da crescente diminuição no espaço destinado a esse fazer, sobretudo no jornal diário e mesmo com relação à própria função que o trabalho crítico já havia representado naquele jornal.

Para apresentar apenas um exemplo de expressivo procedimento que pauta a divulgação dos espetáculos, há uma matéria de quase um terço de página, com fotografia central de Malu Mader em espetáculo com estreia prevista para março do ano seguinte. Assinada por Edmar Pereira, a matéria apresenta, por entre divulgação de várias outras obras, frases eivadas por um demolidor senso comum, expressões apologéticas, chavões mercadológicos e simplistas, comparações, como

The show must go on: apesar da crise, da incerteza, de todos os medos,

o teatro não vai parar em 89. Mas vai ter muito cuidado. [...] O sonho da maioria dos profissionais do palco [sem explicitar a que maioria se refere] é uma peça para poucos personagens, com um cenário leve e fácil de ser transportado, que permita a recuperação em turnês do investimento que o público da capital não conseguir transformar em lucro [portanto, fala naquilo que se designa teatro-mercadoria – obra cujo interesse econômico supera qualquer outro]. (Pereira, 1988, p.19)

Acerca do valor do ingresso: “Imagine-se que na Broadway nova-iorquina ou no londrino West End o preço de um ingresso varia de 40 a 50 dólares. Em São Paulo [...] não chegaram a cinco dólares – menos do que o preço médio dos cinemas nos Estados Unidos e Europa”. “Paulo Autran, o mais reverenciado ator brasileiro [...] um one-man-show.” “Cerimônia do Adeus, o lindo (espe- cialmente no primeiro ato) texto de Mauro Rasi.” “[...] a grande Fernanda Montenegro mudou seus planos.” “O mais inteligente e refinado humor brasileiro, o que leva a griffe de Jô Soares.” “Março é também o mês em que a musa nacional Malu Mader escolheu para estrear no teatro paulista.” Ainda em relação a março: “O mês não precisava de mais nada para tornar-se referência obrigatória de todo espectador, mas ainda teve a sorte de ser escolhido por Marília Pêra para seu retorno a São Paulo.” “Tônia Carrero troca o Rio por São Paulo em abril, para estrear Zelda, outro one-woman-show.” (ibidem)

Paralelamente à coleta de informações, iniciei as entrevistas com colabora- dores que viveram, produziram artística e conceitualmente no período e que

assistiram aos espetáculos durante a década, para estabelecer, de acordo com as proposições e terminologias do Núcleo de História Oral da Universidade de São Paulo, o chamado “ponto zero”.2 Nesse período, foram colaboradores,

com registro em áudio e vídeo, o professor e crítico Clovis Garcia, o diretor Ednaldo Freire, o diretor e cenógrafo Gianni Ratto, a pesquisadora Iná Ca- margo Costa, a atriz Lizette Negreiros, o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, a jornalista e ativista cultural Márcia Dutra, a crítica teatral Mariangela Alves de Lima, o diretor Roberto Lage e o pesquisador Sebastião Milaré. Em tese, tais nomes foram escolhidos pela representatividade e pela atuação em diversas áreas da produção teatral. Posteriormente, por se caracterizarem em objetos de aprofundamento da pesquisa, foram incluídos César Vieira (Idibal Pivetta) e Graciela Rodriguez, do Teatro Popular União e Olho Vivo (Tuov), com registro em áudio e vídeo nos quatro encontros; Luiz Carlos Moreira e Irací Tomiatto, do Engenho, com registro apenas em áudio nos três encontros. Também, com registro apenas em áudio, foram colaboradores o espectador José Cetra Filho, a atriz Lígia Cortez e Robson Camargo (atualmente professor na Universidade Federal de Goiânia).

Durante as entrevistas, alguns colaboradores tiveram dificuldade com o processo exigido pelo exercício mnemônico. A memória, como mecanismo dialético, compreende os embates entre o lembrar e o esquecer – tendo em vista, entre outras, as contribuições de Le Goff (2003), Huyssen (2000) e de Halbwachs (1990) a esse respeito, nem sempre se cumpria, como alargamen- to das fronteiras do presente. Ainda de acordo com as teses de Halbwachs, mesmo que a sociedade venha mudando permanentemente, sua “essência” permanece idêntica à sua raiz. Talvez pelo fato de a memória ser revivida e refeita pelo presente, o discurso da preservação da identidade se faça no interior da concretude do desenvolvimento do próprio sistema, inclusive político, que o gerou. De certa e analógica forma, com Manuel de Barros, esse processo se aproxima das imagens poéticas de Comparamento:

2 Ponto zero corresponde ao indivíduo, ou conjunto de indivíduos, que ajuda a descortinar um determinado assunto que se quer investigar. Dessa forma, normalmente por intermédio de processo de entrevista, o “ponto zero”, por ter vivido, por conhecer bastante um assunto, é de fundamental importância tanto para trazer à tona quanto para estabelecer certos nexos daquilo que se vai pesquisar. Acerca do NEHO e terminologias conceituais utilizadas em história oral, cf. Meihy, 2002 e 2004.

