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A arte de Walter Scott expressa a tendência progressista essencial desse período, a defesa histórica do progresso, de forma artisticamente perfeita.

Georg Lukács

O estudo do romance histórico como gênero narrativo teve seu início na primeira metade do século XX, com a tese de Georg Lukács, teórico que credita a Walter Scott11 sua fundação no início do século XIX, bem como a Leão Tolstói e sua obra Guerra e Paz, do final do século XIX, o ápice de sua formulação. Lukács, de acordo com Zilberman (2003, p. 113), delimita as propriedades desse romance, diferenciando-o dos romances datados nos séculos XVI e XVII, que “são históricos apenas por sua temática” e tendo seus costumes correspondendo “por completo à época do romancista”.

Para Lukács (2011, p. 33), falta ao romance histórico anterior a Scott “o elemento especificamente histórico: o fato de a particularidade dos homens ativos derivar da especificidade histórica do seu tempo”, ou seja, traduzir a singularidade histórica por meio da atuação da personagem, e também contar a história, mesmo distante dela. O surgimento do romance histórico de Walter Scott deu-se sob condições econômico-políticas que ocorreram em toda a Europa após a Revolução Francesa, que ganhou repercussão ideológica também. Esses acontecimentos, “essa convulsão do ser e da consciência dos homens”, em toda a Europa, formam as bases

11 Poeta, romancista, editor e advogado escocês, Walter Scott (1771 – 1832) foi o escritor mais popular

de seu tempo. Sua pesquisa se baseava na reconstrução de dados e de fatos reais do passado, tornando-o responsável por difundir o romance histórico na Inglaterra.

econômicas e ideológicas da novidade do romance de Scott (LUKÁCS, 2011, p. 46, 47). O surgimento do romance histórico na Inglaterra pós-revolucionária decorreu de alguns “traços especiais”, segundo o autor:

O caráter orgânico do desenvolvimento inglês é apenas o resultado da conjugação dos componentes das ininterruptas lutas de classes e de suas pequenas e grandes disputas, bem ou malsucedidas. As enormes convulsões políticas e sociais das décadas anteriores despertaram na Inglaterra também a sensibilidade para a história, a consciência para o desenvolvimento histórico (LUKÁCS, 2011, p. 48).

Esse processo inglês influencia diretamente a vida de todos, com suas mudanças e particularidades, dando um sentido histórico aos acontecimentos e suas consequências nas vidas dos indivíduos. E em Scott culmina em uma forma literária “grandiosa, objetiva e épica”, que, com seu conservadorismo, ajudou a estabelecer novos horizontes para o romancista:

Com sua nova visão de mundo, ele permanece fortemente ligado às camadas da sociedade arruinadas pela Revolução Industrial, pelo rápido desenvolvimento do capitalismo. Scott não fez parte nem do desenvolvimento nem dos apaixonados e patéticos contestadores. Por meio da investigação de todo o desenvolvimento inglês, procura encontrar um caminho “mediano” entre os extremos em luta (LUKÁCS, 2011, p. 48).

A nova consciência histórica de Scott o levou a delinear personagens inseridos largamente em seu contexto social, uma das características do romance histórico destacadas por Lukács:

Para fazer com que tempos há muito desaparecidos possam ser revividos, ele teve de retratar da maneira mais ampla possível essa correlação entre o homem e seu ambiente social. A inclusão do elemento dramático no romance, a concentração dos acontecimentos, a suma importância dos diálogos, isto é, do conflito imediato entre concepções opostas que se manifestam na conversação, têm íntima conexão com o empenho em figurar a realidade histórica tal como de fato ocorreu, de um modo que seja humanamente autêntico e a torne possível de ser vivenciada pelo leitor de uma época posterior (LUKÁCS, 2011, p. 58).

Zilberman resume a intenção de Lukács de conceituar o romance histórico baseado em Walter Scott ao dizer que:

Lukács concebe o romance histórico como um gênero que não apenas situa o leitor num tempo passado, mas ajuda-o a entender os acontecimentos. Por isso, ele valoriza o modo como se dá a representação do período histórico, que deve corresponder a uma fase de crise e transformação. Contudo, a ênfase do romancista não recai sobre o movimento histórico, e sim sobre seus efeitos sobre as figuras humanas, especialmente quando essas se organizam em grupos domésticos (ZILBERMAN, 2003, p. 120).

O momento de crise e as pessoas que as presenciam são, então, dois fundamentos essenciais para o romance histórico.

Assim, segundo Zilberman (2003, p. 25), o autor elege como características do romance histórico:

a) a escolha de períodos representativos e a tradução desses momentos de crise em situações domésticas, familiares e amorosas;

b) a eleição de personagens triviais, sem grandes elevações espirituais ou gestos heroicos;

c) a presença de figuras históricas em posição secundária, humanizadas, porém, mantendo a grandeza do cargo;

d) o realismo visceral.

Scott influenciou a literatura europeia com o novo tipo de figuração da história. Escritores, de Púchkin a Balzac, encontraram novos caminhos em suas produções em decorrência do estilo scottiano. Na segunda metade do século XIX, Tolstói retoma os grandes problemas históricos que compõem a história pregressa da Rússia e que criaram seus pressupostos sociais. Diferentemente dos já citados Púchtin e Balzac, influenciados por Walter Scott, Lukács considera Guerra e paz um romance histórico de caráter absolutamente peculiar, tornando Tolstói um inovador deste tipo de romance:

Guerra e paz é a epopeia moderna da vida do povo em uma forma ainda mais

decisiva que a obra de Scott ou Manzoni. Aqui, o retrato do povo é ainda mais amplo, colorido e rico. A ênfase na vida do povo como verdadeira base dos acontecimentos históricos é mais consciente. Em Tolstói, essa forma de representação ganha acento polêmico que ela não tinha – nem podia ter – nos primeiros clássicos do romance histórico. Estes retratavam sobretudo o

contexto; os acontecimentos históricos surgiam como pontos culminantes das

forças contraditórias da vida do povo (LUKÁCS, 2011, p. 111).

Tolstói não é um renovador do tipo clássico de Scott, tendo em vista que o lugar central de seu romance é ocupado pela contradição entre os protagonistas da história e as forças intensas da vida do povo. Seu herói sempre popular representa o povo e suas lutas contra os exploradores. Para Lukács, Guerra e paz introduziu nessa figuração – na forma de um amplo retrato da vida econômica e moral do povo – o grande problema tolstoiano da questão camponesa, da relação entre as diferentes classes, camadas e indivíduos. No entanto, finaliza o autor, enquanto Guerra e paz surgiu do romance social realista da Rússia e da França, a figuração scottiana surgiu do realismo inglês crítico e social do século XVIII (LUKÁCS, 2011, p. 111-113).

Em língua portuguesa, o romance histórico pode ter seus representantes em Almeida Garrett e Alexandre Herculano, com obras datadas na primeira metade do século XIX. Ambos buscam em acontecimentos do passado histórico uma lição para o presente, no momento da transição de Portugal de um Estado absolutista para uma monarquia liberal.