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DO CAMINHO PARA CHEGAR A UM FIM AO DESCAMINHO DAQUELE

73 ROLNIK, 2007 74 Ibidem.

75Ibidem. 76 FERREIRA, 1986. 77 ROLNIK, 2007. 78Ibidem. 79Ibidem. 80 MERHY, S/d.

comial, impulsionada pela aprovação da lei estadual da reforma psiqui- átrica, a “Lei Carlão”, sancionada pelo governador do Estado de Minas Gerais em janeiro de 1995, meu primeiro ano de psiquiatria.

Este momento ascendente da estrela da reforma psiquiátrica em Belo Horizonte encontrava total ressonância no Instituto Raul Soares, cuja maioria dos trabalhadores já vinha se engajando na luta pela re- forma há vários anos, sendo prova disto a existência, como anexos do Instituto, de um Hospital-dia e do Centro de Convivência Arthur Bispo.

Também a residência de psiquiatria no referido instituto trazia uma tradição de luta pela reforma e, desde 1994, oferecia o terceiro ano de residência no Cersam/Barreiro, primeiro CAPS da cidade.

Em consonância com meus habituais posicionamentos políticos, in- teressei-me cada vez mais pelas possibilidades oferecidas nos chamados “novos serviços”, ou “serviços substitutivos”, de realizar uma prática, um exercício profissional, com declarado posicionamento pela saúde, enten- dida diretamente como construção da vida digna individual e coletiva.

Em 1997, com a proposta de monografia “Crise – Um Conceito Substitutivo em Saúde Mental”, realizei o terceiro ano de residência em psiquiatria em um CAPS.

A minha proposta de monografia, por sua vez, já representava uma inquietação pessoal, uma tentativa de produzir um conhecimento acerca do novo modo de se fazer saúde mental. E um conhecimento desde den- tro deste processo, pois o que havia, em grande medida, eram produções teóricas que buscavam a definição dos serviços substitutivos sempre em antinomia com os serviços manicomiais, ou seja, sempre pela negativi- dade, pelo que não se é, e em oposição ao que não se quer fazer, como o próprio título: antimanicomial.

Considerando que os CAPS se autointitulavam e se autodefiniam como serviços de atendimento às crises e como estratégia fundamental para evitar a captura pelos hospitais — que acontecia, principalmente, nos momentos críticos dos usuários —, decidi me debruçar sobre a te- mática da crise, já buscando, naquele momento, um elemento, um com- ponente, que pudesse ser revelador da novidade da clínica dos CAPS.

Ou seja, estou tentando resgatar meu interesse pelo esclarecimento dos processos misteriosos que constituem a clínica impalpável e impon- derável da saúde mental. Interesse que me habita, a bem da verdade, desde muito antes da residência médica, como pode testemunhar minha monografia de iniciação científica, desenvolvida junto ao Departamento de Psicologia, ainda na graduação em Medicina, intitulada A Clínica En- tre o Olhar e a Escuta.

Minha primeira monografia foi dedicada à comparação entre o modo de fazer clínica da psiquiatria tradicional, “a clínica do olhar”, e o modo inaugurado, ou pelo menos sistematizado pela descoberta freudiana do inconsciente, “a clínica da escuta”. A segunda, por sua vez, centrou-se na comparação entre a abordagem da crise, ou seja, a clínica da crise, no atendimento de urgências do Instituto Raul Soares, um hospital psiquiá- trico, e no CAPS, um serviço substitutivo ao hospital psiquiátrico.

Em ambas as tentativas de construir um conhecimento ou um escla- recimento do que representavam as novidades da clínica da escuta e da clínica substitutiva, movia-me uma viva curiosidade pela “microfísica” desses processos clínicos. Pretendia pesquisar o que, através dessa “mi- crofísica”, eles portavam de verdadeiramente, genuinamente novo, algo que me parecia sempre velado, subentendido.