Os rios recebem, no seu percurso, pedaços de pau, folhas secas, penas de urubu

E demais trombolhos.

Seria como o percurso de uma palavra antes de chegar ao poema. As palavras, na viagem para o poema, recebem

nossas torpezas, nossas demências, nossas vaidades. E demais escorralhas.

As palavras se sujam de nós na viagem.

Mas desembarcam no poema escorreitas: como que filtradas. E livres das tripas do nosso espírito. (Barros, 2000, p.57)

Eivada por subjetividades que compreendiam a lembrança da produção teatral, a memória dos colaboradores turvava-se inúmeras vezes, apresentando- se a partir de um embate em que o esforço objetivo resvalava em subjetivi- dades intensificadas. Tanto maior transformava-se o esforço e a luta contra a subjetividade quando o objeto-referência vinha carregado por gostares e não gostares, absolutamente distintos. Nomes de artistas, de espetáculos e anos de suas apresentações embaralhavam-se. Desse modo, urgia mudar a estratégia. Era necessário organizar e conhecer pelo menos boa parte da produção teatral montada e apresentada na cidade, para ajudar, se necessário, os colaboradores. Interrompi, então, o processo de entrevistas para pesquisar a produção da década e conscientizar-me daquilo que houvesse sido registrado e de even- tuais omissões, pelo levantamento sistemático dessa produção. A Divisão de Pesquisas, principalmente pela guarda de arquivos preciosos – cartazes, pro- gramas, documentos sonoros e visuais –, era um dos espaços em que poderia ter acesso à produção que interessava e a outras formas de documentação, em seus arquivos.

No Arquivo Multimeios havia anuários referentes à produção teatral na cidade de São Paulo, de 1980 e 1981 (esgotados), e sem possibilidade de empréstimo ou de doação. Segundo informações de técnicos e da diretora do setor, na ocasião, Vera Achatkin, não havia nenhuma possibilidade de reedição do material. Era preciso, portanto, consultar o material no próprio setor. De 1982 a 1989 havia um levantamento produzido pelos técnicos, em incontá- veis laudas, guardadas em pastas A-Z, nem sempre revisadas, sobretudo no concernente à grafia de nomes de artistas, datas de apresentação e títulos de espetáculos. Apesar da escassez de tempo, o levantamento dessas fontes empí- ricas tornava-se absolutamente urgente e necessário. Percebi, ao desenvolver a

pesquisa, que as informações coletadas no jornal O Estado de S. Paulo e as dos anuários não seriam suficientes. Para preencher as lacunas, ampliei as fontes e acrescentei ao processo de consulta releases de grupos de teatro e programas de espetáculos.

Ao longo do processo de pesquisa, o contato com o material trouxe à tona nomes de vários artistas já esquecidos ou que poucos conhecem e inúmeras obras por eles produzidas. No Brasil, decorrentemente de uma série de fatores, os artistas também são facilmente esquecidos, mesmo entre os inseridos na mesma linguagem. Nesse contato, alegrias e tristezas: muitas foram as “bai- xas” ocorridas durante a década de 1980, como artistas vitimados por variadas circunstâncias e pela Aids.3 Muitos foram “colhidos” em plena juventude e no

mais intenso vigor de suas possibilidades e capacidades criativas. Vários desses artistas estão esquecidos e não figuram em documentos escritos. São espécies de indivíduos desterrados da história oficial. Nesses momentos de constatação, um pouso em Brecht, mais precisamente nos dois últimos versos de seu poema

Perguntas a um operário que lê, a provocar e a lembrar o compromisso com a

história, com a preservação da memória e com a militância, luta permanente contra o esquecimento: “Tantas perguntas. Tantas histórias” (2001, p.166).

