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Não é lá grande coisa não, ou se explica melhor o bufão ou lhe pesa a sentença minha mão, ameaçaria o juiz.

O ponto de partida para esta reflexão sobre a clínica nos CAPS é seu exercício no contexto histórico da sociedade de controle, e os descami- nhos que isto pode implicar.

Podemos encontrar a definição de uma sociedade de controle, como desdobramento do poder disciplinar descrito por Michel Foucault, na obra de Gilles Deleuze.

Neste sentido, Deleuze101 aponta a crise generalizada dos meios ou

dispositivos de confinamento, como a prisão, o hospício, o hospital, a escola, etc. — sendo estes pertinentes à tecnologia específica de poder denominada disciplinar —, e sua substituição por diferentes modos de controle, os controlatos, de maneira que os moldes de confinamento vão sendo substituídos por moldagens ou modulações contínuas e perma- nentes, a céu aberto, ao ar livre. Assim, por exemplo, o confinamento no hospício pode ser substituído pelos hospitais-dia, pelo atendimento domiciliar, pelo tratamento comunitário, nessa passagem para uma so- ciedade de controle, desde o poder disciplinar descrito por Foucault.

Michel Foucault localiza a invenção, nos séculos XVII e XVIII, de uma nova mecânica de poder, distinguindo-se do exercício tradicional anterior do poder de soberania, constituindo o poder disciplinar, ca- racterizado por “processos para a coerção individual e coletiva dos cor- pos”102, buscando a docilidade, a sujeição e a utilidade dos corpos pelo

esquadrinhamento, pela repartição analítica, pela individualização, pelo adestramento, pela vigilância detalhada e minuciosa, por uma penetra- ção “até nos mais finos detalhes da existência”103, por inumeráveis meca-

nismos de “sanção normalizadora”.

101 DELEUZE, 1992. 102 FOUCAULT, 2002. 103Ibidem.

A formação deste poder disciplinar é correlata da criação, neste mesmo momento histórico, de “todo um conjunto de técnicas e de ins- tituições que assumem como tarefa medir, controlar e corrigir os anor- mais”104, das quais o asilo psiquiátrico, com as ciências, análises, práticas,

saberes com radical “psico”, e seus mecanismos científico-disciplinares, é parte integrante.

Uma distinção constitutiva deste mecanismo polimorfo das discipli- nas é um discurso que substitui a regra jurídica do poder da soberania pela norma, substituindo o código da lei pelo da normalização, com um horizonte teórico das ciências humanas no lugar do direito, e a jurispru- dência de um saber clínico.

O próprio Foucault também aponta esta passagem do sistema disci- plinar para o sistema do controle:

Eu penso que, do século XVII ao início do século XX, acre- ditou-se que o investimento do corpo pelo poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso. Daí esses terríveis regimes disciplinares que se encontram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos edi- fícios, nas famílias... E depois, a partir dos anos sessenta, percebeu-se que este poder tão rígido não era assim tão indispensável quanto se acreditava, que as sociedades in- dustriais podiam se contentar com um poder muito mais tênue sobre o corpo. Descobriu-se, desde então, que os controles da sexualidade podiam se atenuar e tomar outras formas [...]105

Nesta passagem da disciplina ao controle, Deleuze106 aponta a subs-

tituição do homem confinado pelo homem endividado, com a implanta- ção de um novo regime de dominação no qual um controle permanente da posição, lícita ou ilícita, de cada um opera, a cada momento, uma mo- dulação universal, substituindo os meios de confinamento disciplinares. Esta mudança torna candente a reavaliação das antigas formas de re- sistência contra as disciplinas e suas instituições que, já em crise desde o

104 FOUCAULT, 2002. 105 FOUCAULT, 2001. 106 DELEUZE, 1992.

pós-Segunda Guerra Mundial, agora agonizam, sendo substituídas pela sociedade de controle.

Cabe ressaltar que esta substituição não é total e completa, havendo em cada momento, lugar, situação, relação, uma mesclagem, na qual se evidencia a preponderância do controle sobre o antigo poder disciplinar, e sobre o ancestral poder de soberania.

É claro que esta discussão ou debate sobre os mecanismos, as prá- ticas, as formas de poder em funcionamento constitutivo de um dado socius, ou a serviço de um dado projeto civilizatório, não começou com Foucault ou Deleuze. Mas posso justificar minha escolha por estes auto- res no fato de que foram sobretudo eles que se dedicaram ao desvenda- mento e desvelamento minucioso e sistemático dos microssistemas que compunham a arquitetura e o funcionamento desses poderes na atuali- dade de nosso momento histórico, na comtemporaneidade do mundo ocidental nas últimas décadas do século XX e início do XXI.