Falo não de uma mera curiosidade, mas daquela, preciosamente descrita por Michel Foucault:

[...] a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que per- mite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conheci- mentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece?81

Acontece que, seguindo meu próprio descaminho, não me dei por contente com os esclarecimentos obtidos nas monografias, ainda mais que, continuando a trabalhar no CAPS no cargo de psiquiatra efetivo da

prefeitura de Belo Horizonte, fui acompanhando as sucessivas crises, de identidade, de paradigma, de apoio da gestão, etc., por que vem passan- do este CAPS e sua equipe.

E no atravessamento de tantos impasses, componentes da história institucional de um serviço fadado a ser inventor, inovador, fez-se, cada vez mais forte, minha necessidade de me constituir em um sujeito tam- bém “epistêmico”, no sentido da “produção de um conhecer militante de um sujeito implicado que quer este saber para perceber a si, enquanto um coletivo em ação transformadora, com êxitos mudancistas ou não, procurando mapear como isto é possível e, ao mesmo tempo, socializar estes seus saberes e agires transformadores”.82

Estou falando, portanto, daquilo que E. Merhy decodificou como “o conhecer militante do sujeito implicado”83, e que guarda uma seme-

lhança ou aproximação com a “curiosidade que vale a pena ser pratica- da”, já citada.

Refiro-me ao saber implicado, para falar deste estudo, em três as- pectos, apontados por Merhy, e que considero pertinentes ao meu caso.

O primeiro se refere ao fato de que:

o sujeito que interroga é ao mesmo tempo o que produz o fenômeno sob análise e, mais ainda, é o que interroga o sentido do fenômeno partindo do lugar de quem dá senti- do ao mesmo, e neste processo cria a própria significação de si e do fenômeno. Ou mais, ao saber sobre isso, mexe no seu próprio agir, imediatamente e de maneira implicada; chegando ao ato de intencionar o conhecimento através de um ‘acontecer nos acontecimentos’ [...]84.

Creio encontrar-me exato na situação descrita acima, uma vez que, sendo o sujeito que interroga o tratamento involuntário no CAPS, sou, ao mesmo tempo, produtor de tratamentos involuntários neste serviço e, também, sou o que quer definir esta involuntariedade, interrogando seu sentido, buscando sua significação e a minha própria, neste processo.

82 MERHY, E. S/d. 83Ibidem. 84Ibidem.

Ademais, saber sobre isso interfere diretamente no meu agir, de forma imediata e implicada. Vivencio, assim, ser sujeito epistêmico de um co- nhecimento acontecendo nos acontecimentos.

O segundo aspecto é que:

[...] neste tipo de estudo o mais importante do ponto de vista metodológico é a produção de dispositivos que possam interrogar o sujeito instituído no seu silêncio, abrindo-o para novos territórios de significação, e com isso, mais do que formatar um terreno de construção do sujeito epistêmico, aposta-se em processos que gerem ruídos no seu agir cotidiano, colocando-o sob análise. Aposta-se na construção de dispositivos autoanalíticos que os indivíduos e os coletivos em ação possam operar e se autoanalisar.85

Quanto a tal aspecto, o núcleo desta investigação, o tratamento in- voluntário, impôs-se como objeto de estudo eleito, justamente por sua capacidade de ser um potente interrogador das práticas clínicas em cur- so, e do “modus operandi” dessas práticas, fazendo o instituído desper- tar de seu silêncio, configurando-se em um promissor analisador, ou um “conceito-ferramenta”, com força crítica e capacidade de desestabilizar, gerando evidente ruído no agir cotidiano. É, portanto, um dispositivo capaz de operar em mim e na equipe desse serviço, assim como em ou- tras, um processo autoanalítico.

O terceiro aspecto é o paralelo ao sonho:

[...] à vivência que temos no plano individual com o sonho, que muitas vezes aparece para nós como um outro, como algo que é ruidoso, mostrando ‘falhas’ no nosso mundo da identidade, das significações, em que construímos nosso território existencial como o lugar de uma certa referência identitária e de desempenho de certos papéis, onde acha- mos que ali sabemos quem somos e onde capturamos estes processos diferentes, estranhos. Aí, em um sonho, percebe- mos que um outro em nós se revela, mostrando que aquele mundo de significações onde nos encontramos, definindo-

nos e aos outros, pode ser ‘esburacado’, pois tudo que já ti- nha um sentido pode começar a se revelar sem sentido, ou mesmo a mostrar outros sentidos e, em alguns casos, este outro vem com tal força que a ‘captura’ mostra-se difícil.86

E aqui vale notar que existe uma estreita relação na constituição do objeto deste estudo com este último aspecto mencionado do conhecer militante do sujeito implicado. Nesse sentido, ousaria dizer que se trata mesmo de um “objeto onírico” de estudo.