Dos artistas falecidos na década, o cenógrafo e artista plástico Flávio Império é citado pela totalidade dos colaboradores, sempre com respeito e admiração. Dentre outros, a ele assim se refere Mariangela Alves de Lima, em entrevista a mim concedida, em 16 de fevereiro 2006:

Fala-se dele como um cenógrafo, talvez porque tenha dirigido pouco. Na verdade, ele fez coisas também como diretor. Ele não queria saber, mas era uma influência fortíssima em todos os trabalhos de que participou. Tinha um modo de inventar o espaço, que contaminava toda a concepção do espetáculo. A melhor fase dele e do Fauzi Arap foi quando trabalharam juntos. Ou seja, quando eles assumiram que um cenógrafo não é só um cenógrafo, mas é um coautor, e quando Fauzi assumiu a mesma coisa, que um diretor ou um autor não é um autor total. Eles se encontraram e fizeram coisas esplêndidas juntos. Coisas muito, muito boas. Em todo lugar onde o Flávio trabalhou conseguia mobilizar a todos. Ele tinha toda uma ideia, a começar pelo uso da matéria-prima como elemento significativo. Ele nunca construiu um cenário no papel e no desenho. [...] A ideia tinha de se dar junto

3 Durante a década de 1980, e a partir de 1982, quando a doença de fato foi diagnosticada no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, foram encontrados nove casos e nenhum óbito em 1982, 1.024 casos e 63 óbitos em 1986 e 4.851 casos e 685 óbitos em 1989.

com a matéria, a estrutura tinha de ser criada junto. Daí entra no trabalho do ator, também. Havia toda uma inserção dele dentro do espetáculo. E ele foi uma influ- ência muito forte, sem contar que, por direito de nascimento, uma coisa congênita nele era o professor. Tudo o que ele aprendia era para ensinar. Ele estava sempre ensinando. Onde ele estava havia sempre um grupo de jovens atrás, tomando nota do que falava. Nele tudo era muito interessante, muito importante. Ele criou vários grupos de estudos. Elencos se tornavam grupos de estudo, os professores, os diretores que trabalhavam com ele aprendiam. Era uma pessoa que ensinava o tempo todo. Até mesmo com a gente, que ia simplesmente documentar o trabalho dele, ele dizia: “Vem ver como eu vou fazer esse figurino”. Ele pegava um papel e mostrava. Essa coisa didática do Flávio Império fez com que ele fosse uma pessoa fundamental. Quem chegou perto dele não esquece nunca mais o que aprendeu, onde aprendeu. Ouço as pessoas dizendo: “Aprendi isso com Flávio Império”. Ele fazia, por exemplo, de um tingir de pano uma história tão comprida que começava com a semente em Minas Gerais. Usos daquela semente, naquele lugar, onde as pessoas tingiam para outros fins. Ele vinha chegando. Com aquela tintura ele ex- plicava por que estava tingindo o pano, daí o porquê da escolha por aquele tecido, porque ele ia ter aquela forma, que significado isso teria naquele tecido, naquele espetáculo. Flávio não comprava o tecido na Rua 25 de Março... Como sabemos todos, o modo de produção das coisas afeta o próprio sentido daquilo que se faz. Todo mundo que trabalhou com ele, penso, tem sempre uma coisa a contar... Ele era um artista, um criador e um professor.

Também decorrente de processo de entrevista a mim concedida, em 31 de agosto de 2007, a atriz Lizette Negreiros, bastante emocionada ao se lembrar de Flávio Império, durante o processo de montagem de Chiquinha Gonzaga:

Ó abre alas, no Teatro Popular do Sesi, afirma:

Era maravilhoso, o Flávio Império... Como eu sinto saudades dele, como ele era inteligente e sensível. Ele entendia o ator, sabe? Ele pegava o figurino e dizia: “Esse figurino é a sua cara, veste!” E a gente vestia com prazer. Sempre dava certo. Na Chiquinha Gonzaga o cenário que ele fez tinha umas sacadas que represen- tavam um teatro do Rio de Janeiro. Ele pegou a gente pela mão – e todo mundo queria pegar na mão dele – e nos fez andar por aquele cenário todo. A gente fazia isso com muito prazer... E levou a gente para passear e ver o cenário, para ver lá de cima. Dizia: “Entrem! Olhem! Se debrucem!” A gente ficava horas... “Repre- sentem! Desçam e falem! Sintam e dominem! Isso aqui é de vocês. Se vocês não dominarem não adianta nada. A peça não engrena...” Nós subíamos com prazer. Fazíamos aquilo tudo muito felizes. Eu fazia vários papéis, uma das personagens

era uma velha dama, que criticava a Chiquinha o tempo todo. Usava uma roupa preta linda! Ele dizia: “Tem sua cara!”. Ele era uma pessoa maravilhosa, tenho muitas saudades. Perder pessoas como o Flávio Império... A gente sente a falta dessas pessoas inteligentes e sensíveis. Encontramos outras, é verdade, mas tem umas que ficam dentro... O modo como certas pessoas ensinam. É uma lição que a gente jamais vai esquecer.