Mas podemos recordar, por exemplo, dois autores que, antes deles, pintaram um quadro bem sinistro do que viria a ser a vida em um futuro desolador, em uma atmosfera cinzenta que anunciava uma verdadeira antiutopia, ou uma distopia, para utilizar este termo médico que remete não só a uma alteração do topos, de um lugar errado, mas também uma alteração funcional, uma verdadeira distorção do devir.

Em 1932 Aldous Huxley apresenta seu Admirável Mundo Novo107, e

anuncia ou denuncia alí uma lógica operante bem condizente com os mecanismos de disciplina e controle, quando, por exemplo, explica que “é o segredo da felicidade e da virtude: amar o que se é obrigado a fazer. Tal é a finalidade de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social a que não podem escapar.”108

Não há como não ver nesse texto inúmeras referências ao que Fou- cault denominaria muito mais tarde de biopoder, biopolítica, o poder disciplinar de gerar modos de vida, ao contrário do poder soberano de exigir a morte.

107 HUXLEY, 1994. 108Ibidem.

Huxley descreve uma vida toda planejada e arquitetada desde sua gestação artificial, sem vínculos de parentesco, sob a égide de um utili- tarismo soberano, em que cada qual deve ser preparado para adaptar-se o mais perfeitamente às suas funções. De resto, deve a cada um ser con- cedido todo o direito de gozar a vida, em um sentido sempre previsto, em que todo tipo de improdutividade, como os afetos por exemplo, deve ser banido.

E Huxley já declara que este banimento não ocorre pela força, pelo constrangimento, que geraria também desperdícios de bioenergia, mas por um convencimento pela satisfação, pelo prazer fácil, pelo acesso a fruições contínuas, regradas pelo império da juventude e da saúde, no qual “um médico por dia dá vigor e alegria”109.

Encontra-se, ainda nesse texto, a referência à produção química de felicidade, permitindo um melhor exercício do não pensar, pela metá- fora do “soma”110, substância que todos usam e que, simultaneamente,

podem — pois é um prazer — e devem tomar. Três são os lemas dessa civilização: “comunidade, identidade, estabilidade.”111

Vamos encontrar novamente três lemas em um outro autor, que de forma mais sofisticada, descreverá um pesadelo futurista distópico, já em 1948.

Trata-se de Eric Arthur Blair, conhecido pelo pseudônimo de Geor- ge Orwell, com sua magnífica obra 1984112.

Nesta, encontramos descrições preciosas de algumas nítidas anteci- pações do entendimento de uma microbiopolítica, por exemplo, quando descreve a máquina-rolo-compressor de um Estado que procura “impe- dir que homens e mulheres criassem lealdades difíceis de controlar”113,

ou que pretende “roubar todo o prazer ao ato sexual”114. Também quan-

do esclarece que “executado com êxito, o ato sexual era rebelião. O de- sejo era crimidéia”.115

109 HUXLEY, 1994. 110Ibidem. 111Ibidem. 112 ORWELL, 2005. 113Ibidem. 114Ibidem. 115Ibidem.

A descrição microbiopolítica continua quando, ao final do relato do encontro de Winston e Júlia, “não havia mais emoção pura; estava tudo misturado com medo e ódio. A união fora uma batalha, o clímax uma vitória. Era um golpe desferido no Partido. Era um ato político.”116

Orwell explica ainda que “a família se tornara uma extensão da Po- lícia do Pensamento”117. E que o Partido estabelecera o “duplipensar”,

bem evidente em seus três lemas: “Guerra é Paz / Liberdade é Escravidão / Ignorância é Força”.118

Seus personagens revelam um mundo no qual “a vida particular acabou”119, onde é possível “impor não apenas completa obediência à

vontade do Estado, como também completa uniformidade de opinião em todos os súditos”.120 Um mundo no qual a “essência do jugo oligár-

quico não é a herança de pai a filho, mas a persistência de certo ponto de vista em face do mundo e de certa maneira de viver, imposta aos vivos pelos mortos”121, onde, para “se dominar, e continuar dominando, é pre-

ciso deslocar o sentido de realidade”.122

Orwell sintetiza, de forma surpreendente, a passagem do poder so- berano ao disciplinar e ao controle: “A ordem dos antigos despotismos era ‘tu não farás’. Os totalitários mudaram para ‘tu farás’. Nossa ordem é ‘tu és’.”123