Digo isso porque, ao interrogar as práticas clínicas em um serviço substitutivo, com base no tratamento involuntário ali realizado, estou tocando num dos pontos nevrálgicos da construção histórica identifica- tória ou identitária de tais serviços e de tais práticas.

Afinal, todo o sistema antimanicomial surge — e se insurge — con- tra as práticas de poder, as práticas disciplinares, as práticas restritivas, em nome da liberdade, entre outras coisas, dos usuários.

Pensar no tratamento involuntário no contexto dos serviços subs- titutivos é mesmo, guardadas as devidas proporções, um “retorno do recalcado”, este elemento primordial de que são feitos os nossos sonhos e nossas possíveis verdades.

Ora, trata-se aqui, então, de uma investigação dos sonhos, ou de um sonho de um coletivo, sonhador de uma nova práxis terapêutica, de novas relações interpessoais no fazer saúde, de uma transição tecnológica, ou de uma transcrição, menos técnica e menos lógica, de encontros desejantes, ou, ainda, como ensina Haroldo de Campos, de uma transcriação poética interativa, sendo nós mesmos, trabalhadores e usuários, os interativos, os interatores compositores desta estética, autopoética anticibernética.

Trata-se do pressuposto de que o critério de verdade sobre o co- nhecimento possível a partir dos sonhos, ou de seus conteúdos latentes, reside exclusivamente nos próprios sonhadores. Ou seja, é dizer que, quando se investiga objetos oníricos, o único conhecer possível é o do sujeito implicado.

É claro que este ponto de ruptura inviabilizou a ascensão da psi- canálise ao Panteão das Ciências, mantendo-a, por isso mesmo, viva, a desdobrar seus efeitos sobre as vidas, em multiplicidade.

Mas, afinal, este estudo também pretende ter alguma vida, e ser ca- paz de gerar, condição primordial e exclusiva dos vivos, frutos da peri- gosa árvore do conhecimento, mesmo que em relações da mais profunda consanguinidade, como a serpente de Valéry, que morde o próprio rabo mas, somente depois de algum tempo de mastigação, reconhece, naquilo que devora, o gosto de serpente, e segue em frente, porém, até enxergar sua própria face em sua garganta — sendo isto o que se chama uma teo- ria do conhecimento.87

Quero também considerar a topologia do tratamento involuntário, este objeto onírico analisador. Afinal, saber onde encontrá-lo é parte integrante da metodologia. Ainda mais sendo objeto onírico, que con- cretamente não está lá onde se pensou vê-lo, mas onde não foi visto, e quando não se pensou nele.

Tem esta natureza de não estar no trabalhador, nem no usuário, nem no programa de saúde, nem no projeto terapêutico. Pesquisá-lo, tentar capturá-lo, pode ser, por um lado, como tentar prender coisa tão frágil quanto bolhas de sabão em uma gaiola, mas, por outro lado, a própria fragilidade pode ser convertida em gaiola, enjaulando uma sutileza ain- da maior que a sua. Como fumaça em bolhas de sabão, este analisador pode revelar o acontecer do ato clínico.

Este é um objeto nitidamente do campo das tecnologias leves, do acontecer inter, do espaço interseçor (conforme o sentido conferido ao termo por Deleuze, citado por Merhy88, não se tratando de um somatório

de um com outro, mas de um interventor, ou “inter-inventor”), como sublinhado por Jorge Luis Borges:

El sabor de la manzana (declara Berkeley) está em el con- tacto de la fruta com el paladar, no em la fruta misma; ana- logamente (diria yo) la poesia está em el comercio del po- ema com el lector, no el la serie de símbolos que registran

87 DOMINGUES, 1991.