Ao retomar o “processo de memória da pesquisa”, outro detalhe importante é que o contato com os títulos das obras e os nomes de artistas e técnicos com elas envolvidos enfatizava que havia acertado ao escolher aquele período histórico. Por ter vivido e produzido na década, além de desconfiado ficava, por vezes, irritado com a quase consensual ideia segundo a qual o período representaria uma década perdida, de alienação, de recolhimento, de empobrecimento da produção artística.

Aliado à necessidade de ajudar os colaboradores no processo de lembrança ao longo das entrevistas, e caracterizando-se em material de memória precioso, aguçou desejos e necessidades de enveredar por este caminho o importante documentário idealizado e dirigido pelo jornalista Julio Lerner: A aventura do

teatro paulista, produzido e veiculado na Rádio e Televisão Cultura (RTC), em

1980, atualmente em fase de digitalização.4 O documentário mescla fragmentos

de entrevistas de artistas e técnicos em teatro; trechos de espetáculos montados na cidade de São Paulo até aquele momento; trechos especialmente remontados para a série, com vinte programas distintos; inserções jornalísticas, no quadro denominado Jornal da História, apresentando notícias e fazendo referências acerca de importantes acontecimentos mundiais; apreciações críticas a partir de comentários. “Costurando” toda a série, Julio Lerner e o professor Décio de Almeida Prado. Dividem a cena, como mestres de cerimônia, a atriz Ester Góes e o ator Ewerton de Castro.

Era necessário recuperar o “legado de memória” pelo mapeamento siste- matizado dos artistas e técnicos, cujas ações não figuram das fontes documen- tais impressas: manuais, compêndios, ensaios. Apesar do esforço e trabalho desprendidos ao longo de todos os anos de pesquisa foi impossível recuperar o nome de todos esses trabalhadores. Parafraseando o título de um filme de 1989, de Michael Verhoeven – Uma cidade sem passado –, é como se se tra-

4 Sobre o alcance e objetivos do projeto, há uma matéria de Maria da Glória Lopes sobre o lança- mento de Aventura do Teatro Paulista (In: O Estado de S. Paulo, 16 ago. 1980, p.43).

tasse de uma experiência ou de “produção sem passado”, que não figurava de processo documental.

Se se pensar de modo análogo ao verso de Beto Guedes e Ronaldo Bastos,

O sal da terra, segundo o qual: “[...] um mais um é sempre mais que dois”, a

fatia de tempo designada década de 1980 corresponde a um período em que a totalidade das ações e fazeres individuais, de um modo ou de outro, foi conta- minada por mudanças e mobilizações políticas ocorridas no Brasil. Durante a década, a população, principalmente a das grandes cidades, sentiu-se mobi- lizada a participar de ações que ajudassem a encerrar o período ditatorial. Foi uma década em que o Tuov, por exemplo, recebeu, apesar do insignificante reconhecimento que lhe conferem os especialistas de teatro no Brasil, o presti- giado prêmio internacional Ollantay, na Venezuela, em 1984. (O Estado de S.

Paulo, 11 fev. 1984, p.17), Além desse importante prêmio, durante a década,

o Grupo recebeu, ainda, o Prêmio Casa de Las Américas, Cuba, 1982; Prêmio Mambembe-Fundacen, 1986; Prêmio Vladimir Herzog, pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, 1988.

No processo de escritura da tese, entrevistei César Vieira quatro vezes (19/2, 8/3 e 7/8/2007 e 7/1/2008); e Luiz Carlos Moreira, do Engenho (11 e 18/5/2006 e 17/12/2007). Os dois autores e diretores nutrem algumas hi- póteses acerca de seus trabalhos terem sido “colocados na geladeira”, não só durante a década. César Vieira fala de rejeição, especialmente por ter defendido e trabalhado sempre em prol do trabalho popular. Luiz Carlos Moreira, em casa (quando adolescente), na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo ou em reuniões em diversos espaços institucionais – exatamente pela defesa e necessidade de politização da arte e de seus trabalhadores – foi acusado tanto por inimigos quanto por parceiros de considerar “tudo político”, como se isso fosse ruim.

Os dois diretores sabem, entretanto, que muitos de seus detratores e ini- migos, sobretudo de concepção e estratégia políticas, nunca assistiram a seus espetáculos, mas, para fugir de um enfrentamento dessa natureza, desqualifi- cam os dois criadores atendo-se à questão estética. Acerca dos procedimentos demandados pelos chamados “achismos” e pela opinião ultrageneralizada (mesmo desconhecendo o assunto de que se fala – decorrência, em grande parte, do atordoamento provocado pelo mundo contemporâneo), em que não é possível conhecer ou ter acesso a como os saberes são produzidos, construídos e camuflados, é bom lembrar que este procedimento fundamenta-se grande-

mente na chamada confiabilidade social. Não se conhece as coisas, mas se acata

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