Não é nada pouco, portanto, o que está antecipado nesse livro escri- to no pós-Guerra de 1948: o ato sexual como um ato político; o desejo como crimidéia; o próprio conceito de crimidéia como o mais torpe dos crimes; a Polícia do Pensamento e a família como sua extensão; as es- tratégias de destruição dos laços de solidariedade ou fraternidade entre os homens, dos laços afetivos entre os casais, dos laços familiares entre pais e filhos; as crianças, em sua útil vulnerabilidade, espionando os adultos; a estupidez como mais necessária à própria sobrivivência que a

116 ORWELL, 2005. 117Ibidem. 118Ibidem. 119Ibidem. 120Ibidem. 121Ibidem. 122Ibidem. 123Ibidem.

inteligência; e o comovente relato minucioso de como a mente do pobre Winston, que ousou livre-pensar, vai sendo absolutamente arruinada, despedaçada, esvaziada.

Um poder bastante diferenciado é anunciado aqui, poder que “está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender”124, regendo “um mundo que se tornará cada vez mais

impiedoso, à medida que se refina”125, e no qual “não haverá mais dis-

tinção entre a beleza e a feiúra. Não haverá curiosidade, nem fruição do processo da vida”.126

O que a literatura havia prenunciado será então, mais tarde, siste- maticamente demonstrado por autores como Foucault e Deleuze.

Também Guy Debord aponta para uma nova etapa no sistema de do- minação, denominando de sociedade do espetáculo esta fase do contro- le, e salientando seus riscos e dificuldades sobretudo quanto às formas de resistência, quando “a mais alta ambição do espetacular integrado é que os agentes secretos se tornem revolucionários e que os revolucioná- rios se tornem agentes secretos”.127

Desde esta concepção do controle, podemos nos perguntar se, por um lado, o exercício clínico nos CAPS representa “intervenções na pro- dução social de subjetividade”128 que geram linhas de fuga, produzindo

sociabilidade solidária, autonomia, multiplicidade, ampliação da vida, ultrapassando o paradigma antidisciplinar do antimanicomial, ou, por outro lado, se este exercício gera os “agentes secretos” de Debord.

Em outras palavras, e de maneira mais clara, a interrogação que move esta reflexão é se o CAPS estaria exercendo, na atual etapa histó- rica da sociedade de controle, com seu monitoramento dos fluxos em espaço aberto, quase, ou a mesma função exercida pelo manicômio na defasada sociedade disciplinar, baseada no confinamento. Esta mudan- ça seria então apenas parte do processo mais amplo de evolução tecno-

124 ORWELL, 2005. 125Ibidem. 126Ibidem. 127 DEBORD, 1997. 128 LANCETTI, 2006.

lógica para formas de dominação mais sofisticadas, refinadas, menos grosseiras e, por isto mesmo, mais eficientes, convincentes, penetran- tes e aceitáveis.

Mas o que dizer, neste caso, de todo o movimento social antimani- comial de superação do confinamento disciplinar ainda em curso?

Será que teremos que repetir a cruel sentença com que Foucault encerra seu primeiro volume da história da sexualidade, na qual de- creta, “ironia deste dispositivo: é preciso acreditarmos que nisso está nossa ‘liberação’?”129

Para buscar uma resposta, ainda que parcial, a esta dura questão, é necessário repensar como ocorrem de fato, na prática diária dos CAPS, esses tratamentos, como algo que não pode ser unificado ou universa- lizado, uma vez que as experiências clínicas que vão sendo construídas em cada CAPS, e até no interior de um mesmo CAPS, diferem intensa- mente, dependentes que são de uma multiplicidade de elementos em ação em cada caso.

Ainda assim, podemos refletir sobre alguns elementos que consti- tuem, de uma forma geral, seguindo a definição proposta por Merhy130,

as “ferramentas tecnológicas”, com seus desdobramentos materiais e imateriais, em ação nos processos de produção do cuidado, a partir da modelagem assistencial proposta para os CAPS.

Para começar, temos um conjunto importante de recursos tecno- lógicos que constituem o arsenal terapêutico acumulado pela medi- cina mental.

Neste conjunto temos, em primeiro lugar, a clínica psiquiátrica do olhar, que compreende todo o estudo descritivo, analítico e classificató- rio dos transtornos mentais, constituindo o edifício teórico da psicopa- tologia, da nosologia, da nosografia.

129 FOUCAULT, 1988. 130 MERHY, 2002.